"Tenho dúvidas de que certas falhas de 2017 tenham sido interiorizadas"

Paulo Fernandes é engenheiro florestal na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e integrou a Comissão Técnica Independente que analisou os fogos de Pedrógão e de Outubro. Receia que parte do sistema ainda não tenha percebido que as coisas têm de mudar. E critica os critérios técnicos da lei que obriga os proprietários a limpar em volta das suas casas.

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Joana Gonçalves

Especialista em comportamento do fogo, o engenheiro florestal contribuiu para dois relatórios que puseram a nu as fragilidades do sistema de combate a incêndios em Portugal, que tem estado divorciado da prevenção e que integra pouco conhecimento técnico. Espera que as coisas mudem mas, pelo que ouve, receia que muitos não tenham percebido o que correu mal e que queiram lutar para manter o status quo. Quanto a este Verão, diz que é cedo para que tudo tenha mudado. Elogia uma maior consciencialização da população e diz que o facto de muito do país já ter ardido pode contribuir para que tragédias como a de 2017 não se repitam. Pelo menos nos tempos mais próximos.

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Especialista em comportamento do fogo, o engenheiro florestal contribuiu para dois relatórios que puseram a nu as fragilidades do sistema de combate a incêndios em Portugal, que tem estado divorciado da prevenção e que integra pouco conhecimento técnico. Espera que as coisas mudem mas, pelo que ouve, receia que muitos não tenham percebido o que correu mal e que queiram lutar para manter o status quo. Quanto a este Verão, diz que é cedo para que tudo tenha mudado. Elogia uma maior consciencialização da população e diz que o facto de muito do país já ter ardido pode contribuir para que tragédias como a de 2017 não se repitam. Pelo menos nos tempos mais próximos.

Depois de Pedrógão, teria sido possível alterar alguma coisa a tempo de evitar, nem que fosse em parte, o que aconteceu em Outubro?
Os procedimentos necessários de resposta ao risco de incêndio demoram a ser interiorizados. Temos um sistema que funciona de uma determinada forma e para o pôr a funcionar de forma diferente é preciso treino, formação e algum hábito. De qualquer modo, diria que sim no que diz respeito ao patrulhamento para dissuadir comportamentos de risco no que toca ao uso do fogo nas zonas mais arborizadas. O ICNF [Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas] até tem mapas em que identificam regiões do país onde num determinado período de tempo têm ocorrido mais ignições. Portanto, são áreas candidatas a patrulhamento mais intensivo num período de meteorologia mais complicada.

Chegou a avisar, antes daquele fim-de-semana, que, com as previsões de chuva para segunda-feira, iria haver queimadas numa altura em que o risco de incêndio seria muito elevado. Portanto, era previsível?
Um pouco. A análise que fizemos para o relatório mostra claramente que se consegue prever o número de ignições daquele dia. O que aconteceu era expectável, atendendo à meteorologia.

As queimadas são práticas ancestrais. Nem com o susto de Pedrógão as pessoas deixaram de as fazer. Como contrariar isto?
É uma questão de sensibilização. São pessoas que toda a vida usaram o fogo, tendo corrido sempre bem. Por isso tendem a facilitar ou a não interpretar as condições ambientais. O calor e o vento todos os sentem, mas a humidade do ar não se sente. Uma baixa humidade, como a daquele dia, tem um papel importante na facilidade de ignição, na rapidez de expansão do fogo e na sua intensidade. Mas gostava de salientar que, em relação aos fogos daqueles dias, tem-se colocado ênfase nas queimadas. Mas no caso dos maiores incêndios temos uma fracção enorme da área ardida que foi causada por negligência ou reacendimento. Depois há o fogo posto. Nenhum daqueles incêndios é causado por queimadas.

Que tipo de negligência houve?
Estou a referir-me em particular ao da Lousã, que é um fogo proveniente de acidente com a rede eléctrica, com a rede de transporte de energia. Por definição, há uma causa negligente. Além desse, três ou quatro são reacendimentos. Muitas pessoas morreram em resultado destes fogos, em particular o que resultou dos reacendimentos na Serra do Açor.

O que se passou aí?
Tinha havido um incêndio na Serra do Açor uma semana antes, que tinha queimado parcialmente a Mata da Margaraça. Atendendo às condições de seca, o perímetro nunca ficou bem consolidado e passou toda a semana a reacender. Parece que havia muito material combustível que ficou enterrado por causa dos trabalhos com as máquinas de arrasto e, naquele dia, quando veio o vento, reacendeu em dois pontos diferentes. E foram esses dois reacendimentos que depois tiveram aquele impacto em Oliveira do Hospital.

