O amor é tudo, inclusivamente género, sexualidade, raça e feminismo
Flora Matos, um dos nomes da extraordinária nova vaga do hip-hop brasileiro, fez um disco inteiro em torno do amor por uma pessoa para, no fim, descobrir o amor por si própria. Para ouvir sexta-feira no Porto (Plano B) e sábado em Lisboa (Musicbox).
Quem ouvir Electrocardiograma, primeiro álbum a solo da brasileira Flora Matos lançado, de forma independente, em Setembro do ano passado (depois da mixtape Flora Matos Vs Stereodubs, em 2009), cedo se aperceberá de como todo ele anda exaustivamente à volta do amor e suas vicissitudes (como, de resto, o próprio título do disco insinua). O twist, porém – talvez só perceptível numa segunda escuta mais apurada –, está no facto de se, nas primeiras onze canções, ouvimos Flora cantar o amor com um destinatário concreto (ainda que não identificável), em Preta da Quebrada, que fecha o alinhamento, a brasiliense descola dessa adoração tóxica e vira-se para si mesma – amor-próprio, então, amor de si e para si, culminar de uma dor que, por vezes, só é passível de ser curada quando compreendemos, enfim, que, para nos aventurarmos no amor-com-o-outro, devemos ter primeiro a nossa casa arrumada. Este percurso de fora para dentro não é por acaso, tão-pouco mera leitura interpretativa: durante os seis anos que mediaram o início da feitura do disco e o seu lançamento, Flora manteve uma turbulenta relação amorosa (só terminada em Maio do ano passado), amour fou venenoso, (auto-)destrutivo, a dependência e o ciúme a contaminarem, inevitavelmente, todos os momentos de paz e carinho (os reais e os imaginados, esses que concebemos para nos tentarmos enganar a nós próprios, i.é, para justificarmos a manutenção do que não tem por onde se manter).
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Quem ouvir Electrocardiograma, primeiro álbum a solo da brasileira Flora Matos lançado, de forma independente, em Setembro do ano passado (depois da mixtape Flora Matos Vs Stereodubs, em 2009), cedo se aperceberá de como todo ele anda exaustivamente à volta do amor e suas vicissitudes (como, de resto, o próprio título do disco insinua). O twist, porém – talvez só perceptível numa segunda escuta mais apurada –, está no facto de se, nas primeiras onze canções, ouvimos Flora cantar o amor com um destinatário concreto (ainda que não identificável), em Preta da Quebrada, que fecha o alinhamento, a brasiliense descola dessa adoração tóxica e vira-se para si mesma – amor-próprio, então, amor de si e para si, culminar de uma dor que, por vezes, só é passível de ser curada quando compreendemos, enfim, que, para nos aventurarmos no amor-com-o-outro, devemos ter primeiro a nossa casa arrumada. Este percurso de fora para dentro não é por acaso, tão-pouco mera leitura interpretativa: durante os seis anos que mediaram o início da feitura do disco e o seu lançamento, Flora manteve uma turbulenta relação amorosa (só terminada em Maio do ano passado), amour fou venenoso, (auto-)destrutivo, a dependência e o ciúme a contaminarem, inevitavelmente, todos os momentos de paz e carinho (os reais e os imaginados, esses que concebemos para nos tentarmos enganar a nós próprios, i.é, para justificarmos a manutenção do que não tem por onde se manter).
Para ajudar à missa, não menos turbulento foi o próprio processo de produção do álbum, com Flora a saltitar, durante esse período, entre editoras, estúdios e produtores, tendo chegado mesmo a gravar quatro discos diferentes pelo meio de todo o reboliço. Pára-arranca que se deveu, também, a alguns produtores (homens) com quem trabalhou, sempre demasiado condicionadores, segundo Flora, da sua autonomia criativa: “Se o que você fala não está de acordo com o que eles acham, eles acabam desistindo. Para o ego de um homem, aceitar 'ordem' de mulher — mulher que ele nem come, então —, parece ser uma tarefa praticamente impossível", chegou ela a dizer mesmo à Vice.
O resultado desses intensos seis anos de altos e baixos saldou-se, finalmente, no disco saído no ano passado, bem-recebido quer junto da crítica, quer do público, isto num momento em que o hip-hop brasileiro atravessa um período verdadeiramente fulgurante, não apenas em termos quantitativos (como acontece em Portugal, onde, com algumas e excelentes excepções, se vem assistindo à multiplicação de, este é o termo, “produtos” absolutamente indiferenciados, clones de produtos por sua vez americanos), mas qualitativos, inovadores, rompedores, tanto em termos de sonoridade como de escrita: depois dos virtuosos – mas com um percurso iniciado mais lá atrás – Crioulo e Emicida, eis homens e mulheres (menos do que eles, ainda assim, infelizmente), brancos e negros, a reflectir a grande diversidade brasileira, casos de Rincon Sapiência (Galanga Livre, grandíssimo álbum de 2017), Don L (Roteiro pra Aïnouz, Vol. 3, idem), Baco Exu dos Blues (Esú, idem, novamente), Rodrigo Ogi ou Tássia Reis. Filha do músico brasileiro Renato Matos (“Meu pai é responsável por grande parte do que eu sei sobre música no sentido mais prático, assisti ele fazendo, escutei o que ele ouvia, e de certa forma isso me trouxe uma bagagem muito rica”, diz ao Ípsilon, simultaneamente revelando que os dois se encontram a gravar um projecto conjunto) e influenciada pelos grandes nomes do rap brasileiro (cita os Racionais, Sabotage, Dina Di, Black Alien ou Kamau) e americano (Tupac, Laury Hill), Flora, que apresenta o novo disco ao vivo logo à noite no Porto (Plano B) e amanhã em Lisboa (Music Box), surge, precisamente, nessa vigorosa onda. Uma que – e generalizando, necessariamente –, distanciando-se das formas-padrão clássicas do rap brasileiro (o rap de rua contestatário dos Racionais e de Sabotage; o rap “consciente” do grande Gabriel O Pensador; o rap “sambista” e de festa de Marcelo D2), abarca, hoje, uma impressionante pluralidade de sonoridades, discursividades (que ecoam a forte penetração dos estudos pós-coloniais e de género na academia e, por arrasto, sociedade brasileira) e matizes poéticas. Em resumo, diríamos mesmo que, actualmente, é no Brasil que se encontra o que de mais estimulante se faz no hip-hop a nível mundial, moderníssimo naquilo em que ele hoje se se transformou: tão interventivo como festivo, tão romântico como socialmente consciente, tão pop como underground. Em contraposição, Flora confessa-nos o seu desconhecimento em relação ao rap português: “Inclusive peço desculpa pela ignorância, mas pretendo conhecer o que há de melhor nessa viagem!”.
Trap inteligente
Se o amor é, como dissemos, o grande tema que percorre o disco (Perdendo o Juízo, Me Ame em Miami, Quando Você Vem são títulos elucidativos dessa fixação) – embora, aqui residindo o mais interessante, ele vá convocando, nas entrelinhas, tópicos diversos (género e sexualidade, raça, o machismo e a condição da mulher) –, a paisagem sonora, essa, apresenta uma maior heterogeneidade, a qual rima, aliás, com a própria versatilidade de Flora, que tanto rappa, canta, como toca uma balada à guitarra, caso da versão acústica de Com Faz disponível no YouTube (e, embora confesse não puxar do “violão” com frequência, diz-nos estar a amadurecer a ideia de gravar um álbum acústico).
O trap, predominante (totalmente ausente de Flora Matos Vs Stereodubs), tem aqui a particularidade de, ao contrário de 90% das vezes, não só apresentar nuances sónicas interessantes como, mais importante, estar associado a letras com pés e cabeça, que têm, de facto, coisas para dizer. Ele (trap) ganha ecos arabescos em “Perdendo o Juízo”, faixa que, escutada atentamente, tem a (nada insignificante) particularidade de o destinatário (a pessoa amada) ser uma mulher quando, noutras canções, o género vir definido no masculino (Bóra Dançar, por exemplo), ou, então – mais importante –, simplesmente não vir definido de todo (O Jeito). Subtil modo de Flora se subtrair a um quadro hetero-normativo, próprio de alguém que fala descomplexadamente (embora sem fazer disso bandeira) da sua sexualidade aberta e fluída, uma onde o desejo, contrariando o formalismo binário, é quem mais ordena. Mais importante é, isso sim, a insistência desesperada numa reciprocidade de afectos que, advinha-se, não existe, e, pior, é repelida com violência, física inclusivamente (Ameaça me dar porrada / Toda vez que eu cometo um vacilo / E eu fico pensando lá em casa / Talvez eu esteja perdendo o juízo). O trap, agora psicadélico, onírico, estende-se a Me Ame em Miami, graves obesos a servirem de amortecedor ao canto-rap deslizante, swinguesco (na linha de nomes contemporâneos como SZA, IAMDDB ou Rihanna, nome primeiro quando lhe perguntamos com quem gostaria de colaborar), para posteriormente adquirir contornos tribais (na percussão) em “Não Vou Mentir”. O mesmo trap que sampla – embora, verdade seja dita, sem toque particular algum, lamentável quando se trata de um pedaço já samplado à exaustão no hip-hop – a Sunny de James Brown em Sonhos Gangsta (também samplada entre portas, casos de À Procura de Perfeita Repetição de Sam The Kid, ou Dá-me Espaço, dos Grognation).
