A vida debaixo do microscópio das grandes empresas

O Facebook admitiu que milhões de dados dos utilizadores foram vendidos a campanhas políticas, mas o número de utilizadores pouco mudou. Ter empresas a usar os nossos dados começa a ser visto como normal.

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Ilustração de Miguel Feraso Cabral

“Mas qual escândalo do Facebook?” Os problemas de privacidade do Facebook têm feito correr muita tinta nos últimos dias, mas a pergunta ainda se ouve na rua, e de acordo com o fundador, Mark Zuckerberg, são poucos os utilizadores que deixaram mesmo a rede social.

Foi durante o fim-de-semana passado que se descobriu que a empresa tinha escondido a venda de dados pessoais – sobre os gostos, idade, geografia, relações, crenças, medos – de cerca de 50 milhões de utilizadores a uma empresa britânica de recolha e análise de dados, a Cambridge Analytica. Esta, por sua vez, usou-a em várias campanhas políticas: desde a saída do Reino Unido da União Europeia e a corrida de Donald Trump à Casa Branca, a eleições em países como o Quénia e a Nigéria.

O Parlamento Europeu já abriu uma investigação ao caso. A Comissão Federal para o Comércio dos EUA também. O Presidente da Cambridge Analytica foi suspenso, e a expressão “#DeleteFacebook” tornou-se viral noutras redes sociais, com celebridades e empresários a eliminarem as suas contas. Na Internet, porém, ainda há quem descreva a situação como “um exagero” e critique comparações ao sistema de controlo descrito no livro 1984 de George Orwell.

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A aplicação AliPay já usa o conceito de crédito social

Roni, uma estudante chinesa no Reino Unido não faz parte desse grupo. “Temos de saber se a nossa informação é usada e onde é usada”, diz numa chamada de voz com o PÚBLICO, em que a jovem de 25 anos pediu para não utilizarmos o seu nome verdadeiro. Tem muito cuidado sobre aquilo que escreve e partilha online.

Desde 2014 que a China está a desenvolver um sistema social para classificar e hierarquizar cada um dos seus 1,3 mil milhões de cidadãos a partir dos dados pessoais que entregam às aplicações móveis e serviços públicos. Essa pontuação, que varia entre 350 a 950 pontos, pode determinar o acesso ao emprego, o preço dos produtos, o lugar num comboio, o tempo que se passa na fila do aeroporto (e a entrada no avião), e até a pessoa que escolhe para namorar ou a escola onde os filhos estudam. O objectivo é que esteja totalmente operacional em 2020.

Uma das primeiras etapas começou nas redes sociais chinesas para fazer pagamentos. “Nós já temos sistemas de crédito social a ser testados no Alipay e no WeChat Pay. Estas aplicações mostram-nos a nossa pontuação. Se tivermos uma muito alta, podemos receber descontos, empréstimos, ou alugar uma bicicleta de graça. Nestes casos, até é bom”, diz a jovem chinesa depois de enviar uma fotografia da aplicação Alipay onde se vê uma pontuação de 642. “Mas de certeza que guardam informação de todo o tipo, desde o que partilhamos nas redes, aos pagamentos que fazemos. A Sina, a versão chinesa do Twitter é outra que já começou a fazer isto.”

O Zhima Credit (a empresa responsável pelo sistema do Alipay) foi uma das oito empresas que o governo Chinês avisou em 2015 para começar a preparar modelos de crédito. O Baihe, um site de encontros amorosos, é outro dos serviços que o usa. “Eles motivam-nos a aumentar a nossa pontuação, e mostram formas como o podemos fazer”, explica Roni. “Para ser sincera, acho que a maioria das pessoas ainda não acredita que esta informação vai ser utilizada no crédito social quando entrar em vigor.”

Governo versus empresas

O governo chinês também começa a ter dúvidas sobre o uso de dados de grandes multinacionais. Em meados de Fevereiro, o Banco Popular da China revelou preocupações de que os sistemas de crédito construídos pela Tencent e a Alibaba, responsáveis pelo WeChat e pelo AliPay respectivamente, fossem utilizados como ferramentas de marketing para vender produtos, incluindo investimentos perigosos. As diferentes fórmulas utilizadas para calcular a pontuação dos utilizadores eram um mistério, com o número de minutos de exercício diário a fazer parte de algumas métricas.