Mas essa zona não estava vigiada?
Estava a ser acompanhada por sapadores florestais. O problema é que reacendeu na mudança de turno. Aparentemente não tinha lá ninguém na altura. Ou então os meios foram insuficientes pois reportam-nos que se propagou muito rapidamente: passou um estradão e depois não tinham meios para controlar.

Vamos conseguir mudar as coisas até ao próximo Verão?
Sendo realista e sabendo o tempo de que estes processos necessitam, a única coisa que podemos esperar é que a população esteja mais consciente deste perigo associado aos fogos. Poderemos esperar algum comportamento mais cuidadoso por parte da população. Mas, mesmo esse, talvez não: Apesar de ser em condições benignas, o número de queimadas e ignições desde o início do ano, até chover, estava em linha com a média dos anos anteriores. As pessoas continuam a usar o fogo, que pode correr mal consoante a meteorologia. Não é nada fácil alterar esses comportamentos. No entanto, quando vemos a tendência de longo prazo, o número de ignições diminuiu um terço ou mesmo 40% desde 2000. Se a 15 de Outubro tivéssemos as ignições de 2005, as consequências poderiam ter sido bem mais graves.

Portanto, a população vai tendo mais consciência?
Sim, mas isto também varia geograficamente: há zonas onde aumentaram e outras em que diminuíram bastante. Diminuíram mais nas imediações dos centros urbanos e provavelmente também diminuíram em áreas rurais devido ao decréscimo da população. Noutros locais aumentam por razões variadas, como por exemplo o facto de a população ser mais idosa e ter menos força o que a faz recorrer mais ao fogo para fazer certas coisas que antes fazia de outra forma. Mas há uma diminuição. E por esse lado estou optimista.

E quanto ao sistema de combate?
É uma questão cuja resposta é organizacional, é uma questão das instituições, da articulação entre elas, de interiorização de procedimentos. E em primeiro lugar de aceitação de melhores práticas. Eu fiquei com muitas dúvidas que certas coisas evidentes que aconteceram no ano passado tenham sido interiorizadas ou compreendidas, por exemplo, pela ANPC [Autoridade Nacional de Protecção Civil]. Por algumas declarações, parece que há muita gente a achar que correu tudo bem em termos daquilo que fazem. Aparentemente ficaram satisfeitos por terem cumprido as normas e os normativos em que o seu funcionamento se baseia. Portanto tudo o que corre mal é atribuído a outros factores. À natureza, a imponderáveis.

Acha que ainda não se mentalizaram que todo o sistema tem de ser mudado?
Existe essa dificuldade que é essa auto-satisfação com o status quo do sistema em que operam. Não reconhecem que o sistema é disfuncional. Posso estar errado, mas vamos ver como a situação vai evoluir com a AGIF [Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais]. Mas o certo é que é tudo muito lento. A AGIF está a preparar um conjunto de acções, visitas de peritos internacionais que vêm dar alguma ajuda, poderão dar alguns exemplos, há iniciativas de intercâmbio e de formação. Isto já aconteceu no passado. Entre 2005 e 2008 houve muitos intercâmbios. Vieram dar formação. Mas deixou-se morrer tudo isso. Perdeu-se muito capital e pessoas válidas. Temos de repetir o processo.

Com esta lei, a cintura de carvalhos para proteger a aldeia é proibida

O que mais se tem falado é na limpeza dos terrenos. No relatório, vocês são críticos da lei. Porquê?
O passo certo seria pegar na lei que existia [de 2006], reforçar a sua aplicação, claro, mas também reforçá-la tecnicamente. Em vez disso, força-se a aplicação através de ameaças. Não critico forçosamente isso. Os portugueses funcionam muito assim. O que critico é o facto de terem feito alterações erradas. Ou não se faziam nenhumas ou melhoravam.

Quais são, concretamente, os erros técnicos?
As alterações da distância entre as copas das árvores mas também as definições da quantidade de mato que é permitido que exista, que agora são baseadas apenas na altura da vegetação e antes eram baseadas no volume. O volume é um derivado da altura com a ocupação do solo. A ocupação do solo desapareceu da equação. Numa interpretação estrita, se uma pessoa tiver uma giesta com um metro de altura, a guarda manda cortar. Mas se tiver a giesta a ocupar o terreno todo mas só com 30 centímetros, já não é preciso fazer nada. Na legislação anterior, se ocupasse o solo todo, teria de ser cortada mal passasse os 20 centímetros. Antes o limite de acumulação de mato ia até os 2000 m3 por hectare e agora pode ir até 5000 m3.

