APAV teme que vítimas de crimes tenham de esperar ainda mais por compensação
Governo propõe que, além de tratar destes processos, Comissão de Protecção de Vítimas de Crimes avalie e financie projectos de protecção das vítimas.
A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) arrasou a proposta do Governo que redefine a missão da Comissão de Protecção de Vítimas de Crimes (CPVC), um órgão administrativo independente que funciona junto do Ministério da Justiça. Teme que o alargamento de funções venha “deteriorar ainda mais a capacidade de resposta” e “prolongar o tempo de espera”.
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A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) arrasou a proposta do Governo que redefine a missão da Comissão de Protecção de Vítimas de Crimes (CPVC), um órgão administrativo independente que funciona junto do Ministério da Justiça. Teme que o alargamento de funções venha “deteriorar ainda mais a capacidade de resposta” e “prolongar o tempo de espera”.
De acordo com a proposta aprovada em Conselho de Ministros no dia 22 de Fevereiro, as vítimas especialmente vulneráveis têm direito a receber uma compensação financeira do Estado, caso a indemnização não possa ser suportada pelo autor do crime. As vítimas que, por causa de um crime, se encontrem em situação de insuficiência económica podem, antes de concluída a instrução do processo, beneficiar temporariamente de uma compensação mensal que não pode ultrapassar o salário mínimo nacional. Além de tratar desses processos, a CPVC deverá prestar informação a vítimas de crime em geral, através da Internet, e financiar entidades privadas que promovam os direitos e a protecção das vítimas.
O parecer da APAV começa por criticar este alargamento de funções. Instruir e decidir processos de indemnização, sublinha, “não tem qualquer relação” com avaliar projectos e actividades de promoção dos direitos e da protecção de vítimas de crime. A comissão é composta por operadores judiciais. A nova tarefa implicará fazer avaliações multidisciplinares e exigirá “uma visão mais abrangente e sobretudo um leque mais diversificado de competências e saberes”.
“Não se vislumbra na proposta ora em apreciação qualquer iniciativa no sentido de dotar a comissão de uma equipa mais vasta, quer do ponto de vista técnico, quer administrativo”, menciona o documento. Continuará a ser composta por um presidente e um vice-presidente indicados pelo membro do Governo que tutela a Justiça, um magistrado apontado pelo Conselho Superior da Magistratura, outro pelo Ministério Público e um advogado pela respectiva Ordem. A Secretaria-Geral do Ministério da Justiça continuará a garantir o apoio técnico, administrativo e logístico.
“Teme-se que este acréscimo de trabalho, sem o correspondente crescimento de uma estrutura que já actualmente se revela deficitária, venha deteriorar ainda mais a capacidade de resposta e a qualidade da mesma e prolongar o tempo de espera dos cidadãos”, salienta a APAV.
Neste momento, o regime só abrange vítimas de crime violento e violência doméstica. Os pedidos vão entrando (157 em 2012, 257 em 2013, 248 em 2014, 331 em 2015, 311 em 2016, 293 em 2017) e aguardam anos, apesar de a lei prever que a instrução esteja concluída no prazo de um mês. É que a comissão esteve parada e tem estado a recuperar atraso. Segundo o presidente daquele órgão, Carlos Anjos, as vítimas de violência doméstica já recebem resposta dentro de poucos meses, mas as de crime violento não – em Fevereiro ainda estavam a decidir os últimos pedidos de 2015.
Para já, a comissão funciona com verba proveniente do Orçamento do Estado. Como essa verba não chega, todos os anos tem havido transferências do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos de Justiça. A lei prevê ainda o recurso a taxas e contribuições, bem como doações, heranças e legados.
Abre-se agora a porta às “quantias fixadas a título de injunção pecuniária no âmbito da suspensão provisória do processo ou de contribuição monetária no âmbito dos deveres impostos na suspensão da execução da pena de prisão”. A proposta, que está na primeira comissão da Assembleia da República e deverá ir a plenário no dia 6 de Abril, diz mesmo que o Ministério Público e os tribunais “devem eleger tendencialmente a Comissão como destinatária das injunções pecuniárias”.
“Esta quase monopolização poderá prejudicar uma fonte de financiamento de diversas entidades da sociedade civil, na medida em que a canalização de algumas injunções para estas organizações pode revelar-se – e tem sido – um incentivo ao trabalho por elas desenvolvido em prol das vítimas de crime”, critica a APAV, que é uma das principais beneficiárias do actual regime.
A Ordem dos Advogados já alertara o Governo para isto. Aquela prioridade “pode desvirtuar as características da injunção imposta e, sem dúvida, contribuir para retirar a outras instituições de enorme relevo social uma fonte de financiamento que pode ser absolutamente fundamental à persecução dos seus desideratos”, avisou o bastonário Guilherme Figueiredo, num parecer emitido em Maio de 2017. “É função social do Estado assegurar a subsistência condigna desta Comissão e não, como pretendido, alavancar o seu funcionamento nas receitas que resultam das imposições injuntivas.”
Não é tudo. A comissão é que irá “definir as orientações e os critérios gerais” quer para a concessão de compensações às vítimas de crime, quer para a atribuição de apoio financeiro a entidades privadas que apresentem candidaturas a financiamento de projectos. E isso também preocupa a APAV.
Parece-lhe que os actuais critérios, “sendo razoavelmente objectivos, garantem melhor a certeza e a segurança jurídicos”. Mesmo assim, têm dado “azo a interpretações que nenhuma correspondência encontram no texto da lei”. Como? “A jurisprudência recente da comissão exclui automaticamente o direito a indemnização de vítimas que ainda residam com o/a agressor(a) (quando tal pode acontecer, por exemplo, por razões de dependência económica) ou tenham um(a) novo(a) companheiro(a) (o que não significa obrigatoriamente que a situação de carência económica já não se verifique).”
A Assembleia da República obterá outros pareceres sobre a proposta. Já foram pedidos ao Conselho Superior da Magistratura, ao Conselho Superior do Ministério Público, à Ordem dos Advogados, à Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens e ao Alto Comissariado para as Migrações.