"Este é um momento sofrido para o sector artístico"
Duramente criticado pelos atrasos nos apoios às artes e pelas insuficiências do modelo com que quis refundar a relação do Estado com o sector, o secretário de Estado da Cultura admite que há motivos de angústia, mas reitera que este Governo está a reverter progressivamente o cenário de "devastação" herdado do ciclo político anterior.
No final de duas semanas em que se viu duramente criticado no Parlamento por ter frustrado as expectativas de uma reposição do investimento no apoio às artes alimentadas pelo programa eleitoral do PS, e em que assistiu ao endurecimento da contestação do sector, o secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado, diz entender a ansiedade dos artistas que desesperam pelo financiamento que devia ter chegado no início do ano e admite a necessidade de afinar o modelo com que quis refundar a relação do Estado com a criação artística, e que demorou mais de um ano a pôr a funcionar. Lembra que foi preciso fazer renascer das cinzas uma política para a cultura e que "o caminho faz-se caminhando" — até à meta do 1% do Orçamento de Estado (OE) que, defende, "não deve ser descartada".
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No final de duas semanas em que se viu duramente criticado no Parlamento por ter frustrado as expectativas de uma reposição do investimento no apoio às artes alimentadas pelo programa eleitoral do PS, e em que assistiu ao endurecimento da contestação do sector, o secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado, diz entender a ansiedade dos artistas que desesperam pelo financiamento que devia ter chegado no início do ano e admite a necessidade de afinar o modelo com que quis refundar a relação do Estado com a criação artística, e que demorou mais de um ano a pôr a funcionar. Lembra que foi preciso fazer renascer das cinzas uma política para a cultura e que "o caminho faz-se caminhando" — até à meta do 1% do Orçamento de Estado (OE) que, defende, "não deve ser descartada".
Está quase a cumprir dois anos de mandato…
A 14 de Abril.
… e atravessa a pior fase do exercício destas funções, com o sector do cinema e do audiovisual dividido e os protestos da comunidade artística perante os atrasos nos apoios do Estado a ganharem um efeito bola-de-neve, como pôde testemunhar pessoalmente há dias na gala da Sociedade Portuguesa de Autores. Como reage a tanta contestação?
É um momento-charneira e entendo perfeitamente a ansiedade das pessoas. Mas um dos objectivos que têm definido a acção da Secretaria de Estado e do Ministério da Cultura é que o reforço progressivo do financiamento, dentro do quadro de constrangimentos do actual executivo, se faça criando instrumentos importantes para suporte da governação. O sector poderá sempre dizer que o horizonte de financiamento que temos não é o que seria expectável, mas no caso dos apoios sustentados, por exemplo, conseguimos um aumento de 58% em relação ao ciclo anterior (2013-2017), passando de 45,6 a 72 milhões de euros. Não nos esqueçamos de que partimos de um ciclo político absolutamente devastador no que toca à relação do Estado com as artes, com um abandono do sector à sua sorte. Continuamos apostados na correcção progressiva dessa trajectória, mas temos de lidar com os constrangimentos macroeconómicos, e de ter os olhos postos no médio e no longo prazo. O que tem faltado às políticas de cultura é uma visão estratégica. Portanto, a minha reacção só pode ser continuar aqui, a defender os interesses do sector de forma construtiva, e em relação com o próprio sector, como até agora. É natural que os agentes se manifestem, que vocalizem o seu descontentamento: os inícios de ciclo são sempre complexos, e este é tanto mais complexo quanto tem atrás de si um passado muito, muito, muito negativo. A concretização talvez esteja a ser mais lenta do que prevíamos, mas o que interessa é perseverar nessa concretização.
Portanto, nestas últimas duas semanas que, mais do que de ansiedade, foram de contestação, não ponderou demitir-se?
De todo. Não tenho esses ímpetos de desistência. O meu percurso profissional sempre foi feito da vontade de resolver as questões, e de o fazer de forma progressiva, construtiva. Tenho a resiliência do sector.
Em 2016, quando anunciou que todo o modelo de apoio às artes tinha de ser revisto e que precisaria de um ano para o fazer, previa que os primeiros concursos decorrentes do novo modelo abrissem no início do segundo semestre de 2017, com efeitos a partir de Janeiro deste ano. Os concursos abriram, de facto, na última semana de Outubro e até hoje [22 de Março] ainda não estão concluídos. Por que é que não foi possível evitar esta derrapagem?
