Reconstituído o genoma do primeiro mulato (que se conhece) na Islândia através dos seus descendentes
No início do século XIX, um escravo mulato conseguiu fugir da Dinamarca para a Islândia, onde se tornou agricultor, casou e teve filhos. Um grupo de cientistas recriou agora a metade africana do seu genoma através de 182 descendentes seus vivos.
A história de vida de Hans Jonathan é uma autêntica odisseia. Nasceu no final do século XVIII numa colónia da Dinamarca e estava praticamente predestinado a ser um escravo. Era filho de uma mãe escrava negra. Mais tarde, partiu para a Dinamarca, onde chegou a combater nas guerras napoleónicas e foi considerado um “herói” nacional. Tinha tudo para ser um homem livre, mas a sua proprietária pôs o caso em tribunal e o juiz condenou-o a voltar às colónias. Hans Jonathan conseguiu fugir para um sítio remoto: a Islândia, tornando-se um dos primeiros mulatos a viver naquele país nórdico. Agora, quase 200 anos depois da sua morte, uma equipa de cientistas, da qual faz parte Luísa Pereira, geneticista do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S) da Universidade do Porto, conseguiu reconstituir quase 40% da metade africana do genoma de Hans Jonathan através da análise genética de 182 descendentes seus.
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A história de vida de Hans Jonathan é uma autêntica odisseia. Nasceu no final do século XVIII numa colónia da Dinamarca e estava praticamente predestinado a ser um escravo. Era filho de uma mãe escrava negra. Mais tarde, partiu para a Dinamarca, onde chegou a combater nas guerras napoleónicas e foi considerado um “herói” nacional. Tinha tudo para ser um homem livre, mas a sua proprietária pôs o caso em tribunal e o juiz condenou-o a voltar às colónias. Hans Jonathan conseguiu fugir para um sítio remoto: a Islândia, tornando-se um dos primeiros mulatos a viver naquele país nórdico. Agora, quase 200 anos depois da sua morte, uma equipa de cientistas, da qual faz parte Luísa Pereira, geneticista do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S) da Universidade do Porto, conseguiu reconstituir quase 40% da metade africana do genoma de Hans Jonathan através da análise genética de 182 descendentes seus.
Doze de Abril de 1784. Hans Jonathan nasceu em Santa Cruz, uma ilha no mar das Caraíbas, na altura uma colónia dinamarquesa e agora dos Estados Unidos. “Tornou-se claro, depois de passarem poucas semanas, que o filho de Emilia Regina era um mulato, o rebento de uma mãe negra e de um pai branco”, lê-se no livro biográfico The Man Who Stole Himself: The Slave Odyssey of Hans Jonathan (The University of Chicago Press, 2016), do antropólogo da Universidade da Islândia Gísli Palsson. A sua mãe também já tinha nascido escrava nesta colónia e pertencia à plantação de açúcar da família Schimmelmann.
“Antes de ter um ano, em 1785, Hans Jonathan foi registado no memorando de escravos pertencentes aos Schimmelmanns”, refere-se no livro. Não se sabe quem era o seu pai, apenas que era branco. Gísli Palsson indica várias possibilidades como Ludvig Schimmelmann, o seu proprietário, o conde Adam Moltke e o secretário privado dos proprietários Hans Gram. Todos estiveram em Santa Cruz perto da altura do nascimento de Hans Jonathan.
Até aos seus sete ou oito anos, Hans Jonathan passou a vida nas plantações de açúcar. É por essa idade, com a decadência dessas plantações, que embarca para casa dos seus proprietários em Copenhaga (Dinamarca), nomeadamente para a mansão no número 23 da rua Amaliegade. Aí, foi crescendo entre os edifícios dessa rua e dentro do jardim da mansão. “Hans Jonathan teve uma vida mais confortável do que a maioria das crianças escravas. Usufruiu de muitos privilégios que a elite social dinamarquesa considerava indispensáveis. Parece que teve lições de música, por exemplo, tal como sabemos pelo seu amor pelo violino ao longo da vida. Também aprendeu a ler, a escrever e matemática”, conta na biografia Gísli Palsson.
