Estão a meter Leonor Teles numa gaveta e ela a querer sair de lá
Depois do Urso de Ouro da Balada de um Batráquio, estreia a primeira longa no festival Cinémas du Réel. Terra Franca é um documentário que não tem nada a ver com as curtas anteriores. É de propósito, diz ela
Há uns tempos, estava Leonor Teles ainda a acabar a sua primeira longa, um colega dizia ter muita curiosidade no que ela iria fazer. Tendo em conta que a realizadora só tinha duas curtas em carteira, “completamente diferentes uma da outra”, o que é que se poderia esperar?
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Há uns tempos, estava Leonor Teles ainda a acabar a sua primeira longa, um colega dizia ter muita curiosidade no que ela iria fazer. Tendo em conta que a realizadora só tinha duas curtas em carteira, “completamente diferentes uma da outra”, o que é que se poderia esperar?
O melhor, se calhar, é não esperar nada. Até porque Leonor não quer estar onde estão à espera dela. “Parece que temos sempre de estar a meter as pessoas em gavetas, não é?”, ri-se. “Estão-me a meter numa gaveta e eu a querer sair de lá! A mim faz-me muita confusão quando as pessoas fazem filmes que são demasiado semelhantes, ou quando arranjam uma fórmula que aplicam a todos os filmes, quando se estão a repetir. Sou precisamente o contrário: para cada filme tem de se encontrar a forma justa, tem de se perceber o que é que o filme pede.”
Aos 25 anos, sabe muito bem o que quer fazer. A melhor prova disso é que a sua primeira longa-metragem, o documentário Terra Franca, tem este fim-de-semana estreia mundial na competição principal do festival parisiense Cinémas du Réel, ao lado de alguns dos documentários mais falados deste início de ano (como The Waldheim Waltz de Ruth Beckermann, Infinite Football de Corneliu Porumboiu ou L. COHEN de James Benning). E não é o único filme português na programação do festival, que vai também mostrar, fora de concurso, Ico Costa (BARULHO, ECLIPSE), Filipa César (Spell Reel) ou Salomé Lamas (o novo Extinção, chegado da sua estreia no CPH:DOX dinamarquês). E isto num ano no qual, em apenas três meses, o cinema português tem marcado presença fortíssima em festivais internacionais (Tempo Comum, de Susana Nobre, Djon África, de Filipa Reis e João Miller Guerra, e O Termómetro de Galileu, de Teresa Villaverde, em Roterdão; Mariphasa, de Sandro Aguilar, A Árvore, de André Gil Mata, e Our Madness de João Viana em Berlim). “O país é muito pequeno, há muito pouco dinheiro, poucas pessoas fazem isto,” admite Leonor, “e mesmo assim, ainda conseguimos fazer muitas coisas que consideramos fixes, boas, e continuamos a ter muita visibilidade lá fora. É algo de mesmo especial”.
É por isso que Leonor, nesta tarde de aguaceiros no café da Cinemateca Portuguesa, poucos dias antes de partir para Paris, diz entre risos que está “mal habituada”. “Acho que tenho a felicidade e o privilégio de ser bastante livre nos meus filmes. Tenho feito aquilo que quero, ninguém me pôs objecções, os meus produtores, a Filipa Reis e o João Miller Guerra, deixam-me fazer praticamente tudo. Estou mesmo muito mal habituada! E felizmente continuo a conseguir fazê-lo e isso é extraordinário.”
Inevitavelmente, essa liberdade vem também do êxito de Balada de um Batráquio, segunda curta de Leonor, que a tornou na mais jovem vencedora de sempre do Urso de Ouro da curta-metragem em Berlim em 2016. Esta “maluqueira desgraçada” (a descrição é dela) sobre a xenofobia e a superstição para com as comunidades ciganas tornou-se num pequeno fenómeno, continua a ter uma longa carreira de festivais e colou à jovem uma imagem de “miúda reguila” que vai custar a afastar. “Uma pessoa ir partir sapos? Aquele filme podia facilmente ter corrido muito mal,” sorri. “Pode parecer um filme muito instintivo, mas era super-cerebral. Tudo nele estava escrito, porque como o fiz em película tinha de saber exactamente o que ia filmar.”
Leonor sabe que a sua curta a vai perseguir durante muito tempo - “tenho de viver com isso,” admite. “Mas se de facto a Balada lançou os holofotes sobre mim, a única coisa que posso almejar que aconteça é que leve as pessoas a quererem ver o Terra Franca.” Esta primeira longa, resultado de três anos de trabalho (um ano cada para preparação, rodagem e montagem) que agora vê estreia mundial em Paris, acabou por “protegê-la” dos potenciais efeitos nocivos de um prémio tão mediático. “Comecei a rodar em Outubro de 2015, estava em plena rodagem quando a Balada ganhou Berlim. Se não o estivesse a fazer, poder-me-ia ter sentido um bocado perdida, do tipo «o que é que eu faço agora?» Mas como já sabia o que ia fazer, simplesmente continuei a fazê-lo.”