O dub já timidamente presente na Minha Voz da mixtape de 2009 assome agora com grande à-vontade em Como Faz (com um pé no igualmente jamaicano dancehall) e, sobretudo, Parando as Horas (tintado, novamente, pelo trap, cruzamento pouco frequente de se ouvir e que aqui se concretiza com assinalável mérito). Mas há, também, um irresistível sabor do R&B dos anos 90, esse de “Quando Você Vem”, com a colaboração de Ahrel Lumzy (colaborador habitual de D’Angelo), que Flora conheceu num tour da rapper Akua Naru (uma das mulheres mais preciosas no rap feito a nível mundial) pelo Brasil, Deixa Brilhar (que quase ouvimos já a ser misturada num drum ’n’ bass à medida de um DJ Marky) ou da colorida O Jeito, que parece saída das mãos do Timbaland dos nineties e na qual a brasileira mostra – e, por vezes, isto ainda é preciso, infelizmente – como uma mulher determinada e absolutamente dona de si (“Não faço questão que você pague a conta do jantar / Deixa pra mim, que eu mesma pago a conta do bar”) pode, ao mesmo tempo, ser não menos romântica e piegas. Mas o momento mais alto de todo o disco é mesmo, inegavelmente, Borá Dançar, malha funky, soul dançante carregadinha de groove para abanar as ancas uma e outra vez, e cuja atmosfera combina com o discurso finalmente bem-disposto, cool, relaxado (não mais angustiado e sofredor, como nas restantes faixas), não obstante reflectir, novamente, o complexo coração de Flora: bossy e arrogante a um tempo, frágil e vulnerável a outro. Sobre o trap e a sua impressionante colonização do hip-hop, Flora, pragmática, afirma que “o mesmo acontece com o funk [funk brasileiro, nada que ver com o funk americano de James Brown e George Clinton]. O discurso é basicamente o mesmo. Não é da minha preferência, mas, por outro lado, alguns artistas fazem-no soar muito bem. Eu, pessoalmente, não meço palavras pra falar de amor. Seja boom bap, trap ou funk carioca, eu vou sempre trazer a melhor vibração que puder” (curiosamente, diz que vislumbra muitas semelhanças entre o trap e os ritmos baianos e nordestinos, prometendo para breve a concretização desta ideia em música nova).
Mais música e ideias, menos bandeiras
Voltando ao disco, destaque, ainda, para esse banger intitulado Preta de Quebrada – que será, com toda a certeza, pura combustão logo à noite no Plano B –, tarola a soar como um tiro de revólver para o ar, e que, além de constituir o tal momento de auto-descoberta, de consciencialização de um amor-próprio, é, também, aceitação clarividente de que o amor é matéria complexa alheia a ilusões (sim, é uma canção um tanto ou quanto desencantada, mas madura – “Te convido para ser adulto”, ouve-se, samplada, a monge budista brasileira Márcia Baja). Recentemente, e a propósito do título da canção, Emicida e Flora envolveram-se numa virulenta troca de galhardetes (via Twitter). Depois do primeiro eleger uma série de rappers mulheres talentosas e deixar Flora de fora, esta questionou-o se era “racista esclarecido”, ao que o primeiro respondeu laconicamente: “Não, não. É auto estima de quem não é preto só quando convém” (“afroconveniente”, como por vezes também se rotula). Sobre se esta certa ânsia actual em procurar defender uma determinada identidade pode acabar por redundar numa discussão sobre o lateral ou acessório (do tipo “Quem é mais negro”), Flora argumenta que “essa discussão planta uma nova semente de guerra. Eu não to aqui pra dizer que sou mais negra do que ele ou ela. Não é minha proposta. Eu tenho minha consciência negra. E meu trabalho tem o poder de trazer auto-estima pra a mulher negra, e não só negra, mulheres de quebrada, guerreiras, que fazem o corre todo dia em busca de uma melhoria”.