A viúva contra o mulato
Em 1801, decidiu ingressar na Marinha dinamarquesa para combater na Batalha de Copenhaga (guerras napoleónicas) contra a Inglaterra. Mesmo contra a vontade da sua proprietária, Henrietta Schimmelmann, viúva de Ludvig Schimmelmann, Hans Jonathan fugiu e participou no conflito.
A batalha naval aconteceu fora da cidade e os ingleses estavam em superioridade numérica e eram mais experientes do que os dinamarqueses. Hans Jonathan estava a bordo do navio Charlotte Amalie, que enfrentava duas embarcações inimigas. A Inglaterra acabou por vencer. Houve cerca de duas mil baixas dinamarquesas e vários feridos. Hans Jonathan sobreviveu, recebeu dinheiro pelo seu serviço (talvez o primeiro pagamento que teve na vida e terá usado uma parte para comprar um violino) e foi considerado um “herói” na Dinamarca.
Por isso, tornou-se um homem livre por algum tempo. “A 14 de Maio de 1801 o comandante Bille [da Marinha dinamarquesa] atribuiu a Hans Jonathan a sua liberdade”, lê-se no livro. “Aos 17 anos, Hans Jonathan não era mais escravo ou pelo menos parecia.” Mas a sua “proprietária” decidiu levar o caso a tribunal, que ficou conhecido como A Viúva do General vs. o Mulato, algo que se assemelha a uma disputa entre um Golias e um David. Na Dinamarca, a escravatura já tinha sido abolida, mas o tribunal acabou por afirmar que ele ainda era um escravo, propriedade de Henrietta Schimmelmann e que deveria voltar às colónias da Dinamarca, onde a escravatura ainda era legal.
Hans Jonathan fugiu para a Islândia. Pelo que se sabe, não terá tido grandes dificuldades em integrar-se no país (segundo alguns autores), tornando-se primeiro ajudante comercial e depois agricultor. “Hans Jonathan, além de um homem livre, era também o pilar de uma comunidade. Foi o tempo de aproveitar a sua vida: gerir um negócio, ir pescar com o seu barco, cuidar do seu rebanho, tocar violino – apaziguar-se e começar uma família”, escreve Gísli Palsson.
Em 1820, casou-se com a islandesa Katrin Antoniusdottir e tiveram três filhos: dois chegaram à idade adulta. Hans Jonathan acabou por morrer aos 43 anos, provavelmente devido a “um acidente vascular cerebral” (de acordo com a sua certidão de óbito) e terá sido enterrado num cemitério na Islândia. Contudo, como nota Gísli Palsson, “o seu túmulo não está marcado e a localização precisa é desconhecida.” Mesmo assim, deixou um legado com peripécias e descendentes que se dispersaram por muitos sítios na Islândia.
“Imaginar alguém de origem marcadamente africana a vaguear pela Islândia de 1802, a fundar família, deixando filhos perfeitamente integrados na comunidade, leva-nos a um cenário improvável”, lê-se num comunicado do i3S sobre o trabalho publicado na revista científica Nature Genetics. Os cientistas quiseram então contar esta história através da genética.
“O facto de ter acontecido na Islândia é uma situação especial e permitiu que fizéssemos este estudo”, adianta Luísa Pereira. A Islândia tem registos genealógicos muito completos, o que permitiu identificar melhor os descendentes ao longo das gerações. Além disso, tem a empresa deCODE, que desde os anos 90 está a caracterizar o genoma da população islandesa (o coordenador deste estudo, Agnar Helgason, faz parte da deCODE). A empresa já terá recolhido dados genéticos de mais de metade da população adulta islandesa, segundo o comunicado.
Ao todo, foram identificados 788 descendentes de Hans Jonathan nos registos genealógicos e 182 participaram neste estudo, que faz parte de um programa de doutoramento Marie Curie dedicado ao estudo do impacto da escravatura transatlântica em diferentes áreas da ciência, como a genética e a arqueologia.
