Cuidado com os rótulos
Os incêndios são um inimigo comum a todos nós. Não faz por isso sentido que andemos com divisões ou com etiquetas.
Quando era estudante do antigo 6.º ano (atual 10.º ano) no Liceu Normal de Pedro Nunes, em 1965-66, em Lisboa, lembro-me que um colega meu publicou num jornal que tínhamos no liceu um artigo intitulado “Cuidado com os rótulos”.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Quando era estudante do antigo 6.º ano (atual 10.º ano) no Liceu Normal de Pedro Nunes, em 1965-66, em Lisboa, lembro-me que um colega meu publicou num jornal que tínhamos no liceu um artigo intitulado “Cuidado com os rótulos”.
Passados 50 anos, não me lembro do nome do autor, nem do conteúdo do artigo, mas retive sempre algumas das ideias nele vertidas. Uma era a de que nós tendemos a colocar rótulos nas pessoas, tal como fazíamos na altura, por exemplo, nos frascos que continham um dado produto no laboratório de química. A outra era a de que por vezes nos podíamos enganar nos rótulos, ou porque estavam mal aplicados, ou porque os tínhamos lido mal.
O debate que tem existido em Portugal sobre os incêndios florestais, desde há muitos anos, mas em especial desde junho de 2017, fez-me evocar este artigo, porque muitas vezes vejo as pessoas a tratar do assunto como se as instituições, as pessoas e os seus atos trouxessem rótulos, que as marcam e definem, de um modo indelével. Por vezes cuida-se de colocar os rótulos, não tanto para identificar as realidades, mas para as catalogar e dividir, criando-se no pensamento, na expressão e na ação uma visão parcial e sectária: estes são dos bons, aqueles, pelo contrário, não prestam. Outras vezes ainda, enganamo-nos na apreciação da realidade, seguindo porventura os rótulos que outros lhe colocaram.
Em meados da década de 80, quando comecei a lidar com o tema dos incêndios florestais, encontrei dois grupos de pessoas que, entre outros, se salientavam na abordagem do problema: os bombeiros e os técnicos florestais. Nessa altura, embora houvesse elementos comuns aos dois grupos, cada um deles possuía um nível de formação e uma abordagem do problema, que pareciam ser inconciliáveis. Por outro lado, também entre os bombeiros, encontrava divisões irracionais, entre voluntários e profissionais. Por razões que não compreendia, observei que, salvo raras exceções, não havia diálogo entre estes grupos; pior ainda, quando participava numa reunião de uns, ouvia falar mal dos outros e vice-versa.
Este discurso foi sendo substituído pela introdução de dois termos: a prevenção e o combate, como se fossem conceitos antagónicos. Possivelmente porque se associava a prevenção aos florestais e o combate aos bombeiros.
Na minha opinião, a prevenção e o combate são duas ações que fazem parte de uma mesma realidade, que é a gestão dos incêndios florestais. Esta gestão é realizada em diferentes tempos: muito antes, antes, durante e depois. Qualquer pessoa ou entidade pode e deve trabalhar antes, durante ou depois, para minimizar a incidência dos incêndios, a sua propagação e os seus efeitos. É certo que chamamos prevenção ao que se faz antes, para evitar que os incêndios ocorram. Também é certo que determinadas pessoas e instituições estão mais preparadas e qualificadas para realizar umas tarefas do que outras. Mas de modo algum podemos dizer que tal atividade é mais importante do que outra, ou que um dado grupo profissional tem mais relevância que outro.
Também no campo científico encontrei a mesma tendência para rotular as pessoas e as instituições, consoante a sua área de especialização. Por um critério ou outro, colocavam-se rótulos nas pessoas ou nos seus trabalhos e criavam-se dificuldades para os que não tivessem as etiquetas adequadas.
Esta tendência para rotular tudo persiste, não apenas no seguimento dos exemplos que referi, mas de outros mais atuais.
Um caso muito comum é o de mudar os rótulos, embora o conteúdo se mantenha o mesmo. Um exemplo notável é o do Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), que nos últimos 20 anos já adotou, pelo menos, os seguintes rótulos: Direção-Geral das Florestas, Direção-Geral dos Recursos Florestais, Instituto Florestal, Autoridade Florestal e agora ICNF, não necessariamente por esta ordem. Não compreendo a vantagem destas mudanças e admito que não seja fácil manter a identidade e “vestir a camisola” de uma instituição que está sempre a mudar de nome.
