Uma mão cheia de passeios para fazer a partir de Viseu
Dormimos em Viseu e fizemo-nos à estrada. Começámos por uma exposição de outra galáxia na serra do Caramulo, fomos enólogos por umas horas em Nelas e vimos como se fazem enchidos em Carregal do Sal, antes de provarmos os pastéis de feijão de Mangualde. Houve ainda tempo para ver como se faz o queijo Serra da Estrela DOP. Vamos passear?
1. Subir ao Museu do Caramulo
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1. Subir ao Museu do Caramulo
Subimos as escadas de um edifício dos anos 1950 e viajamos no tempo até às décadas de 70 e 80 com objectos de colecção de fazer inveja a qualquer fã da Guerra das Estrelas. É a exposição temporária que celebra os 40 anos sobre a estreia do primeiro filme da saga e não faltam exemplares valiosos de brinquedos — muitos deles nunca manuseados — da histórica marca norte-americana Kenner. São centenas de peças, desde naves a conjuntos de figuras, embalagens, cartões e cartazes, que partilham o primeiro andar do Museu do Caramulo com obras da colecção permanente da Fundação Abel e João de Lacerda. The Power of the Force: Brinquedos e Cartazes da Guerra das Estrelas 1977-85 pode ser visitada até 27 de Maio.
Conhecido por albergar uma colecção invejável de automóveis que atravessa três séculos, o museu com 299 doadores tem apostado em exposições temporárias que atraiam público à serra. Quem o diz é Tiago Patrício Gouveia, o director que nos guia pelas salas do edifício, “o segundo a ser construído especificamente para ser um museu em Portugal”. Além dos automóveis — “todos em funcionamento”, como assegura Tiago Patrício Gouveia —, das bicicletas e dos motociclos, o museu com 65 anos expõe ainda miniaturas de brinquedos e peças de pintura, escultura, tapeçaria e cerâmica. O destaque, como não poderia deixar de ser, são os quadros de Pablo Picasso, Salvador Dali e Vieira da Silva.
Subir até à vila do Caramulo pela estrada nacional, a partir de Viseu, é sinónimo de muita terra queimada, árvores moribundas, casas que mantêm a cor numa paisagem que assume tons demasiado negros. Os incêndios de Outubro de 2017 forçaram uma mudança no postal bucólico da vertente sul da serra do Caramulo e as nuvens frias escondem os miradouros da vila com o mesmo nome. Sucedem-se aldeias com uma mão-cheia de casas, uma mercearia ambulante em formato carrinha na berma da estrada, curvas e contracurvas pelo concelho de Tondela. No fim da subida, o motivo para a viagem matinal de perto de 40 minutos: o Museu do Caramulo e a sua arquitectura austera e monumental típica do Estado Novo, assinada por Alberto Cruz a pedido de Abel de Lacerda.
Museu do Caramulo
R. Jean Lurçat 42
Tel.: 232 861 270
3475-031 Caramulo
2. Cruzar as vinhas de Nelas
Garantimos que a força se mantém connosco e seguimos, desta vez serra abaixo, até ao concelho de Nelas. A paisagem vai mudando ao longo do caminho e os terrenos plantados com vinhas confundem-se. Afinal, pisamos estradas da Região Demarcada do Dão e o destino que se segue promete transformar-nos em enólogos por um dia.
A Adega da Quinta da Teixuga, situada em Vilar Seco, é das mais recentes da região. E da lista de vinhos produzidos constam o Teixuga, o Titular, Terras de Santar e Terras de Nelas, além da edição comemorativa Caminhos Cruzados. Inaugurado em Setembro de 2017, o edifício em betão tem a configuração que dá nome à família dos vinhos Caminhos Cruzados. As paredes cruzam-se e formam uma cruz estendida que não passa despercebida na orla dos 30 hectares da propriedade vinícola e capta a atenção de quem entra na propriedade. A arquitectura arrojada é assinada por Nuno Pinto Cardoso e a estrutura tem capacidade para vinificar 400 mil litros. Os detalhes são explicados por Sofia Mesquita, responsável pelo programa de enoturismo, incumbida da tarefa de nos mostrar os cantos da nova casa.
É precisamente num desses cantos, com vista para a vinha plantada simetricamente, que nos espera uma mesa organizada para uma prova: garrafas e copos alinhados, cuspideiras a postos e uma grelha para cada participante preencher. O objectivo? A elaboração de um blend a partir de três das castas plantadas na Quinta da Teixuga: Jaen, Alfrocheiro e Touriga Nacional. A ideia é que os participantes — e qualquer pessoa que visite a Teixuga pode marcar uma actividade deste tipo — prove os três vinhos separadamente e os avalie, criando no fim um blend com a conjugação das castas favoritas.
