Sal, de mar a mar
Depois de algum tempo de acalmia, o Sal está outra vez a crescer. Há novos hotéis a erguerem-se junto às praias sempre soalheiras da ilha de Cabo Verde. Já as razões que há décadas levam para ali turistas de todo o mundo continuam (quase) imutáveis.
Passa pouco das 8h30 e a temperatura está perfeita. A praia tem pouca gente e o mar está tranquilo q.b., ainda que (havemos de ouvir mais do que uma vez) ele já não seja exactamente como era em algumas partes da ilha do Sal, em Cabo Verde. Mas, aqui, no extenso areal de Santa Maria, ele ainda é calmo, o mais calmo que veremos por cá, e a esta hora da manhã, mesmo sem tempo para um mergulho, entra-nos pelos olhos dentro, nas suas diversas tonalidades de azul, deixando um convite que havemos de aceitar mais logo.
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Passa pouco das 8h30 e a temperatura está perfeita. A praia tem pouca gente e o mar está tranquilo q.b., ainda que (havemos de ouvir mais do que uma vez) ele já não seja exactamente como era em algumas partes da ilha do Sal, em Cabo Verde. Mas, aqui, no extenso areal de Santa Maria, ele ainda é calmo, o mais calmo que veremos por cá, e a esta hora da manhã, mesmo sem tempo para um mergulho, entra-nos pelos olhos dentro, nas suas diversas tonalidades de azul, deixando um convite que havemos de aceitar mais logo.
O Sal, que de uma ponta à outra não excede os 30 quilómetros de comprimento, é um pedaço de terra inóspita orlado por praias temperadas por um vento constante, areia fina e um mar convidativo. Diz-se isto e pode estar tudo dito, mas há sempre mais num lugar do que aquilo que parece à primeira vista, desde que estejamos disponíveis para o descobrir. O mesmo é dizer que pode aterrar no Sal, instalar-se num dos hotéis que tem a praia como quintal e deixar-se ficar por aí, a gozar a tranquilidade e o calor. E não estará nada mal — o nosso tempo por lá foi curto e bem que gostávamos de ter passado mais algumas horas na praia — mas também pode pôr pés ao caminho e explorar outros pontos da ilha. Que não são muitos, de facto, e vêem-se tranquilamente num dia, mas que merecem que vire as costas à praia por um pouco, embrenhando-se por caminhos de asfalto e terra e deixando-se ir.
Comecemos, por exemplo, pela Baía da Parda ou, como é mais conhecida nestes dias, a Baía dos Tubarões. Comecemos por aqui e aproveitemos para olhar para o Sal como mais do que o destino turístico que é. A ilha de terra seca, onde quase nunca chove, é como um enorme deserto com pequenas elevações, onde as povoações que aparecem pelo caminho parecem sempre algo artificiais, como elementos de um jogo de criança pousados num terreno com o qual não têm ligação. A vegetação exuberante fica-se pelos jardins dos hotéis. Lá fora, a terra é mais poeira e areia do que outra coisa, e só as acácias curvadas pelo vento se intrometem na paisagem árida.
Nas imediações do núcleo central da capital Espargos, a caminho da Baía da Parda, pode cruzar-se com pequenos bairros de lata (existem três, segundo nos informam), que foram crescendo à medida que o turismo e a construção de novas unidades hoteleiras cresciam também. E vai encontrar os novos complexos de habitação que o governo está a erguer, no âmbito de um programa de realojamento que pretende dar uma casa digna a todos os que, vindos de outras ilhas do arquipélago ou do continente, ali chegaram para trabalhar. Manu, o nosso guia por estes dias, explica que a população do Sal engrossou nos últimos 15 anos, vivendo hoje na ilha cerca de 31 mil pessoas, mais 10 mil do que em 2010. A quebra no turismo sofrida no Egipto, Tunísia ou Marrocos, fruto da instabilidade política ou de ataques terroristas, foi benéfica para o Sal, que viu crescer os visitantes, depois de algum tempo de estagnação.
Antes de chegar à baía de águas baixas e absolutamente transparentes também vai ver lixo a tomar conta da terra. São, sobretudo, os restos que o mar traz. Na costa leste, voltada para o continente, há sempre plásticos, restos de redes de pesca, latas ou os despojos de algum equipamento de mergulho a chegar a terra e a serem levados pelo vento para ocupar o seu espaço na paisagem plana. Não é bonito, mas é a realidade, pelo que não vale a pena fechar os olhos.
Até porque, entretanto, já chegamos à baía e vai descobrir que os seus olhos estão agora subitamente presos naquele grupo de pessoas que, lá ao longe, parece caminhar sobre as águas. É para ali que vamos, mesmo que não nos tenham avisado. Os chinelos não são o calçado mais conveniente para entrar mar adentro, por cima da calçada de pedras marítima, mas há sapatos próprios para caminhar na água que podem ser alugados por 2 euros, pelo que o problema está resolvido.
Dizem-nos que ali à frente, algumas dezenas de metros à frente, onde um grupo de pessoas já leva a água pelos joelhos e olha, atento, para o mar, há tubarões. Tubarões-limão que, garantem-nos, “não fazem mal”. E na maré baixa pode-se tentar encontrá-los por ali. Às crias, mas também aos adultos, que podem atingir os três metros.
Não vamos muito confiantes, vemos o grupo à nossa frente olhar com ar de quem não está a ver nada. Mas o que é que isso importa se a água é tão quente e límpida e nos permite andar assim dentro dela, cada vez mais longe da costa? Já estamos prontos para regressar, sorriso nos lábios, a orla do vestido encharcada, a brincar que os locais inventaram aquilo dos tubarões só para os turistas, mas que nem valia a pena, porque a experiência de andar ali na água era suficiente para nos convencer, quando o nosso guia espeta o dedo para um ponto mesmo à nossa frente. E ele ali está, a nadar, debaixo de água mas bem visível, um pequeno tubarão que se afasta a apenas alguns metros de distância. Foi só um, mas o suficiente para comprovar que eles andam mesmo por aqui.
