Histórias naturais
Primeiro livro do brasileiro Gustavo Pacheco. O autor é estreante. A obra é madura.
Parafraseando o narrador do último conto deste livro (que havia sido publicado em 2016 na Granta portuguesa dedicada ao “Medo”), há no Brasil uma longa e respeitável tradição de escritores (e poetas) que foram funcionários públicos. Eu lembro-me logo de Drummond de Andrade, é claro, e quanto aos da carreira diplomática (igualmente solicitada pelos portugueses) ocorre-me, à cabeça, aquele João Cabral de Melo Neto, e de boa memória. Vivendo actualmente em Brasília, Gustavo Pacheco (Rio de Janeiro, 1972), licenciado em Direito, mestre em Relações Internacionais, doutorado em Antropologia Social, ingressou na carreira diplomática brasileira em 2006. Com Alguns Humanos, o seu primeiro livro, Pacheco entronca, portanto, em linhagem ilustre e exigente. E não a desmerece. O autor poderá ser estreante, mas a obra é madura.
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Parafraseando o narrador do último conto deste livro (que havia sido publicado em 2016 na Granta portuguesa dedicada ao “Medo”), há no Brasil uma longa e respeitável tradição de escritores (e poetas) que foram funcionários públicos. Eu lembro-me logo de Drummond de Andrade, é claro, e quanto aos da carreira diplomática (igualmente solicitada pelos portugueses) ocorre-me, à cabeça, aquele João Cabral de Melo Neto, e de boa memória. Vivendo actualmente em Brasília, Gustavo Pacheco (Rio de Janeiro, 1972), licenciado em Direito, mestre em Relações Internacionais, doutorado em Antropologia Social, ingressou na carreira diplomática brasileira em 2006. Com Alguns Humanos, o seu primeiro livro, Pacheco entronca, portanto, em linhagem ilustre e exigente. E não a desmerece. O autor poderá ser estreante, mas a obra é madura.
O volume que a Tinta-da-China acaba de publicar colige onze narrativas curtas que, não poucas vezes, me fizeram sorrir. Um dos contos mais divertidos intitula-se História Natural. Acaba sendo, também, um dos de mais negro humor, pois se há escritores convincentes na arte de começar um texto, Pacheco é em geral igualmente certeiro na arte do rematá-lo. O conto parte de um episódio ocorrido em 2009, quando um museu de História Natural estado-unidense decidiu retirar das suas exposições permanentes catorze maquetes ou dioramas que “representavam cenas da vida dos índios da região dos Grandes Lagos na época do contato [grafia brasileira] com os brancos”. O autor inventa, de seguida, um antropólogo da Costa Leste que, entrevistado pelo narrador da história, diz o que se espera que “um típico exemplar da tribo dos intelectuais nova-iorquinos” diga sobre a matéria: “A história do Museu Americano de História Natural é uma metáfora da expansão do capitalismo, da ciência moderna e da relação entre os dois”. Contrapõe-lhe um antropólogo não-fictício, que lembra que “o homem é parte da natureza” e que o museu, “como todo artefacto cultural, tem o direito de ser preservado” e que “atender às veleidades politicamente correctas de intelectuais” não é a sua “principal função”. A escalada didáctico-burlesca prossegue, sendo o final do conto secamente inquietante.
Em Alguns Humanos, historieta delirantemente metaficcional e ironicamente deceptiva, um homem e uma mulher encontram-se num jardim zoológico, “lugar triste pra caralho”, diz ela. “Cada um com sua prisão. Não seja tão romântica”, responde ele, que está ensaiando a escrita de um livro sobre muriquis, um biólogo alemão que é uma autoridade mundial em primatologia e uma estudante brasileira de mestrado que… Enfim, o encontro no zoo serve para discutir a “falta de imaginação” que se adivinha e o cliché implícito, ou seja, “a clássica transferência estudante-insegura-que-se-apaixona-pelo-professor-maduro”. Comentário ajuizado da moça: “Você fica mergulhado nos não sei quantos mil artigos que você pesquisou pra escrever o texto e deixa a imaginação de lado, sem imaginação você não vai a lugar nenhum. Sabe como eu continuaria a história?”
O melancólico Kuek tematiza o regresso a uma pequena cidade brasileira, em 2011, dos restos mortais (“apenas um crânio, limpo e lustroso, com alguns números escritos à mão”) de um índio de uma tribo mineira levado 200 anos antes para a Europa por um naturalista e etnólogo alemão. De um regresso, mas agora ao México (episódio que o PÚBLICO, aliás, noticiou em Fevereiro de 2013), trata também a paródica narração de O Amante da Mulher Mais Feia do Mundo: o de Julia Pastrana, morta 150 anos antes em Moscovo, após uma vida breve sendo exibida como atracção de feira de aberrações. Pacheco dá voz ao marido, um empresário circense que mandou embalsamá-la para continuar a exibir o corpo: “Você está me julgando com o ponto de vista de hoje, mas lembre-se que naquela época era muito comum embalsamar os entes queridos. Pessoas importantes também foram embalsamadas. Abraham Lincoln foi embalsamado.”
Resumindo, as histórias de Alguns Humanos são, genericamente, contos de ideias que — tomando por assunto os humanos e outros primatas, e partindo frequentemente de episódios ou factos datáveis e mensuráveis que são devidamente extraditados do seu campo científico ou factual para a ficção que os reclama — encenam controvérsias intelectuais e culturais contemporâneas. E são também, ou sobretudo, e em boa e afinada medida, contos metaficcionais e paródicos. Neste sentido, poderão ser bastante instrutivos para quem insista em confundir verosimilhança e verdade.