Carla Rodrigues, a enóloga residente que encabeça a mesa da experiência, começa por dizer que “não se trata de um teste”. “Não há respostas certas ou erradas, queremos que escrevam livremente.” O interessante é perceber as diferenças entre o primeiro monocasta provado — Jaen, casta “pouco consensual” mas “muito delicada” — e o último — Touriga Nacional, “a casta rainha do Dão” que dá vinhos “muito encorpados e robustos” —, simulando o processo de trabalho de um enólogo. No final, o lote que cada participante cria é engarrafado e rotulado com o nome de cada um. “Podem ter muito sucesso se mostrarem aos vossos amigos”, brinca Sofia Mesquita.
Caminhos Cruzados/ Quinta da Teixuga
Estrada Municipal Algeraz, Carvalhal Redondo
3210-011 Nelas
Tel.: 232 940 195
3. Fumeiro Flor de Sal, Carregal do Sal
Este roteiro por alguns dos 24 municípios de Viseu segue em direcção a Carregal do Sal, mais especificamente até ao Talho Luís. É nesta loja, numa das ruas centrais da vila beirã, que são feitos os enchidos do Fumeiro Flor de Sal. Luís Santos é o responsável por este negócio com 22 anos e os expositores de madeira que ocupam a entrada do talho não enganam. Lado a lado com as vitrines preenchidas por típicas peças de carne há expositores de madeira repletos de enchidos.
Luís Santos, de 45 anos, é o responsável pelas receitas com o carimbo Flor de Sal, de entre as quais destaca a alheira de pinhões e o lombo de porco fumado. A primeira, como o nome deixa adivinhar, inclui pinhões no recheio e é um dos best sellers da casa. Foi criada pelo talhante, natural de Beijós, para participar na Feira da Pinha e do Pinhão, dinamizada pela Câmara Municipal do Carregal do Sal, e passa perto de um dia no fumeiro. O lombo de porco fumado também é uma receita original Flor de Sal, “100% natural e sem adição de conservantes”. “É um produto genuíno. Podem encontrar parecido noutros lados, mas igual não há de certeza.”
Para sabermos como são feitos estes enchidos — que já viajaram pelo país inteiro em feiras e demonstrações — temos que passar para o outro lado do balcão e vestir um kit composto por bata, protecções para os sapatos, touca e máscara. No primeiro andar do talho, uma equipa de três mulheres igualmente equipadas com o kit branco dedica-se a encher alheiras numa divisão onde uma tina de fatias de pão ocupa um lugar de destaque, com uma linha de montagem que tem o último passo na porta ao lado.
Assim que se atinge o número de alheiras desejado, estas passam para outro estágio do processo de fumeiro, alinhadas em suportes metálicos junto ao tecto. Nesta sala exígua, mais escura e quente, dezenas de enchidos são expostos ao fumo de um lume controlado que queima madeira de carvalho. É também aqui que são fumados os outros produtos da marca: a barriga de porco, a aba de vitela, a morcela de cebola e outros chouriços.
Talho Luís/Fumeiro Flor de Sal
R. do São João de Deus, 12
3430-055 Carregal do Sal
Tel.: 232 969 204
4. Pastelaria do Patronato, Mangualde
De volta à estrada, com destino ao concelho limítrofe de Mangualde. Na Pastelaria do Patronato, bem no centro da cidade, os números dos pastéis de feijão são motivo de orgulho local: em média são preparados e vendidos 800 destes doces conventuais por dia. Mas há dias melhores, como aquele em que visitamos a icónica casa e a contagem já ultrapassava os 1170.
A receita é secreta, como em todas as casas que se orgulham da doçaria, e nem uma visita guiada pelo próprio pasteleiro nos valeu conhecimento privilegiado. Sabemos que é “tudo feito de forma artesanal” e que um dos ingredientes é feijão (além dos ovos, do açúcar e das farinhas). Mas o resto mantém-se na mão de alguns — poucos — privilegiados de Mangualde.
António Santos, de 53 anos, sabe as receitas do Patronato de cor e comanda uma cozinha com dez funcionários. Nas paredes grossas que, outrora, albergaram uma prisão vêem-se panelas altas e antigas, alinhadas por tamanho. É nelas que o chefe pasteleiro e restante equipa cozinham, diariamente, o creme e o recheio para os doces e salgados que dão fama regional e nacional à casa. E pensar que António Santos chegou aqui por acaso. “É uma história engraçada”, sorri.
