Um Verão feliz é para sempre

Tito Mouraz regressa mais uma vez ao seu território e à sua memória para fotografar. Fluvial, a exposição que se pode ver em Lisboa até meados de Abril, é como um longo Verão à beira rio, antes dos incêndios devastadores de 2017. E um convite à ficção, entre cores sobrecarregadas e sombras que não existem.

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Há nas fotografias de Fluvial, série de Tito Mouraz que resulta de seis verões de trabalho na Beira Interior, a registar cenas de descanso e lazer à beira-rio, uma sensação de estranheza permanente. Uma estranheza que começa nas águas de uma quietude impossível, mesmo quando nela estão mergulhados corpos, passa pelas cores sobrecarregadas, a sugerir uma manipulação da realidade, e termina nas sombras a que o trabalho em filme positivo com uma câmara de médio formato e o uso do flash ao ar livre tira toda a informação, substituindo-as pelo preto.

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Há nas fotografias de Fluvial, série de Tito Mouraz que resulta de seis verões de trabalho na Beira Interior, a registar cenas de descanso e lazer à beira-rio, uma sensação de estranheza permanente. Uma estranheza que começa nas águas de uma quietude impossível, mesmo quando nela estão mergulhados corpos, passa pelas cores sobrecarregadas, a sugerir uma manipulação da realidade, e termina nas sombras a que o trabalho em filme positivo com uma câmara de médio formato e o uso do flash ao ar livre tira toda a informação, substituindo-as pelo preto.

É o contraste entre cor e sombra que permite acentuar o lado cenográfico destas imagens, como se nelas tudo fosse sujeito a uma “direcção de actores” – as pessoas, as plantas, as pedras, as árvores, o Mondego e o Alva… É neste contexto que as situações de lazer banais da época estival no interior do país, muitas delas protagonizadas por emigrantes que regressam a casa para umas merecidas férias, dão origem a uma espécie de “ficções íntimas” que partem de uma paisagem que se quer anónima para que seja, ao mesmo tempo, tão intemporal quanto possível.

Fluvial, até 14 de Abril em exposição na galeria do Módulo – Centro Difusor de Arte, em Lisboa, marca o regresso de Tito Mouraz à cor, depois da aposta no preto-e-branco de A Casa das Sete Senhoras, o seu projecto mais internacional, já convertido em livro. O fotógrafo de 40 anos, que chegou a trabalhar nas duas séries ao mesmo tempo, diz que ambas têm em comum uma geografia – a da região de Viseu, no interior do país, onde nasceu – e o recurso às memórias pessoais, as da infância e adolescência.

“Quis fugir do olhar sarcástico que muitas vezes marca a representação destes lugares do interior e destas cenas de praia de rio com famílias da região, que crescem no Verão com os tios e os primos que estão emigrados”, explica ao PÚBLICO Mouraz, que nasceu na Beira Interior e que nos últimos anos trocou as habituais férias de sol e mar pelo território da sua juventude. “Fui à procura daqueles lugares que eu percorria com os amigos quando era miúdo, e pelo caminho descobri outros, fantásticos, na Serra da Lousã ou em Oliveira do Hospital.”

Foi nesses lugares que encontrou a grávida cuja cara não vemos, a sereia fluvial de unhas azuis, os miúdos que ordeiramente esperam que lhes dêem autorização para entrarem na água, o cão que descansa entre as árvores mas parece permanecer de vigia, o cisne branco com uma anilha na pata, os dois homens que, sob o olhar de duas meninas, sobem uma escada montada sobre um tronco, de onde se pode saltar, a mulher que, entre a folhagem, olha o fotógrafo. “Há nesta série um lado de reconstrução da memória, claro, mas também há a intenção de fazer fotografias que possam levar quem as vê a identificar-se ou não, a criar as suas próprias histórias.”

