Não vimos o mito Bob Dylan, vimos um artesão surpreendente, sublime

Numa esgotada Altice Arena, em Lisboa, passou por clássicos da década de 1960, por clássicos tardios, pelo cancioneiro americano que tem revisitado. Acompanhado por músicos extraordinários, deu novas formas às canções, viajando por elas com habilidade e sabedoria. Aos 76 anos, o guardião da tradição recusa-se a cristalizar. Felizmente.

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Ao longo de todo o concerto, o cantor, como é nele habitual há muito, nada dirá além das canções que canta. Canções que podem não dizer imediatamente quem são, mas que não escondem por um momento aquilo de que são feitas. Demoramos algumas estrofes a identificar Highway 61, mas o balanço assertivo do boogie-rock impõe-se ao primeiro compasso. Estamos tão embrenhados na elegância clássica da country movida a contrabaixo e silvo de pedal-steel que não reconhecemos logo o orgulhoso despeitado de Don't  think  twice  it's  alright. Bob Dylan toca Desolation  row e vemos a sua solidão emocional, devastadora, registada em disco ganhar a delicadeza da rosa de Spanish harlem, standard do tempo em que as canções brotavam todos os dias, às dezenas, no Brill Building nova-iorquino.

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Ao longo de todo o concerto, o cantor, como é nele habitual há muito, nada dirá além das canções que canta. Canções que podem não dizer imediatamente quem são, mas que não escondem por um momento aquilo de que são feitas. Demoramos algumas estrofes a identificar Highway 61, mas o balanço assertivo do boogie-rock impõe-se ao primeiro compasso. Estamos tão embrenhados na elegância clássica da country movida a contrabaixo e silvo de pedal-steel que não reconhecemos logo o orgulhoso despeitado de Don't  think  twice  it's  alright. Bob Dylan toca Desolation  row e vemos a sua solidão emocional, devastadora, registada em disco ganhar a delicadeza da rosa de Spanish harlem, standard do tempo em que as canções brotavam todos os dias, às dezenas, no Brill Building nova-iorquino.

Na Altice Arena, em Lisboa, esta quinta-feira, na primeira data da sua nova digressão europeia, Bob Dylan foi realmente o “desconstrutor”, como Gonçalo Frota o apelidou de forma feliz no PÚBLICO, em antecipação do concerto. Desconstruiu, porém, de forma justa e fidelíssima para com aquilo que tem sido nesta última fase da sua carreira, ou seja, um guardião da tapeçaria clássica da música americana criada no pré e no imediatamente pós rock'n'roll – algo acentuado nas três últimas edições, Shadows  in  the night, Fallen Angels e Triplicate, compostas na sua maioria por música outrora interpretada por Frank Sinatra.

Acompanhado por uma banda de excepção, formada pela dupla de guitarristas Charlie Sexton e Stu Kimball, pelo baixista e contrabaixista Tony Garnier, pelo baterista George Receli e pelo multi-instrumentista Donnie Herron (pedal steel, mandolim, violino), mergulhou as suas canções nesse caldeirão riquíssimo, que também ajudou a construir, e fê-lo como se nos dissesse que a marca e o prestígio da assinatura autoral é menos determinante do que o artesanato em que ela se molda – e, nesse sentido, assinou um concerto magistral, de uma capacidade interpretativa admirável (a voz pode estar gasta e pouco ágil, mas a sua capacidade expressiva surge afinadíssima), de uma segurança e liberdade instrumental empolgantes, de uma crença inabalável neste ofício das canções que é a sua arte. 

Quando faltava ainda meia hora para o início da actuação, havia um Dylan louro a tocar The times they are a-changing frente à fila formada junto às entradas. Havia um Dylan moreno, de cabelo comprido e boina a cobrir a cabeça, que soprava uma harmónica e dedilhava uma guitarra. Havia ainda outro Dylan, pouco mais novo que Dylan ele mesmo, de sandálias calçadas no frio nocturno, barba e cabelo grisalhos, viola a tiracolo. Havia três Dylans às portas da Altice Arena no dia em que Robert Allen Zimmerman, nascido há 76 anos em Duluth, regressou a Portugal. Mas não vimos o Dylan caricatural que os músicos de rua pretendem homenagear, não vimos sequer o Dylan que, na última visita, em 2008, se postou à direita do palco principal do Nos Alive e, debruçado sobre um pequeno piano, tocou sem grande entusiasmo para demasiados que pareciam mais atraídos pela possibilidade de ver o mito e documentar o encontro que pela música que o mito tinha para tocar.

