Injectar teatralidade e queerness nas paredes do museu

Adam Linder traz a Serralves Service No.5: Dare to Keep Kids Off Naturalism, um dos seus “serviços coreográficos” que são alugados ao dia ou à hora. Até domingo, quatro bailarinos reconfiguram uma sala branca do museu com os seus corpos e figurinos, sempre a favor do virtuosismo e da teatralidade, contra o naturalismo.

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25 horas de performance divididas por cinco tardes, a uma taxa de dois mil euros por dia. Cliente: Museu de Serralves. Coreógrafo: Adam Linder.

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25 horas de performance divididas por cinco tardes, a uma taxa de dois mil euros por dia. Cliente: Museu de Serralves. Coreógrafo: Adam Linder.

Estes e outros dados sobre o contrato realizado entre a instituição e o artista estão à vista de todos na performance que Adam Linder (n.1983, Sidney) traz a Serralves em estreia nacional. Desde quarta-feira a ocupar uma galeria do museu entre as 13h e as 18h, onde continuará no mesmo horário até este domingo, com quatro bailarinos, Service No.5: Dare to Keep Kids Off Naturalism não esconde as regras do jogo. Isto é uma performance mas também é uma transacção comercial, e Adam Linder não tem qualquer problema em pôr as coisas nesses termos. Não é por acaso que Service No.5 faz parte da sua série de “serviços coreográficos”, cujas performances são alugadas ao dia ou à hora (o sexto capítulo estreia em Abril, em Los Angeles).

“Comecei com estes serviços há cerca de seis anos. Queria perceber como a coreografia poderia ser um modelo viável circulando noutros contextos fora do teatro, particularmente no contexto das artes visuais”, explica o coreógrafo, que tem levado este formato sobretudo para dentro de galerias e museus, testemunhando na primeira pessoa o interesse crescente das instituições de arte contemporânea não só em programar dança – em 2016, Linder até arrumou a um canto uma série de artistas visuais e ficou com o prémio Mohn Award do programa Made In L.A. do Hammer Museum, em Los Angeles – mas também em adquirir performances para as colecções. Adam Linder só aluga as suas coreografias, não as vende. “Os meus trabalhos coreográficos permanecem na propriedade dos corpos que os fazem”, diz o criador. “Tu alugas este trabalho para ele ser activado no momento, mas não podes tê-lo, não podes ser tu a circulá-lo, não podes reproduzi-lo. Não entra na lógica dos objectos, como as pinturas e as esculturas.”

Apesar disso, as performances não deixam de ter um valor comercial. “Eu não tenho nenhum problema em assumir isso, como se pode ver pelo meu trabalho. Acho que a noção de que a dança deve estar fora ou velada das realidades económicas é paternalista e um insulto à dança”, afirma Adam Linder, que não acredita na “ideia utópica” – ou, muitas vezes, hipócrita – de proteger a dança das dinâmicas de mercado e do facto de ela também ser um trabalho, uma profissão. “Estou a viver em 2018, no mundo ocidental, num mundo em que as principais ideologias são económicas, portanto tenho de lidar com isso.” No fundo, Linder quer que a dança se sente “na mesa dos adultos”. “Não acho que lidar conceptualmente com a economia à volta da dança seja a única forma de a fazer sentar na mesa dos adultos, mas é a minha maneira.”

Tudo isto pode ser visto como uma tentativa de propor uma ética de trabalho e de transparência num meio feroz e tantas vezes precário. Cheira a statement político, mas Adam Linder não quer ir por aí. “Sinto-me um pouco resistente à ideia de statement porque para mim são as condições do meu trabalho, não quero propor uma ética universal”, sublinha. “Acho que há algo de político associado a isto, mas também há na forma como escolho os performers, os figurinos, os elementos formais do meu trabalho.”

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O neutro é aborrecido

Em Service No.5: Dare to Keep Kids Off Naturalism, essas escolhas visam levar a teatralidade para a sala branca do museu. Ocupá-la, reconfigurá-la, quebrar com alguns códigos de representação do corpo performativo na arte contemporânea. “A teatralidade tem desempenhado um papel secundário, marginal, na forma como a performance tem sido encarada no contexto das artes visuais”, considera Adam Linder, que esteve em residência artística para este trabalho no Porto, em 2017, no Espaço Mira, no âmbito do projecto Quintas Nómadas. “Há a ideia de que a experiência autêntica acontece porque se rompe com a teatralidade. A sala branca está doente, teve demasiadas pessoas com roupas da H&M a fazer performance. A raison d’étre deste trabalho é ensinar a sala branca a levar com teatralidade.”

Para o coreógrafo, formado na Royal Ballet School, essa sensibilidade teatral está intimamente ligada às capacidades técnicas e ao virtuosismo dos corpos – neste caso, dos corpos dos bailarinos Leah Katz, Justin F. Kennedy, Noha Ramadan e Stephen Thompson, que ininterruptamente ao longo de cinco horas vão parasitando as paredes e o chão da galeria do museu, contaminando a arquitectura através de quadros vivos a favor da metamorfose e do adornamento, contra o naturalismo e a neutralidade. Tal como falar sobre dinheiro, também o virtuosismo pode ser um tabu em certos departamentos da dança contemporânea, nota Adam Linder. “É visto como uma palavra feia, mas isso é um equívoco. O que acontece quando as pessoas ouvem falar em virtuosidade é que pensam em técnicas da velha escolha, mas eu não penso nisso de forma tão redutora”, assinala. “Quero que o meu trabalho seja de 2018, do presente, e quando tens vídeo em HD, drones a entregar produtos da Amazon, acho que a dança tem de se amplificar a si própria. Tirar as competências técnicas à dança não faz sentido hoje, é anacrónico.”

Tal como não faz sentido, para ele, vestir os bailarinos com os básicos da H&M. Os figurinos elaborados e a construção de narrativas visuais são elementos importantes no trabalho do coreógrafo – como pudemos comprovar em Auto Ficto Reflexo, peça que Adam Linder e Justin F. Kennedy apresentaram em Serralves em 2016 –, e este Service No.5 não é excepção. “Todos os meus serviços jogam com esta ideia de que os figurinos são reminiscentes de uniformes. Às vezes ocultam a performance, outras vezes estendem as funções físicas dos performers.” Adam Linder admite a influência do (rebelde e exuberante) coreógrafo Michael Clark, com quem colaborou enquanto bailarino, mas também da MTV, fiel companheira da pré-adolescência, das idas à sinagoga em miúdo, onde observava “como as pessoas se vestiam”, e da avó, que tinha um negócio de peles e que ensinou Linder a coser buracos nas roupas enquanto ouviam Julio Iglesias e liam a Vogue.

“Toda a minha história é importante”, resume o coreógrafo, actualmente a viver entre Berlim e Los Angeles. “Eu respeito a visualidade do trabalho do Michael [Clark] e acho que é uma política queer. Esta ideia do drag, de mascarar o corpo… Quando vejo trabalhos ‘neutros’, desenfeitados, sei que não são o meu mundo.” E Service No.5 é muito o mundo de Adam Linder. “É suculento, a música tem uma forte presença, tal como os figurinos. De certa forma, este serviço traz as poéticas do meu trabalho para primeiro plano.”