E quanto à distância das copas?
A primeira questão é que não é necessário. Na gestão do combustível há uma hierarquia: começa-se por reduzir o que está abaixo das árvores, depois sobe-se à copa das árvores e só depois podemos ver se é necessário afastar as copas. Estas são as orientações gerais, que dependem dos objectivos e das espécies. Nestas situações em que temos proximidade de habitações, onde se pressupõe uma intervenção mais frequente, muitas vezes através de usos do solo mais agrícolas que não são florestais, à partida o afastamento de copas não será necessário porque o facto de diminuírem os combustíveis nos estratos inferiores e de subirem a copa já garante que essas copas não vão arder. Não é preciso. Ao espaçar mais as copas, o que estamos a fazer é aumentar a radiação solar, a acelerar a recuperação da vegetação após a intervenção, a aumentar a temperatura e o vento e a diminuir a humidade nesses estratos inferiores. Portanto, estamos a agravar as condições ambientais para a propagação de um incêndio e estamos a diminuir o tempo entre duas intervenções consecutivas. Antes, previa-se um distanciamento de quatro metros, que é razoável e está dentro daquilo que se recomenda noutros países, que normalmente é entre os três e os seis metros [no caso dos eucaliptos e pinheiros, a distância passou para 10 metros na alteração da lei].

Mas isto também não cobre todas as situações: há iniciativas a decorrer, como em Ferraria, em Figueiró dos Vinhos, em que as pessoas estão a plantar folhosas como faixa de protecção à aldeia. Com esta legislação, estas plantações são proibidas porque são muito densas. Mas porque é que a floresta autóctone de carvalhos, etc, tem um efeito de redução do fogo? Porque é densa, porque se trata de uma floresta húmida, se for adensado reduz o vento, aumenta a humidade, diminui a temperatura, a vegetação diminui e a que existe no sub-bosque tem uma natureza mais verde. Os princípios que se aplicam a este tipo de matas são totalmente diferentes daqueles que se aplicam a matas de espécies de ciclos mais curtos, como sejam as resinosas, os eucaliptos, em que é necessário existir uma estrutura mais aberta para que não haja fogo de copas. A legislação deveria reconhecer estas diferenças entre ambiente florestais.

Tem havido diversas campanhas de plantação de árvores. Apesar da boa vontade, estarão a ser feitas com acompanhamento técnico devido?
Muitas dessas campanhas são muito entusiásticas, as pessoas querem fazer alguma coisa. Algumas são feitas em parceria com o ICNF, portanto à partida haverá apoio técnico. Mas o próprio ICNF alertou para a questão da proveniência das sementes. Porque já se antevia a uma certa corrida à arborização usando, se calhar, sementes de proveniências indevidas. É problemático arborizar com uma espécie nativa sem se estar ciente se esta vem ou não de uma região totalmente distante em termos de clima, ou se vem de Espanha. Aquelas plantas podem, depois, não ter capacidade para sobreviver ou podem não crescer da mesma forma uma vez que estamos a usar sementes adaptadas a outros ambientes.

O ónus tem estado em cima dos proprietários porque a maioria da propriedade é privada, e isso tem sido apontado como um problema. Se fosse pública, haveria garantias de que seria mais bem gerida?
Há duas situações distintas. No caso dos perímetros florestais, ou seja, os baldios, é onde em Portugal encontramos bons exemplos de gestão de combustível. Com processos de fogos controlados, faixas de gestão de combustível. É onde se tem feito alguma coisa, abaixo do desejável, é certo, mas existe. O que é surpreendente é que depois nas matas nacionais, que deviam estar sujeitas a um nível de protecção e intervenção superior, não vejamos nada disso. São áreas que têm condições excelentes para implementar uma silvicultura preventiva e uma boa gestão florestal porque há um quadriculado nas matas do litoral concebido para facilitar o acesso. Os australianos, em matas como a de Leiria, junto ao mar e em condições semelhantes, têm feito, desde os anos 70, muitas acções de fogo controlado com grande intensidade e frequência sem qualquer efeito negativo. E isso seria uma forma prática e eficaz de reduzir o risco associado ao fogo nas nossas matas do litoral. Mas sempre houve resistência, preconceito e ignorância sobre isso. É uma combinação de falta de investimento, de interesse. Há também aqui responsabilidade por parte dos florestais que ainda não interiorizaram que num clima como o nosso, se optamos por uma plantação com espécies que ardem facilmente, temos de gerir o combustível. Caso contrário, é uma questão de sorte ou de azar. Tem de se perceber isso e agir em conformidade. Se a mata de Leiria tinha o valor que lhe era atribuído em termos simbólicos e patrimoniais deveria ter sido protegida. É uma área onde não há assim tantos fogos, portanto quando a ameaça do fogo não é evidente, normalmente não se opta por este tipo de intervenções. Opta-se por um maior patrulhamento, um sistema de vigilância eficaz e de combate. Ou uma coisa ou outra, ou ambas, mas tinha-se que ter feito ali qualquer coisa que salvaguardasse a mata.