De volta à carrinha que nos transporta, seguimos para Pedra Lume, onde os destroços do antigo teleférico que servia para transportar o sal até à costa continuam a aguardar que alguém os recupere. A próxima paragem são as salinas de água rosa, instaladas na cratera de um vulcão.
Manu disse: “As salinas estão na cratera de um vulcão”. Mas ao nível do solo é difícil percebê-lo claramente. Só no dia seguinte, quando o avião se ergue no ar e as salinas nos aparecem ali ao lado, é que se vê a cratera perfeita em que estão instaladas e todo o local ganha uma nova dimensão. Mas, por enquanto, estamos aqui. Esquecemos o bar onde alguns preferem ficar sentados a refrescar-se e avançamos para a água. É entrar e deixar que o sal actue. O mesmo é dizer deixar-se flutuar, porque não há mais nada que consiga fazer (e não há mais nada que queira fazer).
Apesar de os hotéis garantirem que estão com uma taxa de ocupação muito elevada — “a nossa época alta é agora”, explicara no dia anterior Catarina Braga, directora do Hotel Hilton, o mais recente do Sal —, a ilha parece ter o condão de impedir enchentes. Onde quer que se vá, não se sente aquele aperto de gente a mais que se experimenta em alguns destinos, e isso mesmo é perceptível nas salinas. Há sempre pessoas a chegar e a partir, mas são pequenos grupos, e a quantidade de flutuadores nunca chega a ser suficiente para se tornar incómoda.
Já o sal que vai ficar-lhe agarrado ao corpo pode ou não chateá-lo. Se achar que sim, há uns chuveiros no local e por um euro pode passar o corpo por água limpa. Se achar que não, deixe o sal passear-se pelo seu corpo por mais umas horas, permitindo que os cristais apareçam e brilhem ao sol, dando uma nova textura à pele.
Das salinas partimos em direcção à costa oposta da ilha. Passamos pela Terra Boa, um pedaço do Sal onde, quando acontece a raridade que é chover, a água se concentra e as pessoas aproveitam para plantar feijão, melão ou melancia, explica Manu. Um pouco mais à frente, há jipes a passar, carrinhas de caixa aberta que ajudam o vento a levantar ainda mais poeira. O mar ainda não é aqui, mas paramos no meio de nada e ele parece estar lá. São as miragens tão típicas dos desertos e que neste pedaço da ilha, perto da hora do almoço, são bem visíveis. Enormes nacos de água azul parecem pintar o horizonte, quando na verdade é só terra seca que se espraia por ali. A imagem firme de uma realidade que afinal não o é só desaparece quando viramos costas e nos afastamos, em direcção à costa verdadeira, onde fica a Buracona.
Se já visitou a ilha do Sal há alguns anos é capaz de estranhar ter que pagar para ver esta piscina natural cavada nas rochas. Uma taxa ecológica de três euros é agora solicitada a quem quiser passar e no local há um restaurante que Luciano Teixeira, o proprietário, ainda quer fazer crescer mais, rodeando-o de projectos capazes de chamar mais turistas. Para já, pode deliciar-se com percebes, cracas ou espetadas de marisco e aproveite bem, porque a Buracona e o Olho Azul (Odjo Azul, em crioulo, referindo-se a um buraco entre as rochas onde o reflexo do sol cria uma incrível tonalidade de azul) podem não estar nos seus dias.
Explicando: há dias em que partes do mar de Cabo Verde já não é o que era, lembram-se? Se procurar na Internet as imagens da Buracona vai encontrar uma encantadora piscina natural de águas claras, onde só apetece mesmo tomar banho. Mas no dia em que lá estivemos a piscina não existia, comida pela força das águas que batiam furiosas contra as rochas negras, fazendo dançar espuma no ar. O espectáculo era, por isso, diferente do habitual, feito de água bruta e não de uma líquida tranquilidade. Tomar banho ou desfrutar do Olho Azul terá que ficar para uma próxima visita.
O mar está bravo e isso também se sente na Baía da Murdeira, onde residentes e trabalhadores não se cansam de dizer que aquela força que por ali se vê não é normal. “Normalmente isto é muito tranquilo, com o mar calminho a chegar à baía”, diz Luceth Santos, que reside no aldeamento de acesso controlado, onde também estão instalados um hotel, um restaurante e uma piscina. E olha surpreendida aquele mar bravio, como um desconhecido.
Mas em Santa Maria nada disto é verdade. Em Santa Maria o mar é quase um espelho e quando, finalmente, podemos regressar à praia com tempo para a desfrutar, aceitamos o convite matinal para dar um mergulho. O vento ainda não é agressivo e deixamo-nos ficar, com o sol a aquecer o corpo refrescado pelas águas temperadas do oceano. Não tivemos tempo para espreitar as lojas da Rua 1 de Junho, nem houve oportunidade para experimentar algumas das actividades que os vários operadores turísticos oferecem — passeios a cavalo pela praia, snorkeling, mergulho, pesca desportiva ou kitesurfing. Mas, de olhos fechados voltados para o sol, em pleno mês de Março, quando as notícias de Portugal falam de tempestades de chuva e vento, achamos que esta é a forma perfeita de passar as próximas horas. E que, neste instante, não havia mais nada que preferíssemos fazer.
A Fugas viajou a convite da Cabo Verde Airlines