Os próprios incêndios florestais parece que mudaram de designação, passando agora a chamar-se incêndios rurais. Sendo certo que os incêndios queimam muito mais do que as florestas, a designação de “incêndios florestais” está há muito firmada na nossa cultura científica e também na linguagem corrente. Concordo que os incêndios não se limitam a percorrer os espaços florestais e que atingem de um modo geral as áreas rurais. Mas como temos visto, particularmente em 2017, destroem igualmente as casas, as aldeias e as indústrias.
Sempre ouvi dizer que era preciso fomentar a prevenção, para não se ter de investir tanto no combate. A vários decisores políticos ouvi dizer que a partir de agora vamos passar a gastar mais na prevenção do que no combate. Tendo perguntado a alguns deles se sabiam quanto se estava a gastar numa ou noutra atividade, não sabiam responder. É fácil justificar isto, mas o discurso continua a ser o mesmo. É muito difícil estimar o que se gasta em prevenção, ao passo que é relativamente fácil determinar o que se gasta em combate. Quase que basta saber o que se gasta com os meios aéreos, pois são os que consomem a maior parte da verba. É, no entanto, importante que o país saiba que não se tem gasto mais em prevenção, ao longo das últimas dezenas de anos, por vontade política. Ao longo dos anos, Portugal tem tido ao seu dispor centenas de milhões de euros, que poderia ter investido melhor em prevenção, para minimizar o impacto dos incêndios, mas não o fez, por opções técnicas erradas, por decisões politicas desadequadas, por má gestão dos dinheiros públicos, ou por falta de vontade.
Na reforma do sistema de gestão dos incêndios, que está em curso, continuo a não vislumbrar reformas estruturais de fundo, que me convença que estamos a sair daquele caminho. Encontro sim uma mudança de nomes e de rótulos.
Apesar do propalado reforço da atividade de prevenção, se excluirmos a limpeza da vegetação em torno das casas, pouco se vê de melhoria da gestão florestal e da criação de valor e riqueza na economia rural, que proporcione condições de vida mais dignas a quem vive dela e não apenas às grandes empresas. Em boa parte, por efeito dos incêndios de 2017, vastas regiões do país estão ainda mais pobres do que a média e vai-se cavando o fosso da desigualdade entre as regiões. Para quando a convergência entre as regiões?
Ouço falar de qualificação das pessoas, mas não vejo serem tomadas medidas de fundo para se promover tal. Fala-se de incorporar o conhecimento científico nas operações, mas pergunto-me: o que fez o país para que tal conhecimento nesta área fosse desenvolvido ao longo dos anos anteriores? Devo reconhecer que no ano corrente o Governo lançou um programa de apoio à investigação científica na área dos incêndios florestais. Como é lógico, a formação de uma comunidade científica especializada não se forma de um dia para o outro.
Curiosamente, no combate criou-se um novo rótulo: bombeiros-bombeiros e bombeiros-florestais. Na realidade este rótulo não é novo — a história repete-se —, pois em 2005 já ouvira a mesma ideia.
Apesar dos argumentos pouco convincentes que tenho ouvido em defesa dela, considero ser completamente inoportuna e inadequada esta divisão adicional. Custa-me admitir que uma reforma do sistema tenha o seu foco em criar mais uns grupos e lhes atribuir os respetivos rótulos.
Por fim parece-me desajustada a politização — no sentido da partidarização — do problema dos incêndios. Já tive ocasião de dizer que considero que foram vários os governos, de diversos partidos, que conduziram o nosso sistema agro-florestal ao estado em que está. Foram muitas as coisas boas ou menos boas que foram feitas ao longo das últimas dezenas de anos, para que algum grupo partidário se possa arvorar como sendo o detentor do bom comportamento nesta área. Por isso é bom que cada um reconheça a parte que tem, na situação a que chegámos e veja o que pode fazer para a melhorar, em vez de estar a atirar pedras aos telhados dos outros, ou a rejeitar uma proposta, apenas porque tem o rótulo de outra força partidária.
Os incêndios são um inimigo comum a todos nós. Não faz por isso sentido que andemos com divisões ou com etiquetas, presumindo que este rótulo vale mais do que outro. O problema dos incêndios é tão grande que todos somos ainda muito poucos para o enfrentar. Será pior ainda se cada um se puser em bicos de pés ou a afastar os outros, para se superiorizar.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico