Nova série de José Padilha acaba de vez com as ilusões sobre a política brasileira

O Mecanismo é uma obra de ficção baseada na Operação Lava-Jato, que expôs o maior escândalo de corrupção no país. Selton Mello é o protagonista da série, interpreta o polícia federal Marco Ruffo.

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Quem tiver acompanhado na imprensa o desenvolvimento da mega-investigação que desvendou um esquema organizado de corrupção política sem paralelo na História brasileira não terá grande dificuldade em reconhecer em Roberto Ibrahim o vilão da nova série produzida para o Netflix, O Mecanismo, o “doleiro” Alberto Youssef, cuja detenção e posterior delação estão na origem do processo que expôs a intrincada trama de desvio de dinheiro, financiamentos ilícitos e troca de favores que ficou conhecida como a Operação Lava-Jato.

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Quem tiver acompanhado na imprensa o desenvolvimento da mega-investigação que desvendou um esquema organizado de corrupção política sem paralelo na História brasileira não terá grande dificuldade em reconhecer em Roberto Ibrahim o vilão da nova série produzida para o Netflix, O Mecanismo, o “doleiro” Alberto Youssef, cuja detenção e posterior delação estão na origem do processo que expôs a intrincada trama de desvio de dinheiro, financiamentos ilícitos e troca de favores que ficou conhecida como a Operação Lava-Jato.

O mesmo não acontecerá, necessariamente, com o protagonista da série, o polícia federal Marco Ruffo, justiceiro volátil que torna Ibrahim o objecto da sua obsessão. Interpretado pelo actor Selton Mello, Ruffo também tem o seu correspondente na vida real: o desconhecido Gerson Machado, um dos agentes envolvidos nas investigações da Lava-Jato que permaneceu na obscuridade, enquanto as luzes da ribalta incidiam sobre o mediático juiz Sergio Moro. Esse anonimato serve à dramaturgia de O Mecanismo (e ao desempenho de Selton Mello), mais do que a qualquer outro dos personagens facilmente reconhecíveis: sem uma identificação imediata com o seu modelo, e por isso livre de comparações e preconceitos, a série não só resgata o trabalho de Machado, como consegue que Ruffo seja muito mais do que ele, valendo por si próprio como personagem principal e mais ainda como a voz e consciência moral da história.

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O actor Selton Mello interpreta o polícia federal Marco Ruffo Pedro Saad/Netflix

“No Brasil, as pessoas pensam que ser policial [sic] é subir favela e trocar tiro com traficante”, diz Ruffo, na cena cimeira da série, que remonta a 2003. “Isso é ser policial burro”, continua, num monólogo em que identifica alguns dos problemas do Brasil — da violência ao sistema de saúde falido, ao défice público — como a manifestação de uma doença. “Sabe um cancro? Se a gente não matar isso agora pela raiz, essa porra vai espalhar”, prenuncia.

Baseada no livro Lava Jato: o Juiz Sergio Moro e os Bastidores da Operação Que Abalou o Brasil, do jornalista Vladimiro Netto, a série que esta sexta-feira se estreia no serviço de streaming Netflix é realizada por José Padilha, o criador de Narcos e Tropa de Elite habituado a que os seus retratos de polícias e bandidos gerem controvérsia. O Mecanismo será necessariamente polémico no Brasil, onde as discussões sobre o processo judicial — e o seu impacto e consequências — assumem um fervor quase religioso. Ao telefone com o PÚBLICO Elena Soarez, responsável pelo guião da série, revela que essa discussão, por vezes acalorada, também aconteceu entre os criadores e actores da série: parece impossível, nesta altura em que as investigações ainda correm, e que as feridas ainda não sararam, apresentar a trama da Lava-Jato de uma forma objectiva e imparcial.

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Os actores Claudio Mendes, Alessandra Colasanti e Enrique Diaz Pedro Saad/Netflix

Quem assistir aos episódios (um total de oito, na primeira temporada; a segunda ainda não recebeu luz verde) deparar-se-á com o aviso de que “esta é uma obra inspirada livremente em eventos reais” e de que as “personagens foram adaptadas para efeito dramático” antes de passar o genérico. “Inventámos personagens e histórias”, diz Elena Soarez, cujo método de transposição da realidade para a ficção passou por reproduzir “os grandes marcos da Lava-Jato” num enredo que expõe “em termos técnicos” como o esquema de corrupção estava organizado, mas que está “recheado com histórias humanas” que remetem para as pulsões e circunstâncias de cada personagem.