Montar um puzzle
Os cientistas conseguiram reconstituir 38% da parte africana e materna do genoma (ADN do núcleo das células) de Hans Jonathan. O valor teórico para se reconstituir a parte materna era 50%, por isso conseguiu-se recriar quase toda essa parte.
E como se fez? Tal como nós, Hans Jonathan recebeu 23 pares de cromossomas, metade da parte da mãe (africana) e metade da parte do pai (europeu). “Nas células que deram origem aos seus espermatozóides ocorreu uma divisão chamada ‘meiose’, durante a qual cada par de cromossomas se uniu em certos locais, havendo troca de material genético entre eles, num processo designado ‘recombinação’”, explica a geneticista. “Originaram-se assim cromossomas códigos de barras com partes paternas intercaladas com partes maternas”, conta, acrescentando que os fenómenos de recombinação são altamente aleatórios e que cada um dos espermatozóides de Hans Jonathan tinha um puzzle de material genético das duas partes diferente.
“Misturou-se a informação que veio de cada um dos ancestrais. Isto é um fenómeno natural que aumenta a diversidade genética por novas combinações de variantes que foram transmitidas pela mãe e pelo pai”, resume Luísa Pereira. A equipa foi então encontrar os pedaços africanos no genoma de 182 descendentes de Hans Jonathan ou, como quem diz, montar um puzzle a partir de um puzzle.
À medida que as gerações passaram, esses pedaços de material genético africano foram ficando mais pequenos, porque nas células sexuais dos descendentes de Hans Jonathan ocorreram mais fenómenos de recombinação. Mas como se procuraram pedaços africanos em genomas islandeses tornou-se fácil identificá-los. Afinal, esses pedacinhos são muito diferentes nos islandeses. “Não tivemos capacidade de distinguir a parte europeia de Hans Jonathan porque é muito semelhante à dos outros ancestrais islandeses que se cruzaram com ele e os seus descendentes. A parte africana já foi mais fácil. É mesmo um puzzle com pedacinhos africanos espalhados por várias pessoas”, diz a cientista.
“Pela primeira vez, foi possível reconstituir metade de um genoma de uma pessoa que viveu há cerca de 200 anos, analisando apenas material biológico dos seus descendentes”, destaca ainda Luísa Pereira. Além disso, conseguiu-se perceber qual a origem geográfica da mãe de Hans Jonathan, Emilia Regina. E foi aqui que Luísa Pereira também entrou, porque tem vindo a estudar e a caracterizar a diversidade de várias populações africanas. O mais provável é que Emilia Regina seja descendente de africanos de uma região que se estende do Benim, passa pela Nigéria e vai até aos Camarões.
“O objectivo [do estudo] era mesmo contar esta história bonita”, realça Luísa Pereira sobre as aplicações do trabalho. “Sabe-se que antes dele não houve [nenhum mulato na Islândia]. Outros africanos começaram a aparecer na Islândia no século XX.” Também Gísli Palsson diz o mesmo no seu livro: “Durante o século XX, as pessoas de pele escura tornaram-se mais comuns nas ruas de Reiquejavique [a capital da Islândia].” E escreve mais à frente: “Nas décadas recentes, a Islândia tornou-se um caldeirão cultural colorido, graças, entre outras coisas, a casamentos inter-raciais, viagens internacionais para dentro e para fora, adopções transnacionais e uma afluência de trabalhadores migrantes, refugiados e requerentes de asilo de várias partes do mundo.”
Luísa Pereira diz que também já usou o mesmo método estatístico deste estudo para conseguir mapear genes que protegem contra certas doenças, como a febre de dengue na população de Cuba. Mas, para a geneticista, aqui o importante é mesmo destacar o factor antropológico desta história. “Este indivíduo já viveu numa altura em que se estava a debater muito as questões éticas do que era a escravatura”, nota. “Foi um momento de transição histórica e este indivíduo, de certa maneira, representa a capacidade de alguém que nasceu escravo conseguir obter a sua liberdade, ser integrado num outro país, ter descendentes de uma mulher islandesa e ser aceite pela comunidade.”