O conceito de “crédito social” tornou-se num jogo em que os cidadãos competem através de jogos e do tempo que passavam numa aplicação. O governo chinês não desiste do sistema de crédito a partir das novas tecnologias (descrevendo-o como “um mecanismo institucional que valoriza a integridade e penaliza a desonestidade”), mas a Tencent foi obrigada a travar o lançamento nacional do rival da Zhima. Parece que a visão de um mundo onde se sabe tudo dos cidadãos e das organizações não funciona com empresas rivais a controlar os sistemas.

Independentemente da geografia, as grandes tecnológicas tendem a achar que podem analisar, guardar e utilizar os dados que lhes chegam, desde que mantenham a sua confidencialidade. Isto inclui os locais por onde as pessoas passam, as pessoas com quem falam na Internet, e os sites que visitam. O potencial para abuso é enorme, mas há quem critique a origem do debate.

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O conceito de "crédito social tornou-se num jogo em que os cidadãos competem através de jogos e do tempo que passavam numa aplicação Aly Song/Reuter

“Leva as elites políticas nos Estados Unidos e na Europa a achar que todos os problemas que enfrentam por causa do Trump e dos novos movimentos políticos são culpa das redes sociais, dos bots, ou neste caso da Cambridge Analytica”, alerta o investigador e autor Evgeny Morozov, num email enviado ao PÚBLICO. Há anos que o bielorrusso estuda os impactos políticos e sociais da tecnologia. “A grande questão aqui é a conclusão de que os dados e as infra-estruturas que geram têm um grande valor económico, mas já não são nem do Estado nem dos cidadãos.”

Para Morozov, que escreveu um livro dedicado ao lado negro da Internet, é necessário um novo modelo de controlo de dados em que os clientes são os donos. “Têm de ser vistos como mais do que ‘mercadorias’ que podem ser vendidas e transaccionadas no mercado aberto ou negro.”

Afinal, a informação electrónica sobre as pessoas, utilizada para tomar decisões políticas, económicas e sociais já não se recolhe apenas na Internet ou em países autoritários. Começam a surgir cada vez mais cidades equipadas com sensores e monitores que as fazem ser descritas como “inteligentes”. A cidade de Eindhoven, na Holanda, é um exemplo: desde 2014, uma das ruas mais problemáticas (com muitos bares e muitas rixas nocturnas) passou a ter candeeiros de rua equipados com câmaras, microfones, e rastreadores de Wi-Fi que detectam comportamento problemático e avisam as autoridades.

Londres, Barcelona, Singapura, Boston e Dubai são outras cidades com tecnologia que permite monitorizar a poluição do ar, o barulho nas ruas, ou os locais livres em parques de estacionamento. Na grande maioria dos casos, a informação é toda transferida para grandes redes de computadores onde é agregada e anonimizada para retirar conclusões sobre indicadores estatísticos. Ou seja, é impossível conhecer a origem exacta da informação ou seguir pessoas a partir dos dados recolhidos.

Mas há situações em que a tecnologia falha ou as empresas que a controlam abusam. Em 2013, a cidade de Londres foi protagonista de um caso particularmente flagrante quando uma empresa chamada Renew testou um programa com caixotes de reciclagem capazes de seguir o percurso de telemóveis que passavam por perto com o Wi-Fi ligado. Os sensores instalados nos caixotes acediam ao endereço MAC (Media Access Control) dos aparelhos – um identificador físico único associado a um dispositivo que pode ajudar a localizar smartphones perdidos – para determinar percursos diários das pessoas e enviar anúncios personalizados de cafés, restaurantes e lojas nas redondezas. O projecto foi descontinuado assim que a situação veio à tona, e o governo da cidade descobriu: “Independentemente do que é tecnicamente possível, qualquer coisa que funciona a este nível nas estradas tem de ser feito com cuidado, e com o consentimento do público,” lia-se num comunicado publicado na altura.

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Singapura quer utilizar sensores espalhados pela cidade para facilitar a vida dos seus cidadãos Edgar Su/Reuters

Nova directiva europeia não é solução

A situação é um exemplo claro do que Morozov critica. O novo Regulamento Geral para a Protecção de Dados (RGPD) na União Europeia – que entra em vigor dia 25 de Maio – é visto como uma solução pelas autoridades europeias.