A construção de um novo modelo é sempre complexa, mas trata-se de um eixo importante de sustentação das políticas culturais que era importantíssimo construir, porque o anterior estava completamente desfasado das expectativas e da evolução do sector. Esse processo iniciou-se assim que chegámos e abriu-se desde logo à participação da comunidade artística. Podíamos ter feito um estudo meramente estatístico e depois passado à construção do modelo; não foi essa a decisão que tomei. Assumo a derrapagem, mas se me perguntam se hoje faria a mesma consulta ao sector respondo que sim.
Foi essa auscultação que provocou a derrapagem?
Essa auscultação desdobrou-se por várias fases. Houve uma primeira fase em que pedimos ao sector para se pronunciar sobre o modelo anterior; a seguir, quisemos apresentar os resultados dessa consulta e as linhas-mestras do novo modelo. Quinhentos agentes de todo o país foram ouvidos pelo secretário de Estado da Cultura e, muito importante, pela directora-geral das Artes: foi o primeiro passo que demos para a qualificação da DGArtes e a sua transformação numa plataforma de escuta do sector, desígnio que continua na ordem do dia. Depois, durante um mês e meio, fomos ouvir o que os agentes tinham a dizer não só em relação ao decreto-lei como em relação aos regulamentos, porque uma grande novidade deste modelo é a sua flexibilidade, que permite uma muito maior adaptação aos resultados do seu teste progressivo. O anterior normativo era totalmente estratificado: havia apenas um decreto-lei e não podemos fazer decretos-lei todos os anos... Essa auscultação foi muito importante, como se pode comprovar comparando os regulamentos que pusemos em consulta pública e a versão final que resultou dos contributos recolhidos, que foram vários e importantes. Volto a dizer que faria esta consulta novamente; em presença de tudo o que se passou anteriormente, e da relação praticamente inexistente entre sector, Estado e Ministério da Cultura...
Que era uma Secretaria de Estado.
Precisamente... Era muito importante retomar a relação.
Os atrasos dos concursos parecem ter acentuado a precarização do sector. Saber que os artistas vão entrar em Abril sem receber, e que com a entrada em funções deste Governo não se alterou a “situação de miséria” instalada no quadriénio anterior, como sublinhava no início da semana uma carta subscrita por mais de 650 actores, é especialmente penoso para um secretário de Estado que vem do terreno?
É penoso e é objecto de grande angústia minha. Eu também já vivi desse lado do sector ao qual continuo a pertencer. Mas devo dizer — e isto não serve para escamotear o atraso, ele existe — que no ciclo anterior os concursos foram lançados em Novembro e só em Junho saíram as propostas de decisão dos júris.
Mas essa era uma anomalia que pretendia corrigir.
E penitencio-me por não o ter feito, mas concedam-me que este atraso se deu em nome de uma relação mais próxima com o sector e sobretudo do respeito pela capacidade do sector para connosco construir algo de novo. Mau grado esses atrasos, não esgotámos o prazo permitido por lei para a saída dos resultados, o que não foi o caso no ciclo anterior.
Vale a pena esperar que um dia os resultados venham a ser anunciados antes do início do período que é suposto financiarem?
Sim. Vamos lançar bienais em 2019 e comprometi-me a acertar o calendário dos resultados dos concursos. Vamos abrir os concursos até ao final do primeiro semestre de 2019 para que decorram no segundo semestre e logo no início de 2020 as candidaturas aprovadas possam receber o financiamento. Este é o meu compromisso, que pretendo absolutamente cumprir.
O Governo anunciou entretanto, a título de emergência, a concessão de uma linha de crédito especial para que as estruturas possam sobreviver até à chegada da primeira tranche do financiamento e também um reforço de 1,5 milhões de euros para os programas de apoio sustentado. Como vai ser distribuído esse excedente?
O anúncio foi feito há dois dias [na passada terça-feira], estamos a trabalhar para definir a forma como vamos reforçar os apoios dentro dos dados que os concursos nos ofereceram em relação às candidaturas, e atendendo à seriação feita pelos vários júris.
O montante vai ser distribuído pelas várias áreas dos concursos?
É a nossa intenção.
Beneficiando as estruturas que ficaram classificadas nos lugares imediatamente a seguir às candidaturas apoiadas?
Exactamente.