Na noite de quinta-feira, num pavilhão com lotação esgotada, esteve a lenda, o músico determinante na história da música popular urbana do pós-guerra, o senhor Nobel da Literatura - tudo isso conferiu à ocasião uma certa solenidade e uma palpável expectativa. Naquele palco sóbrio, despido dos ecrãs e tecnologia de ponta hoje tão habituais, sob a luz dos holofotes de outros tempos que criavam um efeito misto de salão de baile e set cinematográfico, eis o Bob Dylan que desde 1989 percorre o mundo ininterruptamente – fá-lo porque dar concertos e gravar discos é o seu ofício e, independentemente dos 76 anos bem contados, um artesão é um artesão.

Foi afinal este que ali tivemos: um inspiradíssimo artesão da música americana nas suas diversas declinações (o rock, o blues, a folk, a country, o crooning pré-rock) mas, também, o homem que se mantém avesso a ser cristalizado numa imagem estanque. E, se assim é, Why try to change me now?, como cantou, quase no final do concerto, na única vez em que se levantou do piano de cauda – o público aplaudiu o movimento e Dylan, no centro do palco, cantou versos sob o signo de Sinatra em pose de rock'n'roller, debruçado sobre o suporte inclinado do microfone.

Pouco antes do início da actuação, marcada para as 21h, o público fora avisado pelo sistema sonoro que seria proibido gravar ou filmar o concerto, sob pena de expulsão da sala – quanto aos repórteres fotográficos, já sabiam que não teriam trabalho naquela noite. Todos os olhares se concentraram assim nas seis figuras em palco e nas canções que nasciam por indicação do homem sentado ao piano. Um acorde nas teclas e arranca o blues tonitruante de Early Roman kings, enfeitiçado por Muddy Waters. Um par de notas ouvido em surdina e é disparada a energia country-rock de Thunder on the moutain. Um sinal apenas e deparamo-nos com a dor da assombrosa e assombrada Love sick, extraída do álbum que prenunciou o renascimento criativo em 1997, Time Out of Mind (“You destroyed me with a smile / While I was sleeping / I'm sick of love”). Foi a primeira despedida.

No encore, Blowing in the wind chegou com violino e pedal-steel. Desmontada do seu estatuto de hino repetido até à exaustão, foi cantada com desconfiança dos versos encadeados – a única forma, provavelmente, de manter significativa uma canção gasta por demasiado uso. Sequência perfeita, o final do concerto começa a anunciar-se no tom dramático dos acordes de Ballad of a thin man, com o guitarrista Charlie Sexton a brilhar uma última vez e com Bob Dylan acentuando o tom cavernoso da ameaça que é a chave da canção: “Because something is happening here, but you don't know what it is / do you, Mr. Jones?”.

Uma vénia depois, a banda abandona o palco pela segunda e última vez. O mito, o Nobel da Literatura, dava por terminado o seu sétimo concerto português. Que dizemos? O artífice inspirado, acompanhado por um memorável conjunto de músicos, acabava de mostrar, num concerto inspirador, o que é ser, verdadeiramente, um guardião da tradição: é incorporá-la em si até que se torne gesto inato, é usá-la como matéria em transformação, fazê-la corpo vivo em vez de espectro do passado.

No pavilhão, o senhor Zimmerman tocou música que sobrevoa os tempos e mostrou-nos o que é agora, em 2018, tantas vidas e tantas máscaras depois. Revelou-se ainda vital. No exterior, enquanto o público abandonava a sala, os Bob Dylans continuavam em plena actividade. Cantavam músicas dos anos 1960 de um cantor muito famoso.