O ícone da libertação a quem “algo correu horrivelmente mal”

Para muitos, nunca deixou de ser a lutadora que merece o estatuto de "mãe da nação". No relatório da Comissão da Verdade e Reconciliação escreve-se que foi “política e moralmente responsável por grosseiras violações de direitos humanos”.

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Há muitas fotografias onde a encontramos de punho direito erguido, mas a sua foto que mais voltas terá dado ao mundo é aquela em que dá a mão a Nelson Mandela e ergue o braço esquerdo, punho cerrado, deixando o braço direito do seu marido livre para se erguer nessa caminhada que foi a sua saída da prisão, a 11 de Fevereiro de 1990.

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Há muitas fotografias onde a encontramos de punho direito erguido, mas a sua foto que mais voltas terá dado ao mundo é aquela em que dá a mão a Nelson Mandela e ergue o braço esquerdo, punho cerrado, deixando o braço direito do seu marido livre para se erguer nessa caminhada que foi a sua saída da prisão, a 11 de Fevereiro de 1990.

A luta de Nelson Mandela foi a sua. Sofreu a prisão, a tortura, foi confinada à sua casa, expulsa para uma cidade remota; o regime que lhe prendeu o marido nunca a deixou em paz. Mas ao contrário de “Tata” (Pai), a mulher que muitos viam como “Mãe da Nação” não é uma figura consensual na África do Sul.

Winnie Madikizela-Mandela, ícone da luta anti-apartheid, morreu aos 81 anos no Hospital Netcare Milpark de Joanesburgo, “em paz e rodeada pela família”, lê-se num comunicado divulgado pelo porta-voz, Victor Dlamini.

“Ela lutou valentemente contra o estado de apartheid e sacrificou a sua vida pela liberdade do país”, sublinha a família. “Ela manteve viva a memória do seu encarcerado marido nos anos de Robben Island e ajudou a dar à luta pela justiça na África do Sul um dos seus rostos mais reconhecíveis.”

Com a notícia da morte, umas 200 pessoas reuniram-se diante da sua casa no Soweto, cantando e dançando. Vários políticos locais e nacionais também apareceram no lugar e a polícia fechou a rua ao trânsito. “Hoje, perdemos uma mãe, uma avó, uma amiga, uma camarada, uma líder e um ícone”, afirmou o Presidente, Cyril Ramaphosa, antes de fazer uma visita à família.

Winnie, como entretanto se tornou conhecida, nasceu Nomzamo Winifred Zanyiwe Madikizela a 26 de Setembro de 1936, na aldeia de Mbongweni, perto da cidade de Bizana, na actual província do Cabo Oriental. O nome próprio – Nomzamo significa “aquela que luta” – foi premonitório.

Assistente social

Muito jovem, partiu para a gigante Joanesburgo onde se licenciou (uma absoluta raridade para uma mulher negra na altura) e se tornou na primeira assistente social negra da África do Sul. Foi a trabalhar no Hospital Baragwanath, no subúrbio que viria a fazer casa e palco de luta do Soweto, que começou o seu despertar político.

Ao investigar a mortalidade infantil noutro subúrbio de Joanesburgo, Alexandra, percebeu que em cada 1000 nascimentos morriam dez bebés. “Comecei a aperceber-me da pobreza abjecta em que a maioria das pessoas era forçada a viver, as condições chocantes criadas pelas desigualdades do sistema”, diria mais tarde.

Foi por esta altura que conheceu Nelson Mandela, em 1957, numa paragem de autocarro do Soweto, tinha ela 21 anos e era ele casado. Casaram no ano seguinte, Mandela divorciado e pai, com 40 anos.

Em breve (1961) ele teria de passar à clandestinidade, antes de ser preso, em 1963, condenado a prisão perpétua um ano depois. Winnie ficou sozinha com as filhas de ambos e tornou-se numa espécie de porta-voz do marido, enfrentando ela própria a perseguição do regime e liderando as suas próprias lutas, contando sempre com o apoio de Mandela.

“Eu conhecia Winnie Madikizela-Mandela. Somos do mesmo bairro no Soweto. Para muitos, ela era o orgulho e a alegria da nação, um ícone por direito próprio, independentemente de ter sido mulher de Nelson Mandela”, escreve numa análise no site da BBC Milton Nkosi.

O arcebispo e Nobel da Paz Desmond Tutu descreve-a como um “símbolo fundamental” do combate ao apartheid. “Ela recusou ser dobrada pela prisão do marido, o assédio perpétuo à sua família pelas forças de segurança, pelas detenções, expulsões e banimentos”, afirma Tutu num comunicado.