O livro-reportagem de Netto, escrito quase como um thriller, facilitou-lhe enormemente o trabalho de escrita (“Só na pesquisa iria demorar pelo menos uns dois anos”, estima), porque o jornalista sistematizou toda a informação processual para reconstituir o movimento do dinheiro, mas também levantou o véu sobre os bastidores da Lava-Jato, explicando as razões por que essa operação acabou por ir mais longe do que qualquer outra no Brasil.

“A dificuldade de contar essa história é que ela se desenha na forma de um leque: começa com um pequeno núcleo de ‘doleiros’, depois vai para directores de empresas públicas, depois empreiteiros e depois políticos. Ora isso não cabe numa tela, é gente de mais”, nota Soarez, cujos esforços de “redução, condensação e simplificação” ao serviço do drama contribuíram também para “afastá-lo da realidade” original que sustenta o enredo.

Por isso, em O Mecanismo, a enorme equipa de investigadores da Lava-Jato na polícia federal foi reduzida a quatro pessoas; os procuradores, mais de 12, resumem-se a dois. Já o “doleiro”, que com o desenvolvimento da operação na vida real se tornou um elemento quase secundário, aqui afirma-se como uma das peças centrais da narrativa. “Na ficção, você cria um personagem e de repente ele fica bom, ele agrada, e aí a gente vai com ele”, justifica Elena Soarez.

Para a argumentista, Roberto Ibrahim (interpretado por Enrique Diaz) “é aquele tipo de elemento que consegue dissolver-se entre todas as instâncias”. A sua ascensão, na série, é bastante semelhante à do “doleiro” original, que consegue com o seu negócio de lavagem de dinheiro chegar ao centro do poder político brasileiro. “É fascinante ver como ele encontra uma avenida aberta e consegue mexer-se tão bem dentro desse esquema [de corrupção]”, considera Elena Soarez.

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Enrique Diaz que interpreta Roberto Ibrahim e o actor Selton Mello Karima Shehata/Netflix

Mas o vilão também é importante, porque é ele que dá sentido à acção do protagonista. Para conferir um carácter mais aguerrido e passional à narrativa, Soarez tentou “fazer gato e rato entre os dois personagens”, até encontrar neles “patologias complementares” e começar a ver que “eles pertencem um ao outro”. “O gato levanta da cama todo o dia achando que tem de consertar o mundo, e o rato ignora e pula a regra, que não vale para ele”, explica, dizendo que a dinâmica criada entre os dois segue “as regras postulares da dramaturgia, que são basicamente oposição, conflito e reversão”.

A narrativa segue os esforços da equipa formada por Ruffo e a sua subordinada e protegida Verena (Caroline Abas) para apanhar Ibrahim. Uma primeira tentativa, em 2003, termina em frustração e fracasso, mas é aqui que se acende o rastilho da Lava-Jato, em 2013. O enredo respeita a ordem cronológica das operações, que em O Mecanismo cobrem apenas as primeiras sete etapas (desdobramentos) da investigação, que actualmente se encontra na sua 49.ª operação.

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A actriz Caroline Abras interpreta Verena Pedro Saad/Netflix

É o suficiente para que o espectador fique a conhecer o funcionamento do esquema de lavagem de dinheiro e a perceber as ramificações políticas do escândalo que realmente abalou o Brasil. A série arrasa com todas as ilusões que pudessem ainda restar sobre a credibilidade do sistema político ou a dignidade dos dirigentes do país. E O Mecanismo atreve-se a desafiar a versão oficial dos autos: por exemplo, na série, a conivência da presidente Janete Ruscov com o sistema de inflacionar os cadernos de encargos das obras da petrolífera estatal para distribuir verbas para a campanha eleitoral é declarada, mas a ex-Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, nunca foi oficialmente implicada no escândalo da Lava-Jato. Elena Soarez não esconde o seu desconforto com essas cenas. “Por mais decepcionante e mais doloroso que seja a perda de uma ilusão que alimentamos com tanta fé, as evidências de que todos sabiam são inelutáveis”, lamenta.