Do furacão Ophelia aos piro-cúmulo-nimbos
Eis a explicação dos fenómenos meteorológicos associados aos mega-incêndios entre 14 e 16 de Outubro do ano passado, segundo as conclusões da Comissão Técnica Independente criada pela Assembleia da República para os avaliar.
O que diz o relatório da Comissão Técnica Independente sobre as condições meteorológicas associadas aos incêndios entre 14 e 16 de Outubro?
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O que diz o relatório da Comissão Técnica Independente sobre as condições meteorológicas associadas aos incêndios entre 14 e 16 de Outubro?
Diz, para 15 de Outubro, que o perigo meteorológico de incêndio tinha sido classificado como Extremo para quase todo território de Portugal continental e que essa previsão, do Instituto do Mar e da Atmosfera (IPMA), existia desde 12 de Outubro. Para esse perigo Extremo contribuíram factores como a previsão de ventos fortes resultantes da exposição a ar quente e seco vindo de sul (do Norte de África), intensificados pelo furacão Ophelia, e a que se juntou a seca severa que o país vivia. Entre os dias 14 e 15, a temperatura do ar superou os 30 graus Celsius em muitos locais do país e, em alguns, a humidade relativa do ar desceu abaixo de 15%.
A 13 de Outubro, frisa o relatório da Comissão Técnica Independente, o IPMA fez mesmo uma previsão pirometeorológica especial a alertar para “valores excepcionalmente elevados do índice meteorológico de perigo de incêndio” (usando o sistema canadiano de perigo meteorológico de incêndio conhecido pela sigla FWI), “devido principalmente à intensificação do vento prevista para a tarde de 15 de Outubro”.
Depois de se explicar que um índice FWI igual ao valor 38 corresponde ao limiar da classe de perigo Extremo, no relatório diz-se que nas previsões para 15 de Outubro eram preponderantes valores de FWI superiores a 50, com máximos locais a ultrapassar até 80. “O índice FWI foi maior do que 60 numa fracção substancial do Centro do país no dia 15”, lê-se ainda. Mais: “O FWI médio nacional atingiu 59,2, o valor mais elevado desde 1999.”
Qual é o maior incêndio florestal de que há memória no país?
É precisamente um dos fogos que começaram a 15 de Outubro de 2017 – neste caso, o que teve início na freguesia de Vilarinho, concelho da Lousã, e cuja área ardida ultrapassou os 45.500 hectares. É considerado um mega-incêndio.
E o que é um mega-incêndio?
Os fogos florestais cuja área ardida ultrapasse os 10.000 hectares, tendo em consideração as características da paisagem do Sul da Europa, são classificados como mega-incêndios, como explica o relatório. O primeiro que aparece nas estatísticas portuguesas é de 1986, em Vila de Rei, tendo ardido 10.032 hectares. Desde aí até 2017, está registada em Portugal a ocorrência de 26 mega-incêndios no total.
Quantos mega-incêndios houve em 2017?
Além das pessoas que morreram – 64 nos incêndios de Pedrógão Grande e 48 nos de Outubro –, o número de mega-incêndios em 2017 também é revelador da dimensão que tomou esta tragédia. Só no ano passado houve 11 mega-incêndios, entre um total de 26 registados no país até agora. E se olharmos para esses 11 incêndios de proporções gigantescas, oito tiveram início a 15 de Outubro – o que é muito revelador do que se passou nesses dias, em que arderam no total 219.000 hectares. “Os mega-incêndios de 15 de Outubro individualizaram-se, para além da sua inusitada dimensão e velocidade de expansão, por serem os primeiros desta ordem de grandeza a ocorrer no Outono, em Portugal e no Sul da Europa.” Voltando ao perigo meteorológico, destaca-se ainda que os fogos de Outubro “ocorreram em condições de perigo meteorológico de incêndio tão ou mais severas do que os mega-incêndios do passado”.
O furacão Ophelia agravou os incêndios?
Sim, segundo o relatório, mas houve outros fenómenos que depois tornaram tudo ainda pior do ponto de vista meteorológico. “A gravidade dos incêndios de 15 de Outubro é consequência directa da influência do Ophelia”, acrescentando-se que, “no seu trajecto, bordejou Portugal e que gerou períodos de tempo atmosférico com elevadas temperaturas, com reduzida humidade do ar e dando origem a ventos muito fortes”.