A questão de fundo é sempre a mesma: A gestão da floresta. Mas as fileiras florestais não têm sido uma prioridade embora tenhamos duas indústrias fortes que dependem delas. Ainda é possível criar uma economia ligada à floresta que não viva apenas dos subsídios, que dê retorno ao proprietário que faz gestão activa?
A raiz do problema é mesmo socio-económica, portanto, só há gestão se houver economia. Esta não é a minha área mas é muito claro que se tem de trabalhar fortemente na componente económica. Mas, com as alterações climáticas, a silvicultura intensiva é um caminho perdido, uma opção fracassada à partida. O risco de incêndio é cada vez maior e não vai ser compensado com a redução do risco ligado às ignições ou à gestão florestal. Em termos de sustentabilidade do território, vai ser cada vez mais importante a diversificação tanto das espécies como dos objectivos de gestão. Já não será interessante só a madeira, ou a cortiça, ou o pinhão. É tudo muito mono-orientado, orientado para um só produto. Tem de haver mais produtos, mais motivos para gerir o território, como o turismo, os cogumelos, o mel, os espargos, enfim tudo o que os sistemas agro-florestais podem produzir. E através disso também vamos criar um mosaico de cobertos vegetais que têm todo o interesse em termos de redução do risco de incêndio. Como? Não sou capaz de responder.

Já aqui estivemos, em 2003 e 2005. Foram feitos muitos relatórios e promessas. Os protagonistas políticos por acaso são agora os mesmos. Acha que é desta que as coisas vão realmente mudar?
A minha expectativa tende a ser optimista devido à criação da Agência, que pode ser o motor da mudança. Mas a própria agência só vai dar um empurrão inicial, porque depois depende das instituições e depende muito claramente do ICNF.

Que é um instituto moribundo…
Quem lá trabalha diz que tem três vezes menos pessoas e 10 vezes mais funções. É uma instituição que tem de ser claramente alterada pois, além das funções que tinha como a gestão das matas públicas, tem de ser um braço armado de apoio aos privados, trabalhando de uma maneira mais eficaz com as associações florestais, por exemplo. Tanto do lado da prevenção como do combate, o ICNF tem de ter um papel relevante, tem que ter um papel mais activo na gestão do mundo rural.

A agência, porém, é uma solução de recurso. A solução óptima seria juntar todas as competências que têm a ver com fogos, da prevenção, ao combate, num mesmo organismo. O facto de o futuro depender de várias instituições, como o ICNF, em vez de estar tudo sob o mesmo chapéu invalida que haja uma gestão integrada do fogo. Vamos ter um organismo que vai promover essa gestão, vai tentar fazer doutrina, mas em termos funcionais e de organizações, não vamos ter uma entidade integrada. Isto, com sorte, pode correr bem mas facilmente pode correr mal.

Mas, em relação a este ano, com o que ardeu no centro, o perigo é mais reduzido. Uma parte ardeu este ano, outra em 2016 e outra em 2013. Está tudo bastante fresco, não estou a ver que tenhamos em termos de território grandes oportunidades para incêndios como o do ano passado. O perigo é descansarmos nestes anos de acalmia, como já aconteceu. Da outra vez, a melhoria das estatísticas foi atribuída à acção do Governo quando na realidade foi a meteorologia que acalmou. Se estes anos correrem bem vai criar logo, em termos políticos, um motivo de auto-satisfação, o que tem efeitos perversos porque contraria o espírito reformista.