Tito Mouraz, cuja obra está representada em importantes colecções portuguesas, como a da EDP e a do Novo Banco, trata da mesma forma os corpos orgânicos e os inorgânicos, as pessoas e a paisagem. A luz e a atmosfera são o que o movem. Por trás de Fluvial, como em séries anteriores, houve uma ideia a explorar, um projecto a desenvolver, mas neles o elemento surpresa teve um papel determinante, assim como as relações que o autor conseguiu estabelecer com o que fotografava, fosse uma pedra que meses de seca tinham deixado a descoberto no Mondego, fosse alguém que já tratava pelo nome desde o Verão anterior. “Repeti lugares e, por isso, cheguei a fazer fotografias das mesmas pessoas em diferentes Verões. Foi interessante perceber, depois, quando via as imagens, até que ponto elas reflectiam a evolução da minha relação com essas pessoas”, diz, admitindo um sentimento de “reconhecimento” e de “pertença” àquela paisagem que vê como um estúdio ao ar livre, em que tudo pode ganhar uma dimensão escultórica, e ao mesmo tempo um distanciamento absolutamente intencional de um registo mais próximo do antropológico, do documental.

“Se quisermos, podemos olhar para as 17 fotografias que estão na Módulo como ponto de partida para uma ficção, como se elas contassem a história de uma só família, num só lugar.” E num só Verão, interminável e feliz? “Nunca quis passar essa ideia de felicidade, mas acho que ela está lá. Talvez porque as minhas memórias de Verão nalguns destes lugares são também elas felizes. Memórias que estão comigo e vão ficar comigo. […] A fotografia do miúdo com o barco foi tirada num lugar que pouca gente conhece, de difícil acesso, perto casa dos meus pais. Aquele miúdo podia ser eu.”

Um Verão trágico

Quando hoje olhamos para as fotografias que Tito Mouraz começou a fazer em 2011 – uma “ode ao lazer”, como lhe chama o crítico Humberto Brito, que assina um dos textos de apresentação desta série em que a figura humana, escreve, pode ser tratada como “uma peça de land art” ou uma “mera forma natural” –, não podemos deixar de pensar no retrato do país que nos deixaram os incêndios do ano passado, com consequências humanas e materiais devastadoras.

Foi o de 15 de Outubro, dia em que arderam mais de 400 mil hectares distribuídos por 15 distritos, que fez desaparecer a maioria dos lugares que fotografou, precisa Mouraz. “Já estive nalguns deles, mas acho que ainda não absorvi o que aconteceu porque ainda não voltei a fotografá-los.” A série Fluvial é o oposto do interior que vimos este ano nas televisões e nos jornais, acrescenta: “As cores destes lugares foram trocadas pelo preto. Está tudo queimado, todos aqueles pinhais. Olhando para as minhas fotografias feitas nos últimos anos não se tem noção de como foi triste o Verão de 2017.”

Criar Fluvial fê-lo percorrer centenas e centenas de quilómetros e estabelecer uma relação de confiança com algumas das pessoas que fotografou, já que, com todo o material que usou, lhe era impossível passar despercebido. Algumas das imagens parecem registar o momento imediatamente antes ou imediatamente depois de alguma coisa acontecer, outras ficaram por fazer: “Algumas das melhores foram aquelas que vi e não fotografei. Há sempre aquele pudor que temos de invadir a intimidade das pessoas, sobretudo quando estamos a fotografar no Verão e os corpos têm pouca roupa.”

Mouraz trabalhou, primeiro, de forma a que as situações e os lugares o interpelassem, e, depois, deixou que fosse a película a surpreendê-lo: “Fotografo sempre em filme porque gosto desse lado de imprevisto do analógico.” Um lado que existe mesmo quando interfere no cenário, como no caso da mulher que o olha através da folhagem. “Se tiver de mexer na cena a fotografar faço-o sem qualquer problema. Gosto deste lado falso da fotografia, que também é mágico.” Foi também graças a ele, para voltar a citar Humberto Brito, o crítico que é também um amigo e que o acompanhou durante quatro ou cinco dias no terreno, que criou este “sonho de Verão português”, este "domingo infinito".