Vai ser preciso, portanto, esperar pelos resultados do teatro.
Naturalmente.
Este reforço colocou o montante global disponível para os programas de apoio sustentado em 16,5 milhões de euros. Ainda estamos longe dos 19,8 milhões de 2009, cuja reposição o sector tem reclamado como patamar mínimo para a regeneração do tecido artístico. Essa meta é possível?
Já foi anunciada pelo senhor primeiro-ministro a partir de 2019. Vai ser honrada e até ultrapassada.
Não haverá qualquer reforço suplementar até lá?
Não nos esqueçamos de que, para além dos apoios sustentados, há mais 2,6 milhões de euros que vão ser orientados para outras linhas concursais. Algumas até já foram abertas, como os apoios à internacionalização e os apoios simplificados; outras irão sendo abertas ao longo do ano para completar a acção de financiamento do sector artístico em 2018.
Nas últimas semanas foi muito criticado o facto de estes concursos permitirem que pequenas companhias independentes e estruturas de programação fortemente financiadas pelo Estado através das autarquias — como a cooperativa Oficina/Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, ou o Centro de Artes e Espectáculos de Viseu/Teatro Viriato — disputem as mesmas verbas. A demarcação entre o apoio à criação e o apoio à programação foi de resto uma das reivindicações feitas pelo sector durante o período de auscultação. Porque não a atendeu?
Algumas dessas estruturas já estavam dentro do sistema de financiamento: eram objecto de apoios tripartidos.
Mas não disputavam as mesmas verbas dentro dos mesmos concursos.
Certamente, até porque não havia lugar a concurso, tratava-se de uma espécie de contrato avalizado pela DGArtes sem recurso a um júri externo. Achámos, por se tratar do primeiro ciclo de concursos à luz deste novo modelo, que estas estruturas deviam estar presentes, o que não quer dizer que em futuros concursos a situação não venha a ser corrigida — é possível construir recortes dentro do novo modelo, nomeadamente separando a criação da programação. É preciso ver que, ainda que essas entidades sejam de facto apoiadas pelas câmaras, são também elas próprias criadoras de oportunidades para as estruturas de criação, e foi nessa perspectiva que demos o passo de as incluir. Temos de o avaliar. E, já que falamos de avaliação, gostaria de dizer que, relativamente aos concursos já tramitados, verificamos um crescimento de 33% no universo de candidaturas apoiadas, um crescimento da capacidade de financiamento de cada estrutura em cerca de 35% — o que dá qualquer coisa como mais 25 mil euros por candidatura, em média — e, finalmente, que 58% dos candidatos aumentam o seu financiamento. Estes indicadores vão ao encontro dos objectivos que pretendíamos alcançar: o alargamento da abrangência, em nome de uma renovação do próprio tecido, e uma qualificação do financiamento a cada uma das estruturas. Não nos esqueçamos de que o financiamento por estrutura apoiada sobe para o dobro: garantimos um mínimo de 60% do montante pedido, o que permite combater a precaridade de que o sector se queixa com razão, e contratualizar relações laborais totalmente diferentes da prática habitual da colaboração a recibos verdes.
Todavia, há estruturas que têm um historial de relação de financiamento com o Estado e que de repente o perderam porque ele foi arrebatado por estruturas incomparáveis em termos de dimensão e de capacidade de atracção de outras fontes de financiamento públicas. No limite, não se corre o risco de uma canibalização que pode fazer com que esses grandes equipamentos tenham mais dinheiro para programar espectáculos mas menos espectáculos para programar?
Não podemos mandar o bebé fora com a água do banho. Uma coisa é este novo modelo, com as suas qualidades e os seus defeitos, que existem e que podem ser corrigidos; outra coisa são as métricas de financiamento para o fazer funcionar. É preciso ver que fomos confrontados com uma enorme adesão em termos de candidaturas... O que aconteceu no início desta semana foi uma correcção financeira para que pudéssemos demonstrar as virtualidades deste novo modelo, dando-lhe uma sustentação que vá ao encontro das expectativas do sector e também de um histórico de relação com o Estado, que nós não rejeitamos também, de estruturas que há muitos anos são apoiadas. Este processo está a acontecer neste momento, e estamos a reagir à medida que o modelo e os seus resultados nos são revelados. Todos estamos em fase de teste.
