O futuro da saúde oral no Serviço Nacional de Saúde?
Criar a carreira de medicina dentária é assegurar que as consultas de saúde oral serão de uma vez por todas parte integrante e indivisível do SNS.
A Organização Mundial da Saúde considera que “a saúde oral é uma componente essencial da saúde em geral e um índice elevado de saúde oral é um direito humano fundamental”, mas o nosso Serviço Nacional de Saúde, quando foi criado em 1979, deixou de fora a saúde oral.
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A Organização Mundial da Saúde considera que “a saúde oral é uma componente essencial da saúde em geral e um índice elevado de saúde oral é um direito humano fundamental”, mas o nosso Serviço Nacional de Saúde, quando foi criado em 1979, deixou de fora a saúde oral.
O acesso a cuidados de medicina dentária foi sendo proporcionado por médicos dentistas em consultórios privados, mas obviamente para aqueles com recursos económicos para tal, que são menos de metade da população.
Não surpreende por isso que Portugal detenha, no que respeita à saúde oral, uma das piores situações comparativamente aos restantes países da Europa.
Ainda no ano passado, o Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS) alertava que "os mais pobres continuam a ter menor utilização de consultas de especialidade [...], particularmente no acesso à saúde oral e mental e aos medicamentos", cuidados cujos custos são classificados como ‘despesas catastróficas’ para estes portugueses”.
Só em 2008 foi dado um primeiro passo para que os utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS) pudessem aceder a consultas de saúde oral. O Programa Nacional de Promoção de Saúde Oral, conhecido por “Cheque-Dentista”, em que o SNS contrata a profissionais aderentes, hoje mais de 4000, alguns tratamentos para grupos especiais da população, crianças e adolescentes, grávidas, portadores de VIH/sida e combate ao cancro oral. Ou seja, apenas uma pequena parte da população beneficia do Cheque-Dentista.
Para alargar os cuidados de saúde oral a toda a população, vários caminhos são possíveis: equipar os centros de saúde e contratar médicos dentistas para atender a população; alargar o programa Cheque-Dentista; comparticipar em regime de convenção (tipo ADSE) as consultas dos utentes do SNS por parte do Estado ou combinar as hipóteses anteriores.
O atual Governo decidiu-se há dois anos pela primeira hipótese. Foi uma opção política que mereceu o aplauso da Ordem dos Médicos Dentistas (OMD). Como teria merecido o mesmo aplauso caso a opção tivesse sido outra.
Na perspetiva da OMD e das pessoas, o que é necessário é promover o acesso para todos a cuidados de saúde oral com qualidade. Se isso é feito no setor público ou em parceria com o privado, é indiferente. Há bons exemplos a nível internacional para ambas opções.
Em 2016, foram feitas obras em alguns centros de saúde do sul do país e contrataram-se médicos dentistas para um projeto-piloto que visava o atendimento da população mais vulnerável.
A partir de 2017, o projeto-piloto foi sendo alargado e atualmente mais de 50 centros de saúde do continente dispõem de médicos dentistas a atender a população, em instalações adequadas e com equipamentos ao nível do que acontece no setor privado. O Governo quer que até ao final do próximo ano todos os Agrupamentos de Centros de Saúde (ACE) tenham consultas de medicina dentária.
No projeto-piloto, os médicos dentistas são contratados como prestadores de serviços, sem vínculo laboral nem exclusividade e por um período de 12 meses sem direito, por exemplo, a subsídios de férias, Natal ou baixa médica.
Alargar a oferta de consultas de saúde oral a todos os ACE exige, porém, que os médicos dentistas a exercer no SNS tenham um enquadramento adequado, uma carreira de medicina dentária. Para tal, foi nomeado um grupo de trabalho por parte do Governo que produziu uma proposta a qual mereceu o acordo do Ministério da Saúde.
Uma carreira própria porque a medicina dentária é uma profissão única. Combina a conceção intelectual de um trabalho, com a execução médica, operatória e cirúrgica do mesmo com procedimentos adequados realizados no paciente.
A medicina dentária é em todo o mundo uma profissão autónoma, com uma formação no mínimo de cinco anos e de 5000 horas em universidade, dirigida para a especificidade da medicina dentária. Não é uma especialidade da medicina e tem organização própria, através da Ordem dos Médicos Dentistas.
Em contacto direto com o paciente, o médico dentista, no âmbito do conteúdo funcional da profissão, integra conhecimentos médicos, científicos, adquiridos na elaboração do diagnóstico e plano de tratamento com uma abordagem operatória e cirúrgica no paciente com vista à obtenção do resultado final, prevenção, manutenção e obtenção da função e estética.
Para tal, socorre-se o médico dentista de um conjunto de meios auxiliares de diagnóstico, radiografia e imagiologia, de entre outros, e de um conjunto de imprescindíveis equipamentos e dispositivos, de materiais dentários e medicamentos, bem como do apoio da equipa de saúde oral, em particular assistente dentário. O médico dentista prescreve também medicamentos e fármacos através de receitas médicas e atesta a saúde e doença através de atestados médicos.
O atual modelo de prestação de serviços do projeto-piloto é precário para utentes e médicos dentistas, que sem exclusividade trabalham noutros consultórios e estão em constante procura de emprego, em busca de uma situação menos precária que no SNS. A continuidade do seguimento dos doentes estará sempre em causa. O facto de os médicos dentistas não estarem integrados de forma plena torna muito difícil a articulação de equipas interdisciplinares como recomendam as melhores práticas em saúde, sobretudo, por exemplo, no atendimento de pacientes com doenças cardiovasculares e diabetes, das mais comuns em Portugal. No modelo em vigor não existe estabilidade profissional, o que põe em causa o recrutamento e a motivação dos profissionais que estão sujeitos a concursos constantes.
Criar a carreira de medicina dentária é por todos estes motivos assegurar que as consultas de saúde oral serão parte integrante e indivisível do SNS de uma vez por todas. A única certeza de que não haverá lugar a recuos.
No que à saúde oral diz respeito, Portugal desperdiçou quase 40 anos para garantir um direito constitucional. Nos direitos e deveres fundamentais da Constituição da República Portuguesa está inscrito que “todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover” e que “para assegurar o direito à proteção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado [...] garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação”. Na saúde oral este direito tem sido esquecido.
Hoje, o investimento está feito e devidamente orçamentado, os médicos dentistas estão contratados, faltando apenas um último passo, a imprescindível co-aprovação da carreira de medicina dentária por parte do Ministério das Finanças.
Todos esperamos que se concretize rapidamente para que não se deite tudo a perder. Os portugueses merecem.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico