Alemanha tenta mudar lei de aborto do tempo dos nazis

Coligação está dividida, mas principais partidos parecem aproximar-se de um compromisso. Os médicos podem fazer interrupções da gravidez, mas não podem anunciar que as fazem.

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Manifestação por direitos reprodutivos em Berlim OMER MESSINGER/EPA

O caso de uma multa a uma médica que informava sobre interrupção voluntária da gravidez no seu site abriu um debate político na "grande coligação" alemã, com os partidos divididos: sociais-democratas querem alterar um artigo da lei, CDU e CSU preferiam manter tudo como está. 

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O caso de uma multa a uma médica que informava sobre interrupção voluntária da gravidez no seu site abriu um debate político na "grande coligação" alemã, com os partidos divididos: sociais-democratas querem alterar um artigo da lei, CDU e CSU preferiam manter tudo como está. 

A lei sobre a interrupção voluntária da gravidez (IVG) na Alemanha é cheia de particularidades. Abortar é crime (excepto em casos de violação, perigo para a saúde da mãe ou criança), mas interrupções feitas até às 12 semanas não são alvo de acção judicial se a mulher receber aconselhamento e esperar três dias até ao procedimento.

Os médicos podem fazer interrupções, mas não podem anunciar que as fazem. É o Artigo 219a. E este está a tornar-se numa arma dos opositores do direito à IVG: em 2014 houve 27 queixas contra médicos que publicitam abortos, no ano seguinte foram 35. A questão é que informar da possibilidade é considerado publicitar.

Em Novembro, Kristina Hänel, médica em Giessen, cidade perto de Frankfurt, foi condenada a uma multa de 6000 euros por mencionar no seu site  que na clínica é possível fazer interrupção da gravidez e por enviar por email, a quem o peça, um ficheiro com indicações sobre o procedimento, os requisitos legais, e informação de potenciais complicações.

“Sou médica e estou a ser condenada porque informo e trato mulheres”, disse Hänel, anunciando que iria contestar a decisão judicial (manteve o seu site tal como estava) e mencionou que o artigo vem do tempo do nazismo. Uma petição começada por Hänel para mudar a lei teve mais de 150 mil assinaturas.

Muitos alemães não conheceriam até então que o artigo tinha sido introduzido em 1933 pelo regime de Hitler, entre várias medidas para criminalizar médicos judeus, diz o diário britânico The Guardian. Mais tarde, o regime nazi desencorajou fortemente e depois criminalizou abortos de mulheres arianas, excepto quando houvesse riscos de deficiência, mas encorajava interrupções de gravidezes de mulheres não arianas.

Na altura da reunificação, a lei da então Republica Democrática era mais liberal do que a da República Federal, e a dificuldade da decisão sobre qual seria a legislação nacional ficou bem espelhada numa sessão de 16 horas de debate parlamentar em Bona em 1992.

O Parlamento decidiu autorizar interrupções no primeiro trimestre de gravidez, mas três anos depois, o Tribunal Constitucional recusou a liberalização (como tinha feito em 1975), citando o direito à vida e protecção legal do feto. O próprio tribunal sugeriu que as interrupções no primeiro trimestre não fossem punidas.

A cláusula que proíbe anúncios ou informação pretendia que o procedimento não fosse banalizado. Mas na prática, o Artigo 219a significa que muitas mulheres terão dificuldade em encontrar médicos que o realizem (outro obstáculo é o preço: o custo é de 350 a 500 euros, e os seguros apenas cobrem os custos em alguns casos de violação; além disso, há zonas do país, especialmente no Sul católico, com poucas opções).

Promessas do SPD

Na sequência do caso de Hänel, o SPD prometeu apoiar uma mudança na lei, quando esperava ficar na oposição. Quando entrou na “grande coligação” com Angela Merkel, o partido concordou com a sugestão da chanceler para se tentar uma solução de compromisso.

O SPD – que quer provar que não vai apagar-se na “grande coligação” – espera que a chanceler mantenha a palavra. “Ninguém quer anúncios na televisão ou cartões de promoção para interrupções de gravidez”, insistiu a ministra da Justiça Katarina Barley, que irá propor uma formulação alternativa do artigo, numa entrevista ao jornal Die Zeit. “Informação não é publicidade.” A ministra da Família, Franziska Giffey, também se declarou favorável a uma mudança, mencionando o “direito elementar à informação”.

O ministro da Saúde, Jens Spahn, da ala mais conservadora da CDU, começou por reagir ao debate com uma comparação entre a defesa da vida de pessoas e animais, dizendo que entre os “defensores da publicidade ao aborto” há pessoas que “são intransigentes quando se trata de animais”.

Mas, entretanto, Spahn assinalou disponibilidade para discutir uma resposta “à questão da necessidade de informação”. Já a CSU, o partido-gémeo da CDU na Baviera, rejeita qualquer mudança. “Não toquem no Artigo 219a”, disse o novo líder, Markus Soder, à revista Der Spiegel.