"Vocês têm o que é preciso para gritar"
Para além das polémicas teológicas, o inferno existe aqui, não num além longínquo e ficcionado pela religião, um inferno cultivado pelo ódio e a intolerância de todos os fundamentalismos e as loucas tentações mortíferas de tantos que nos governam.
Não sou crente e, por isso, encaro como uma bizarria teológica a polémica sobre o Inferno que envolveu o Papa Francisco depois de uma entrevista com o seu amigo jornalista Eugenio Scalfari. O antigo e respeitado fundador do La Repubblica, que não usa gravador e não toma notas apesar dos seus 93 anos, transcreveu entre aspas uma declaração atribuída ao Papa e segundo a qual este negaria a existência do Inferno, admitindo apenas o "desaparecimento das almas pecadoras". O Vaticano distanciou-se, embora sem desmentir expressamente o que Francisco poderia ter dito a Scalfari, alegando que o encontro entre os dois amigos não tivera por objecto uma "entrevista formal". A verdade, porém, é que o Inferno continua a ser um quebra-cabeças para a Igreja Católica, pois, apesar da sua existência declarada no catecismo oficial, já dera lugar a uma controvérsia entre os dois antecessores de Francisco: João Paulo II, apesar de muito conservador no plano doutrinário, afirmou que o Céu e o Inferno não são "lugares físicos" – o que deveria constituir uma evidência para o comum dos mortais, crentes ou não – enquanto o ainda mais integrista Bento XVI se pronunciou taxativamente a favor da sua existência. Não é por isso de excluir que o menos dogmático Francisco defenda uma posição mais heterodoxa.
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Não sou crente e, por isso, encaro como uma bizarria teológica a polémica sobre o Inferno que envolveu o Papa Francisco depois de uma entrevista com o seu amigo jornalista Eugenio Scalfari. O antigo e respeitado fundador do La Repubblica, que não usa gravador e não toma notas apesar dos seus 93 anos, transcreveu entre aspas uma declaração atribuída ao Papa e segundo a qual este negaria a existência do Inferno, admitindo apenas o "desaparecimento das almas pecadoras". O Vaticano distanciou-se, embora sem desmentir expressamente o que Francisco poderia ter dito a Scalfari, alegando que o encontro entre os dois amigos não tivera por objecto uma "entrevista formal". A verdade, porém, é que o Inferno continua a ser um quebra-cabeças para a Igreja Católica, pois, apesar da sua existência declarada no catecismo oficial, já dera lugar a uma controvérsia entre os dois antecessores de Francisco: João Paulo II, apesar de muito conservador no plano doutrinário, afirmou que o Céu e o Inferno não são "lugares físicos" – o que deveria constituir uma evidência para o comum dos mortais, crentes ou não – enquanto o ainda mais integrista Bento XVI se pronunciou taxativamente a favor da sua existência. Não é por isso de excluir que o menos dogmático Francisco defenda uma posição mais heterodoxa.
Infelizmente, a polémica que atravessou esta semana santa católica acabou por obscurecer uma luminosa declaração do Papa Francisco, no passado domingo em Roma, inspirada pelo movimento dos jovens americanos contra o uso das armas, March for Our Lives, que suscitara, na véspera, impressionantes manifestações através dos Estados Unidos e outras partes do mundo (meio milhão de manifestantes só em Washington). Recorde-se que, em Fevereiro, 17 estudantes foram massacrados por um colega num liceu da Florida, na sequência de outros ataques que se banalizaram num país onde o livre acesso às armas de fogo é defendido por um lobby muito poderoso, a NRA, além de continuar inscrito absurdamente na Constituição.
Ora, na sua mensagem de domingo passado, embora sem referir-se expressamente ao movimento dos jovens americanos, mas com duas alunas do liceu da Florida presentes na assistência, o Papa fez afirmações de intenso teor universalista, que não se dirigem apenas aos católicos mas a todos os homens, crentes ou não: "A tentação de silenciar os jovens sempre existiu" – disse Francisco. "Há muitas maneiras de silenciar os jovens e de os tornar invisíveis. Muitas maneiras de os anestesiar, de os sossegar, de não perguntar nada, de não questionar nada. Há muitas maneiras de os sedar, de os impedir de se envolverem, de tornar os seus sonhos inócuos e tristes, fúteis e queixosos". E, depois, numa forte interpelação mobilizadora: "Queridos jovens, vocês têm o que é preciso para gritar (…) Cabe-vos a vocês não ficarem quietos. Mesmo que os outros fiquem quietos, se nós, as pessoas mais velhas e os líderes, alguns corruptos, ficarmos quietos, se o mundo inteiro ficar quieto e perder a alegria, eu pergunto-vos: 'Vocês vão gritar?'".
A assistência respondeu "sim" a Francisco e é esse sim que é preciso amplificar, não apenas por parte dos jovens mas por todos, crentes ou não crentes, de todas as idades e latitudes, que se recusam a aceitar de forma silenciosa e submissa a ordem desumana, injusta e absurda que vemos hoje alastrar através do mundo. Sim, é preciso gritar contra o inferno, este inferno real que nos ameaça na Terra. Para além das polémicas teológicas, o inferno existe aqui, não num além longínquo e ficcionado pela religião, um inferno cultivado pelo ódio e a intolerância de todos os fundamentalismos e as loucas tentações mortíferas de tantos que nos governam.