Rohingya: “Considerar a Birmânia maléfica seria simplista”
O britânico Alex Miles passou pelo campo de refugiados rohingya Kutupalong em Cox's Bazar, no Bangladesh, e recolheu histórias, olhares e reflexões. O fotógrafo acredita que é necessário transformar os grandes números em histórias individuais, lembrando que na origem do conflito está uma "ferida colonial".
Chama-se Mohamed Shoaib, tem sete anos e é de etnia rohingya. Foi agredido por militares birmaneses enquanto atravessava a fronteira entre a Birmânia e o Bangladesh, há cerca de três meses. A gravidade dos ferimentos tornou imperativa uma intervenção cirúrgica que viria a salvar-lhe a vida, sem, no entanto, o poupar das cicatrizes físicas e psicológicas profundas que o irão acompanhar para sempre.
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Chama-se Mohamed Shoaib, tem sete anos e é de etnia rohingya. Foi agredido por militares birmaneses enquanto atravessava a fronteira entre a Birmânia e o Bangladesh, há cerca de três meses. A gravidade dos ferimentos tornou imperativa uma intervenção cirúrgica que viria a salvar-lhe a vida, sem, no entanto, o poupar das cicatrizes físicas e psicológicas profundas que o irão acompanhar para sempre.
“A sua família estava ansiosa por que lhe fizesse um retrato”, disse, em entrevista ao P3, o fotógrafo britânico Alex Miles, que passou perto de uma semana em Kutupalong, campo de refugiados rohingya em Cox's Bazar, no Bangladesh. “Para a família, era importante provar que as histórias que circulam no campo de refugiados são verdadeiras; há inúmeros relatos de violações, de execuções e de amputações.” O pequeno Mohamed assegura que houve, da parte dos militares birmaneses, intenção de matar. Narrativas semelhantes repetem-se por todo o campo, que alberga mais de 40% dos 680 mil rohingya que abandonaram a Birmânia desde Agosto de 2017 — ou seja, cerca de 300 mil pessoas.
“A vida no campo é caótica, como seria de esperar”, descreve Alex Miles. “Uma cidade com 300 mil pessoas, composta por tendas, estende-se ao longo de quilómetros. É mesmo uma cidade, com o seu próprio funcionamento, a sua própria economia. Existem lojas no interior — casas de chá e restaurantes. Há mesquitas e escolas. Organizam-se torneios de futebol que concentram centenas de espectadores. É incrível ver quão rapidamente surgem sistemas políticos, económicos e sociais [numa nova urbe], e como, subitamente, se forma um equilíbrio entre oferta e procura.”
A sobrelotação, no entanto, transforma a “cidade” numa sala de espera, descreve o fotógrafo. “Espera-se muito. Nada acontece, em geral. Ao caminhar pelas ‘ruas’, vêem-se pessoas à espera, a observar-nos enquanto passamos.” As crianças movimentam-se em grandes grupos, livremente, os homens concentram-se nas casas de chá, as mulheres permanecem em casa. “Muitos refugiados trabalham para as organizações não-governamentais como tradutores ou técnicos de apoio logístico” e recebem cerca de seis euros por dia pelos seus préstimos.
Em 2015, Alex Miles conheceu o campo de refugiados de Lesbos, na Grécia, que albergava grupos de refugiados de origem afegã e síria, e garante que o que se vive em Cox's Bazar é incomparável. “Em Lesbos, os refugiados sabiam que a sua estadia era temporária — seriam visitantes até que a confusão se dissipasse no seu país de origem. A questão que se impunha, diariamente, era quando isso iria acontecer.” Em Cox's Bazar, a experiência foi totalmente diferente. “O deslocamento dos rohingya não é um problema temporário e não tem uma resolução à vista”, sublinha. “Os rohingya não têm nacionalidade. Depois da limpeza étnica de que foram vítimas na Birmânia, não consigo imaginar como poderão regressar — embora eles considerem o estado de Rahkine a sua casa e acreditem ter o direito à declaração de independência daquele território. Os birmaneses não ponderam sequer essa possibilidade, pelo que dificilmente se irá concretizar.”
Uma “ferida colonial"
Alex acredita que a solução poderia ter sido encontrada num momento histórico particular, em 1945, quando Inglaterra recuperou o controlo da Birmânia — após a ocupação japonesa (lograda durante a Segunda Guerra Mundial) — e se deu início ao processo de independência da colónia. “Os ingleses poderiam, então, ter determinado que o estado de Rakhine fosse uma região independente, soberana, mas não foi o caso”, reflecte Miles. “Existe, deste então, uma ferida colonial. Considerar ‘maléfico’ o estado da Birmânia seria uma interpretação básica, simplista.” Isto porque “o problema resulta de uma tensão que se tem vindo a formar ao longo de muitos anos”.
Qual seria a solução mais evidente para um problema tão profundo? Alex acredita na integração deste povo no Bangladesh. “As línguas são mutuamente inteligíveis, ambos os países partilham da cultura islâmica e parecem poder conviver sem problemas”, aponta o fotógrafo. “O povo do Bangladesh tem sido hospitaleiro para com os rohingya, creio que os vêem como uma espécie de primos étnicos.” Existem, evidentemente, entraves à integração dos rohingya no Bangladesh. “É um país sobrepopulado, que tem problemas de desenvolvimento e de equidade. Absorver perto de um milhão de pessoas, integrá-las e esperar pelos efeitos das alterações climáticas que estão previstos para as próximas décadas não é uma solução desejável para o estado do Bangladesh.”
O fotógrafo acredita que é necessário transformar os grandes números em histórias individuais. “É impossível estabelecer empatia com um milhão de pessoas”, explica. Cada disparo seu retrata um indivíduo, uma vida humana. Um sobrevivente, apesar de tudo. “Um grande número de pessoas não sobreviveu, é importante lembrar.”