Para Portugal, de acordo com um comunicado da Presidência do Conselho de Ministros, o objectivo é "proteger o cidadão face ao tratamento de dados de pessoas em larga escala por grandes empresas e serviços da sociedade de informação". As empresas que desrespeitarem as novas regras serão sujeitas a coimas que podem chegar aos 20 milhões de euros, ou 4% do volume de negócios anual de uma empresa, consoante o valor que for mais alto.

Morozov não se convence. Embora o novo regulamento exija mais transparência, consentimento e responsabilidade pela gestão dos dados, não muda o modelo: quem recolhe os dados é quem os controla.

“O RGPD até podia ser uma boa solução, se estivesse combinada com uma estratégia Europeia ambiciosa para o desenvolvimento da inteligência artificial,” explica o bielorusso. O Google, o Facebook e a chinesa Tencent já têm todas laboratórios dedicados à tecnologia. “Com o desenvolvimento da inteligência artificial nas mãos de grandes empresas, isto torna-as imensamente poderosas e permite que possam, um dia, ditar o acesso que temos de diferentes serviços.”

A União Europeia define dados pessoais como “qualquer tipo de informação relacionada com uma pessoa identificada ou que pode ser identificada”. Ou seja, dados sobre o sistema financeiro, o clima, a poluição, o número de carros a passar numa rua, continuam a ser moeda de troca entre grandes empresas.

Modelo económico como culpado

“O problema com os dados não é legal, é económico,” frisa Morozov. Aos olhos do investigador, a grande culpada é mesmo a mercantilização da informação. É o problema em comum de todos os problemas, desde empresas que criaram anúncios falsos e notícias falsas para ganhar dinheiro à custa das eleições, ao sistema de reciclagem que seguia os londrinos, à Cambridge Analytica que vendeu dados de pessoas que respondiam a um teste psicológico da Internet, ou tinham amigos que respondiam.

“Acabar com o Facebook ou com as redes sociais é tão realístico como dizer ‘acabem com as estradas’ ou ‘acabem com tudo a gás’. As plataformas digitais são parte da infra-estrutura da sociedade”, realça Morozov. “A demissão do Zuckerberg não iria mudar nada.”

Quem depende das redes sociais para falar com familiares que estão longe, pesquisar informação, ou encontrar grupos que partilham os mesmos interesses (por muito obscuros que sejam), não as vai deixar facilmente. Mesmo que o faça, é provável que continue a utilizar outros serviços da mesma empresa: tanto o Instagram, como o serviço de mensagens WhatsApp, por exemplo, pertencem ao Facebook. 

E é o próprio fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, que diz que precisa de mais leis ao nível da publicidade. “Não tenho a certeza sobre se não devemos ser regulamentados, mas adorava ver regulamentação sobre transparência na publicidade”, disse à CNN, numa das muitas entrevistas que fez na quarta-feira à tarde, quando emergiu depois de cinco dias em silêncio desde o início do escândalo de recolha de dados.

Morozov descreve a situação como um empurrão para construir plataformas e serviços que não ponham a identidade digital e electrónica das pessoas nas mãos de anunciantes. “Se não resolvermos o problema agora, vamos ver muitas consequências económicas, como o aumento de desigualdade social”, alerta. “Já não falta muito tempo.”

O debate sobre como o fazer, porém, perdura. Enquanto as soluções demoram na Internet, quem não ignora títulos sobre a falta de privacidade na Internet, dados roubados, e notícias falsas, começa a perder a sensibilidade sobre o tema.

Há sítios onde a privacidade online já nem é vista como um direito. Em conversa com o PÚBLICO, uma produtora chinesa de conteúdo visual que pediu para não ser identificada defende o sistema que o seu país está a tentar impor. “Para ser sincera, eu já não me sinto muito mal. A nossa vida é cada vez mais transparente. Ao menos sabemos o que está a acontecer”.

O futuro que George Orwell imaginou pode não estar assim tão longe. Como comenta um dos utilizadores do Facebook, numa notícia do PÚBLICO sobre o tema: “Mas alguém ainda acha que a partir do momento em que estão numa rede social têm direito a alguma privacidade?”

Editado 27 de Março de 2018: Clarificado que a produtora de conteúdo visual chinesa pediu para não ser identificada, por receio de que falar sobre o tema pudesse ter repercussões no seu trabalho.