Vila Franca
Terra Franca, que só veremos por cá mais lá para a frente em 2018, não tem nada a ver com a frescura irreverente da Balada ou com o olhar documental sobre a cultura cigana da sua primeira curta-metragem, Rhoma Acans. Por esta altura, já é mais que sabido que Leonor é filha de pai cigano e mãe gentia, que não cresceu dentro da comunidade cigana, e que não quer ser porta-voz de absolutamente nada. “As pessoas achavam que eu só ia estar numa temática fechada e isso é super-limitativo,” explica. “Senti que essa temática se estava a esgotar, que não tinha mais nada para dizer sobre ela, e não quis estar a repetir-me.” (Lá está, cada filme pede algo de diferente.) Mas a cineasta não se afastou muito de casa com Terra Franca, filmado na sua Vila Franca de Xira, acompanhando o quotidiano de Albertino Lobo, pescador local, e da sua família ao longo de um ano inteiro.
“Sempre quis fazer alguma coisa ali, não sabia exactamente o quê, porque cresci em Vila Franca e sempre tive uma relação com o rio,” explica. “Uma vez, fui filmar uma coisa à Praia dos Cavalos, ainda estava na Escola Superior de Teatro e Cinema, e fui de barco com o Albertino. Isto foi em 2011-2012 e a imagem dele, no barco, como se fosse um herói, ficou a martelar na minha cabeça. É assim que os meus filmes começam, aliás!” Leonor ri-se. “Começam a introduzir-se não sabe bem onde e depois chega uma altura em que começam um bocado a gritar «está na altura, está na altura!»” E tornou-se evidente que o “herói” deste documentário à volta de Vila Franca iria sempre ser Albertino. “Aquilo esteve dois, três anos na minha cabeça. Eu já o conhecia, e ainda ponderei ver outras pessoas, mas não: foi a primeira pessoa que eu vi, e tinha de ser ele. Acabou por ser uma coisa muito natural, e ele disse que sim, só me perguntava «não me vais pedir para fazer assim nada de especial, pois não?»”
Entre o Urso de Ouro da Balada de um Batráquio e a estreia de Terra Franca, o nome de Leonor Teles surgiu num outro filme, mas não como realizadora: como directora de fotografia de Verão Danado, o filme de Pedro Cabeleira, produzido independentemente, que teve estreia competitiva em Locarno no ano passado. Aquando de Locarno, Pedro Cabeleira tinha dito ao PÚBLICO que a sua primeira longa fora em parte a prova dos nove de que seria possível a uma equipa de jovens estudantes fazer um filme em absoluta independência, fora do “sistema” para o qual a Escola de Cinema os estaria a preparar. Uma prova de liberdade e voluntarismo, numa lógica de “electrões livres” na qual Leonor, colega de curso de Cabeleira, se inscreve por inteiro.
“É muito difícil para pessoas da minha idade entrar neste meio, que não absorve pessoas novas, e que acaba por gerar competições desnecessárias,” diz. E a ideia do “electrão livre” vai inteiramente de encontro ao seu próprio olhar de cineasta que é, também, e sobretudo, directora de fotografia. Porque é essa a sua formação e é isso de que ela mais gosta: “Sinto-me melhor a ser directora de fotografia, obviamente. Não tenho dúvidas nenhumas. A seguir a eu ter ganho o Urso de Ouro, houve quem me dissesse, 'agora vais ter de escolher se queres ser realizadora ou directora de fotografia'. 'Como assim, vou ter de escolher? Porquê? Se gosto de fazer as duas coisas, e se posso fazer as duas coisas?'. 'Ah, não vais ter tempo, não vais conseguir conciliar...' Está bem, vamos ver.” Leonor ri. “Estão a meter-me numa gaveta e eu a querer sair dela!”
Mas, se é a fotografia que a chama, então porquê fazer filmes? “Porque há coisas, temas, palavras, imagens dentro de mim que não se calam enquanto eu não fizer um filme!” Mas, para já, esse filme é, forçosamente, um documentário. “Tenho um medo gigante de dirigir pessoas, de trabalhar com actores. Para fazer ficção ponham-me só a fazer fotografia que assim não me chateio,” sorri Leonor. “Sinto-me mais do documentário, porque há qualquer coisa que o documentário me dá que a ficção não me dá. Ou talvez seja eu que ainda não tenha conseguido chegar, através da ficção, a alguma coisa que o documentário me dá. Mas não sei, se calhar o que vou fazer a seguir será mais próximo da ficção...”
A única certeza é que vai ser diferente do que Leonor Teles fez até agora. “Os meus filmes são todos diferentes uns dos outros? Ainda bem!”