Mas se, inicialmente, o que permitiu o crescimento dos incêndios foi a força do vento e a humidade baixa, com a influência dominante do Ophelia, depois entraram em acção fenómenos de piro-convecção – simplificando, movimentos ascendentes e descendentes na atmosfera associados aos incêndios –, que vieram a agravar os fogos ainda mais. “É o conjunto de fenómenos piro-convectivos que de seguida se desenvolveu, e não unicamente o vento [do Ophelia], o responsável pelo grande episódio de incêndios da tarde de 15 de Outubro e noite de 16 de Outubro. O vento enfraqueceu após as 16h, o seu pico máximo”, nota-se. Portanto, é depois dos ventos do furacão Ophelia (que nos chegou “apenas” como tempestade) se terem acalmado que os fenómenos de piro-convecção assumiram grandes proporções, o que aconteceu a partir do fim da tarde e, de forma mais generalizada, a partir da meia-noite e que coincidiu com a maioria das vítimas. Ora esses fenómenos acabaram por desencadear rajadas de vento muito fortes.
Que fenómenos de piro-convecção foram esses?
Os incêndios de 15 de Outubro originaram a formação de dois tipos de nuvens: cúmulos e cúmulo-nimbos. Antes de mais é preciso dizer o que os cúmulos “normais”, que não estão assim ligados a incêndios, são aquelas nuvens com aspecto de algodão fofinho, geralmente associadas a bom tempo e um céu azul. Mais altas do que largas, são constituídas por gotículas e gotas de água e, no seu topo, pode haver eventualmente cristais de gelo, explica o meteorologista Paulo Pinto (do IPMA), que não participou na elaboração do relatório sobre os incêndios. Para que uma nuvem tenha gotas ou gelo, o vapor de água na atmosfera tem de subir até atingir um nível em que pode passar ao estado líquido (condensação) ou mesmo sólido (congelação) à volta de poeiras e de outras partículas em suspensão na atmosfera (os “núcleos de condensação”).
Mas se um cúmulo continuar a desenvolver-se verticalmente pode tornar-se um cúmulo-nimbo, uma nuvem de trovoadas, chuvas fortes e até tornados, caracterizada por uma estrutura típica no topo em forma de bigorna. Tem a forma de um cilindro e, no cimo, um penacho. “Em altitude, o vento é mais intenso e despenteia a nuvem. E se houver muito vento, forma-se a bigorna”, nota Paulo Pinto, dizendo que os cristais de gelo são aí arrastados na direcção do vento.
Embora a maior parte destes dois tipos de nuvens não tenha a ver com incêndios, estes podem originar a sua formação, como aconteceu a 15 de Outubro. Designam-se então por piro-cúmulos e piro-cúmulo-nimbos.
Quando os ventos do Ophelia perderam força, a energia libertada pelos incêndios superou a energia dos ventos em geral. Então, o ar extremamente aquecido (mais leve) pelos incêndios foi subindo na atmosfera e atingiu níveis elevados, tal como as partículas de cinza e outros tipos de partículas libertadas pelos fogos. Em resultado disso, havia muito mais núcleos de condensação disponíveis para que, à sua volta, o vapor de água se pudesse agregar e ocorre-se a condensação e até congelação.
O problema foi que os piro-cúmulos e os piro-cúmulo-nimbos estiveram depois na origem de correntes de ar descendentes (downdrafts, o termo no relatório), como mostram os registos da velocidade do vento. Ao chegar a grandes altitudes, o ar muito aquecido devido à combustão arrefeceu aí, tornando-se assim mais denso e descendo, explica Paulo Fernandes, especialista em incêndios da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e um dos membros da Comissão Técnica Independente. Devido a essas correntes de ar descendentes, também um fenómeno de piro-convecção, houve as rajadas de vento fortes.
Os incêndios mais atingidos por estes fenómenos foram os do Centro interior do país. Geraram-se downdrafts múltiplos e contínuos, que aceleraram e expandiram os incêndios erraticamente e em diferentes direcções, que se deixaram de se comportar de forma convencional, sublinha o relatório. Foi “o maior fenómeno piro-convectivo registado na Europa até ao momento e o maior do mundo em 2017”.
Este tipo de incêndios é relacionável com as alterações climáticas?
Sim, conclui o relatório, “sendo de esperar a sua repetição num futuro próximo”. Por isso, recomenda-se que se criem capacidades para prever e monitorizar estes episódios rápidos e catastróficos.