Prisão e caixas de fósforo

Em 1969, Madikizela-Mandela tornava-se numa das primeiras pessoas detidas ao abrigo da Secção6 da Lei do Terrorismo de 1967. Passou 18 meses em solitária na Prisão Central de Pretória, antes de ser acusada sob a Lei da Supressão do Comunismo, de 1950.

Várias vezes detida, foi colocada em prisão domiciliária no seu subúrbio do Soweto, em Joanesburgo. Em 1976, ano dos motins do Soweto, animava os estudantes do subúrbio a “combaterem até às últimas consequências”. Começava também a ser chamada “Mãe da Nação” pelos mais pobres.

Meses depois, o regime dava-lhe a escolher entre o exílio na Suazilândia ou a permanência no país. Por ter escolhido a segunda opção, que significava também continuar a lutar, foi enviada para a cidade agrícola de Brandfort – aqui, a casa que lhe foi destinada não tinha tecto, chão, água ou electricidade e pelo menos uma vez foi incendiada.

As actividades que fizeram dela uma figura polémica, repudiada entre alguns membros da luta pela libertação dos negros, incluindo membros do ANC (Congresso Nacional Africano), começaram um pouco depois, já nos anos 1980. Foi então que se fez rodear de um grupo de guarda-costas, vigilantes, a que chamou Mandela United Football Club (MUFC), que ganharam uma reputação de violência brutal.

Nessa altura foi relacionada com os assassínios de suspeitos dissidentes ou traidores atribuídos a este grupo e cometidos através do método do colar-de-fogo (necklacing), que consistia em colocar um pneu em chamas em redor do pescoço das vítimas. Ao mesmo tempo, era cada vez mais líder entre os que perseguiam o derrube do regime pela força. “Vamos libertar este país com as nossas caixas de fósforos e os nossos colares”, afirmou num discurso em 1986.

Condenação e divórcio

Já depois da libertação de Nelson Mandela, Winnie foi julgada e condenada pelo rapto e ataque que terminaria na morte de Stompie Moeketsi, um adolescente de 14 anos suspeito de ser um informador, raptado em 1989 por membros do seu MUFC, morto pouco depois. Em 1991, foi condenada a seis anos de prisão mas a sentença foi revista em recurso e reduzida a uma multa e a dois anos de pena de prisão suspensa.

Enquanto decorria o julgamento, desfazia-se o casamento com Mandela, com o próprio processo a trazer a público um caso que Winnie teve com um dos seus guarda-costas. A separação aconteceu em 1992, o divórcio chegaria em 1996, já ele era Nobel da Paz e o primeiro Presidente negro da África do Sul, já ela tinha sido eleita deputada nas primeiras eleições livres do país, nomeada ministra-adjunta das Artes e da Cultura e afastada desse cargo pelo chefe de Estado, acusada de insubordinação.

Quando apareceu perante o arcebispo Desmond Tutu nas audiências da Comissão de Verdade e Reconciliação, negou o envolvimento em quaisquer assassínios, mas não faltavam testemunhos a implicá-la. “A sua coragem desafiante foi uma inspiração profunda para mim e para gerações de activistas”, diz agora Tutu na reacção à sua morte. Durante as audiências Tutu afirmou de Winnie que foi “uma fabulosa apoiante da nossa luta e um ícone da libertação, mas a certa altura algo correu horrivelmente mal”.

No relatório final da Comissão escreve-se que Winnie foi “política e moralmente responsável por grosseiras violações de direitos humanos cometidos pelo MUFC”.

Nos últimos anos, voltou a estar envolvida em polémicas. Primeiro, foi condenada por fraude por causa de um esquema de empréstimos bancários para pessoas que não teriam condições para os fazer. Mais recentemente, foi citada num longo artigo de Nadira Naipul no jornal The Evening Standard como chamando “cretino” a Tutu e “vendido” ao ex-marido.

O artigo teve como base uma conversa na sua casa com Nadira e o marido, o escritor V.S. Naipul. Winnie desmentiu ter “dado qualquer entrevista”. Entretanto, foi afastada e de novo integrada nos principais órgãos do ANC e voltou a ser eleita deputada em 2009.

Em 2016, três anos depois da morte do ícone maior da luta contra o apartheid e da reconciliação sul-africana, Madikizela-Mandela recebeu a Ordem de Luthuli pela “excelência da sua contribuição na luta pela libertação do povo da África do Sul”.

“Nunca desistiu”, escreve o jornalista da BBC Milton Nkosi. “Nunca cedeu. Nem um centímetro – e, às vezes, isso trouxe-lhe problemas. Como nota em sua defesa o activista anti-apartheid Mosiuoa Lekota [actual líder do ANC]: ‘Os que não fizeram nada durante o apartheid nunca cometeram erros’.” É por isso que Nkosi conclui: “Ela vai ser lembrada pela sua luta contra um sistema desumano, não pelos erros que cometeu nesse combate.”