Fúria e revolta em Kemerovo, onde tudo falhou

Familiares das vítimas e habitantes da cidade onde um incêndio matou dezenas de crianças querem justiça e acusam autoridades de negligência. Putin prometeu investigar tudo e todos.

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Manifestantes concentrados em frente ao edifício da administração regional de Kemerovo EPA/FEDOR BARANOV

Igor Vostrikov já não tem nada a perder. Foi isto que o homem que perdeu a mulher, a irmã e três filhos, com idades entre os dois e os sete anos, quis dizer aos milhares que se concentraram na cidade russa de Kemerovo para exigir justiça. A família tinha-se reunido para passar a tarde de domingo no cinema quando foram surpreendidos pelas chamas que arrasavam o centro comercial Cereja de Inverno. Igor ainda conseguiu falar com a mulher por telemóvel. “Não havia pânico, ela estava a despedir-se.”

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Igor Vostrikov já não tem nada a perder. Foi isto que o homem que perdeu a mulher, a irmã e três filhos, com idades entre os dois e os sete anos, quis dizer aos milhares que se concentraram na cidade russa de Kemerovo para exigir justiça. A família tinha-se reunido para passar a tarde de domingo no cinema quando foram surpreendidos pelas chamas que arrasavam o centro comercial Cereja de Inverno. Igor ainda conseguiu falar com a mulher por telemóvel. “Não havia pânico, ela estava a despedir-se.”

A tragédia que se abateu sobre a cidade siberiana, onde um incêndio num centro comercial no domingo causou a morte a pelo menos 64 pessoas, incluindo 41 crianças, levou milhares de pessoas a unirem-se em protesto contra a resposta ineficaz das autoridades e a cultura de corrupção.

A raiva dos habitantes da cidade mineira dirigiu-se sobretudo para os responsáveis locais, embora se tenham ouvido pedidos de demissão para o Presidente russo Vladimir Putin, reeleito há duas semanas para mais seis anos no poder. “Corrupção mata!” e “Digam a verdade” eram algumas das mensagens que os manifestantes afixaram em cartazes enquanto se concentravam em frente do edifício da administração regional. Os manifestantes pediram a demissão do governador Aman Tuleiev, no cargo desde 1997.

Os habitantes de Kemerovo sentem que a tragédia foi desvalorizada pelas autoridades nacionais. O incêndio teve início durante a tarde de domingo, mas só passadas muitas horas é que os canais televisivos nacionais começaram a noticiá-lo. Na segunda-feira, o Kremlin limitou-se a emitir uma declaração escrita em que Putin manifestava pesar pela tragédia e em que era decretado um luto com incidência apenas local – esta terça-feira, foram decretados três dias de luto nacional.

A desconfiança entre os habitantes é tão grande que até a contabilização do número de vítimas é alvo de dúvida. Um grupo de familiares compilou uma lista de 85 pessoas, na sua maioria crianças, que continuam desaparecidas. O vice-governador, Sergei Tsivilev, ajoelhou-se e pediu desculpas perante as pessoas que protestavam.

Dois dias depois do incêndio, Putin deslocou-se à cidade localizada a 3600 quilómetros de Moscovo para deixar flores num memorial às vítimas e visitar alguns dos feridos, mas não se encontrou com a população. Num encontro com responsáveis locais, manifestou a sua indignação e exigiu o apuramento de responsabilidades. “O que é que se passou aqui? Isto não é uma guerra ou uma emissão inesperada de metano numa mina”, afirmou o líder russo durante o encontro.

Putin falou em “negligência criminosa” e prometeu que tudo será investigado. “Todos serão investigados, um a um, desde aqueles que emitiram licenças aos que deveriam ter garantido a segurança, sobretudo a empresa de segurança privada, cujo guarda esteve parado sem fazer nada e falhou quando devia ter carregado no botão [de alarme]”, disse Putin, citado pela agência estatal Tass.

Condolências internacionais

Apesar do clima de isolamento diplomático que a Rússia atravessa – com o anúncio da maior expulsão de diplomatas russos de países europeus desde o fim da Guerra Fria – foram vários os governos estrangeiros que enviaram condolências por causa da tragédia, incluindo o Reino Unido, que acusa o Kremlin de ter dado ordens para matar o ex-espião Sergei Skripal em solo britânico.

O incêndio começou durante a tarde, quando o centro comercial Cereja de Inverno estava cheio de famílias e crianças que se preparavam para o início das férias escolares. O fogo terá tido início na zona de jogos infantis do complexo, mas as causas estão ainda por apurar. As investigações preliminares dizem que as saídas de emergência estavam bloqueadas quando o incêndio deflagrou, e quase toda a gente foi apanhada desprevenida pelo fogo por causa da ausência de alarme.

O presidente do Comité de Investigação, Aleksander Bastrikin, disse que o sistema de alarme estava desligado pelo menos desde 19 de Março. Um funcionário do centro comercial disse a um site russo que nos seis meses em que lá trabalhou não viu qualquer extintor. Foram detidas cinco pessoas ligadas à administração do edifício e à segurança.

Para muitas das pessoas que se encontravam no local, a única possibilidade de escaparem às chamas foi atirando-se pelas pequenas janelas de alturas elevadas. Uma criança de 11 anos está em coma depois de ter caído do último andar do centro.

O Cereja de Inverno é um complexo de 23 mil metros quadrados que, para além de uma zona de lojas, inclui uma parte de jogos infantis – o incêndio terá começado numa piscina de bolas de espuma de plástico facilmente inflamáveis – e até um pequeno jardim zoológico. O centro foi construído em 2013 e recebeu uma inspecção às condições de segurança pela última vez em 2016.