De facto, Preta de Quebrada é, acima de tudo, manifesto de afirmação de uma mulher (“Sem nunca depender de um homem pra ter minhas parada”, diz ela com um divertido duplo sentido: o mais óbvio e um outro, relacionada com a sua orientação sexual) sem precisar de carregar bandeiras ou carimbos explícitos – necessidade (ou, em alguns casos, mera conveniência), aliás, que tem levado muitos músicos sem um pingo de sentido crítico a se arvorarem, à força, em artistas “políticos” (será, para falar no rap, que, por uma mulher se assumir como “a maior bitch do game”, isso a torna, automaticamente e apenas por isso, numa consciência “política” ou “feminista”?). Aliás, essa é uma das características da sua música, um discurso que, sendo intrinsecamente feminista, não precisa de ser afirmado expressamente como tal a toda a hora como caução para a construção de uma determinada imagem ou posicionamento. Ainda recentemente, depois de divulgar a lista de colaboradores do seu último disco, David Byrne, atacado por uma turba indignada com a escassa presença de mulheres, viu-se forçado a publicar um inacreditável pedido de desculpas formal – a certa altura, já nem interessa o objecto em si, o que ele tem lá dentro (o apregoado “conteúdo” destronado pela “forma” ou pelo embrulho, então), nem eventualmente, já agora (!), um discurso efectivamente feminista que ele próprio possa conter. Sintomaticamente, e na via oposta, nunca ouvimos Flora a carregar na redundante tecla da “mulher no mundo machista do rap”, próprio de quem já está à frente disso (rap “pós-feminino”, como o apelidamos aquando de uma crítica que aqui fizemos ao último álbum da americana Rapsody), de quem percebeu que, por vezes, a melhor forma de se afirmar é nem sequer fazer alusão a isso, o aparente ignorar como subversivo modo, afinal, de altivamente contrariar um determinado estado de coisas (dito de outro modo: falar da existência de um “rap feminino” tem, muitas vezes, o perverso efeito contrário, ou seja, o de o lateralizar, secundarizar, enfim, perpetuar a sua própria posição em relação a um suposto “rap original de homens”).
O que não invalida, obviamente, que Flora o tenha sentido (ao machismo) na pele quando, com 18 anos, saiu de casa rumo a São Paulo e onde participou em battles de improviso regadas a testosterona: “Senti medo, senti abandono, desprezo. Eu falo o que penso e isso mexe com o ego masculino de uma forma não muito confortável. A luta é todo dia pelo espaço e o respeito, sem necessidade de voltar o foco das pessoas pro meu corpo e tirar o foco da música”. E por falar no corpo, o Brasil conheceu, não há muito tempo, uma interessante crispação em torno do videoclip de "Vai Malandra”, da cantora Anitta, entre aqueles que, olhando para as mesmas imagens, viram uma desempoeirada atitude feminista, e quem, pelo contrário, viu um rebaixamento da mulher. Palavra a Flora, sempre pragmática: “A indústria no Brasil opta sempre pelo caminho mais fácil de ganhar dinheiro rápido e em grande quantidade. Vender a imagem do corpo é um caminho certeiro. Não posso julgar quem o faz, porque quem não o faz dificilmente chega onde ela chegou”. Com três (!) álbuns em produção neste momento, não espanta que a hiperactiva artista brasileira diga que está “um pouco com dificuldade pra definir qual deles vou lançar primeiro. Mas estou muito animada com a identidade que estou construindo pra cada álbum, produzindo meus próprios beats”. Bom, antes disso, temo-la cá para nos dar música no fim-de-semana – Borá Dançar?
O autor dedica o texto à memória de Marielle Franco, seu exemplo, luta e legado. Salve.