Um dos efeitos dos atrasos parece ser a rarefacção da oferta artística, que já começa a ser visível: a agenda de estreias está mais vazia, e quase todas correm pelo lado das instituições como teatros nacionais ou municipais e fundações. Este modelo não agrava o risco de concentração da oferta?
Não acredito que agrave. Essa rarefacção tem a ver com esta expectativa dos concursos. De resto, também tivemos bastante atenção à questão da repartição regional dos apoios, de forma a reequilibrar a actividade [em termos territoriais]. Houve uma altura em que a comunidade artística estava praticamente toda concentrada em Lisboa, onde havia as oportunidades de trabalho. A certa altura, o Porto, com a inversão de políticas públicas em prol da cultura desenvolvidas pela câmara municipal, reapareceu no mapa. Este modelo tem de corresponder à realidade do país — a nova linha do apoio em parceria surge para alavancar a oferta cultural nos territórios onde ela é mais deficitária.
Mesmo que os resultados dos concursos do teatro cheguem no prazo fixado, o próximo dia 30, é provável que festivais como o FIMFA ou o FITEI só venham a receber o financiamento relativo às suas edições de 2018 depois de estas terem acabado... Será a última vez que isto acontece?
Eu não vou deixar de ser secretário de Estado da Cultura — o meu mandato termina daqui a um ano e meio — sem corrigir esta trajectória. 2017 foi ano de construção de um modelo e de lançamento de concursos, dois processos complexos; 2019 será o ano de acerto do calendário.
Já disse que o modelo permite alterações. Hoje mesmo [22 de Março] a REDE emitiu um comunicado defendendo a radical revisão do modelo de apoio, considerando que não corrige o anterior em aspectos fulcrais e que se revelou “tecnicamente inadequado” para garantir uma justa repartição dos apoios. Está disposto a uma revisão radical do modelo?
Quero perceber primeiro que revisão radical é essa. Mas estou completamente disposto a trabalhar com a REDE e com todas as outras estruturas representantes do sector para afinar o modelo. Mas é a situação do bebé e do banho de que falava há pouco. Não podemos pôr em causa um modelo que ainda não foi testado nas suas virtualidades e deitar fora todo este trabalho feito em conjunto. Seria catastrófico para a sustentabilidade do sector e das políticas culturais desta área.
Os artistas queixam-se de que o processo de candidatura é esgotante. É uma crítica a que é sensível?
A plataforma de candidatura é um instrumento de concurso que pode ser simplificado, desburocratizado. Mas, apesar de todas as críticas que lhe teceram, é bastante mais amiga dos candidatos do que a anterior. Por que é que tivemos 91% de taxa de sucesso na instrução das candidaturas? Porque de facto a plataforma, não sendo maravilhosa, resolve vários problemas instrutórios. Pode ser muito chata e burocrática, admito que tenha alguma linguagem que não é a mais adequada para concursos neste sector, mas tudo isso é passível de correcção.
Há mais de um ano e meio que se diz estar para breve a assinatura dos contratos-programa com os teatros nacionais e com a Companhia Nacional de Bailado. O que é que falta para que ela aconteça de facto?
Está tudo pronto. Faltava o esclarecimento de uma dúvida fiscal, estamos à espera da resposta para encerrar o processo.
E arrisca uma previsão?
Agora já não arrisco [risos]. Todo o processo correu muito bem, num tempo recorde. Tenho a maior expectativa de que finalmente, a breve trecho, se assinem os contratos-programa. Mas o mais importante é que os teatros nacionais já interiorizaram o espírito, o quadro de condições, toda a estrutura que subjaz aos contratos-programa e aos seus objectivos.
O reforço de 1,5 milhões de euros anunciado esta semana pelo primeiro-ministro dá suporte às suas expectativas de que a dotação da Cultura no próximo OE cresça significativamente?
Vamos terminar a legislatura com o financiamento a convergir com os níveis de 2009. Isto tem um grande simbolismo — significa que toda a fase de devastação e abandono de que falei foi superada. O sr. primeiro-ministro tem uma sensibilidade muito grande em relação a esta área e estou convicto de que passado este momento-charneira, este momento sofrido, temos condições para avançar para uma consolidação do apoio financeiro do Estado ao sector cultural e artístico.
E o horizonte pode vir a ser o 1% do OE para a Cultura, ou esse é um caminho para outras gerações?
O caminho faz-se caminhando. Mas esse é um horizonte que não deve ser descartado.