Distribuía correio entre Mangualde e a Mêda, mais a norte, quando conheceu um casal proprietário de uma pastelaria. Para ocupar os tempos mortos da profissão, decidiu aprender na cozinha da pastelaria dos amigos e tomou-lhe o gosto. De formação em formação, António acabou por abandonar os correios e agora está à frente da produção artesanal do Patronato. “Aqui é tudo feito à mão e as receitas são as originais”, faz questão de sublinhar. Não há “cremes de balde” nem “produtos artificiais aos quais só é preciso juntar água” — e mais não conseguimos saber.
A origem desta pastelaria remonta à década de 1930, quando as dificuldades sociais decorrentes da Guerra Civil Espanhola e do início da Segunda Guerra Mundial levaram o pároco Manuel Monteiro a fundar uma casa para acolher, durante o dia, os filhos das mulheres trabalhadoras. A venda de doces funcionava como suporte financeiro das obras sociais da paróquia e a iniciativa de três irmãs de Mangualde transformou o projecto solidário num ícone da terra. O Patronato mantém-se activo e continua a apoiar a comunidade mangualdense.
Mas como nem só de pastéis e caramujos vive esta pastelaria, quem conhece deixa a dica: “O mais tradicional é provar uma empadinha de frango com um copo de vinho branco”. Do Dão, claro.
Pastelaria do Patronato
Largo da Misericórdia
3530-114 Mangualde
Tel.: 232 619 446
5. Casa da Ínsua, Penalva do Castelo
“Alguém sabe a diferença entre o queijo da Serra e o queijo Serra da Estrela?” A questão, em jeito de provocação, é colocada por José Matias na queijaria da Casa da Ínsua. Neste hotel de Penalva do Castelo, onde o engenheiro e enólogo é responsável pela produção dos queijos e dos vinhos, há uma queijaria certificada de queijo Serra da Estrela. E José Matias nem pode ouvir dizer que alguém provou este queijo com certificação DOP (Denominação de Origem Protegida) com recurso a uma colher.
A resposta à pergunta inicial vem logo de seguida: “Só se pode fazer queijo Serra da Estrela com leite de ovelhas da raça Serra da Estrela. Já o queijo da Serra pode ser feito com qualquer tipo de leite.” E a forma correcta de o comer é à fatia, “nunca com uma colher”. “Se queremos ter um queijo Serra da Estrela, este tem que apresentar uma pasta semimole. Ao ser cortado em fatia, tem que fazer um ligeiramente abaulamento da massa, mas sem abrir no prato”, continua José Matias.
A queijeira Maria do Céu já está com as mãos na massa para nos mostrar como se faz este queijo — “o melhor do mundo”, atesta José Matias —, numa demonstração que se repete diariamente na Casa da Ínsua. A queijaria tem uma janela rasgada para a loja onde o produto final se vende e qualquer comprador pode apreciar o trabalho artesanal das três queijeiras que se revezam na produção. Mediante marcação — e mesmo sem estar hospedado no hotel — é ainda possível aprender a fazer o próprio queijo com uma destas senhoras e levar o exemplar para casa.
Na francela, uma espécie de bancada de inox de onde escorre o soro que vai dar origem ao requeijão, Maria do Céu já amassa o queijo. Aplica força no momento e na dose certos e se o sabe fazer à mãe o deve: foi com ela que aprendeu, desde criança, e há dez anos que o faz na Casa da Ínsua. Vai passando as mãos na água gelada que sai da torneira, para baixar a temperatura corporal e não aquecer a massa e interferir na qualidade. O processo repete-se e Maria do Céu começa a dar forma ao queijo, pacientemente e sem saltar qualquer passo. Para ter um queijo de quilo fresco (que depois origina um queijo de 700 gramas, sensivelmente), são precisos, em média, cinco a seis litros de leite de ovelha. E cada ovelha Serra da Estrela só produz, por dia, um máximo de 1,2 litros. É também por isso que este é queijo protegido e controlado e que o rebanho de 120 animais da Casa da Ínsua é tratado como se estivesse num spa.
Queijaria Casa da Ínsua
Hotel Parador Casa da Ínsua
3550-126 Penalva do Castelo
Tel.: 232 642 222
A Fugas viajou a convite da Comunidade Intermunicipal Viseu Dão Lafões