Testemunha invisível

Retratos mas também reportagem: as referências constantes a uma vontade de invisibilidade do fotógrafo. Bruno Saavedra abre ciclo de exposições dedicado a jovens talentos na Fundação D. Luís I, em Cascais.

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Um quarto, uma mulher doente, recordações de uma vida e um filho que testemunha os últimos dias da mãe: este é o tema de “Ana”, uma série fotográfica que Bruno Saavedra expõe em Cascais, no espaço Capela do Centro Cultural dessa vila.

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Um quarto, uma mulher doente, recordações de uma vida e um filho que testemunha os últimos dias da mãe: este é o tema de “Ana”, uma série fotográfica que Bruno Saavedra expõe em Cascais, no espaço Capela do Centro Cultural dessa vila.

A exposição, que se integra nas iniciativas que marcam o ano em que Cascais é Capital Europeia da Juventude, abre um novo ciclo intitulado oitoxoito. Como o nome sugere, apresentará oito exposições de jovens artistas emergentes durante os próximos oito meses. Salvato Telles de Menezes, presidente do conselho directivo da Fundação D. Luís I – que administra o espaço do Centro Cultural de Cascais – conta que quatro desses artistas propuseram exposições por iniciativa própria à Fundação. Os restantes foram escolhidos por Ema M., ela própria artista e docente universitária, que contribuiu assim para uma lista que integra autores vindos de áreas muito diferentes. Além de Bruno Saavedra, estarão aqui nos próximos tempos trabalhos de Diana Coelho, Jéssica Rosa, Xavier Almeida Garrett, Rita Pires, Mosi, Sophie Bayntun e Nádia Susana. Todos têm menos de 35 anos, todos possuem já obra a partir da qual a sua presença neste ciclo se justifica.

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Se se trata obviamente de jovens artistas em começo de carreira (mesmo que, como no caso de Saavedra, já tenham existido outras exposições inviduais), também é certo que o processo de selecção é supreendentemente refrescante aqui. Não houve júris, nem exigências relativas a trabalhos consistentes com galerias, nem sequer a convocação dos decisores mais habituais neste tipo de iniciativas. Não há nomes retumbantes do jet set das artes contemporâneas, nem da parte de quem escolheu, nem da parte dos escolhidos. Há apenas, para além das motivações que se prendem com a vocação institucional da Fundação, a vontade de abrir o espaço do Centro Cultural de Cascais aos muito jovens.

Regressemos à exposição. As imagens, todas impressas com qualidade em pequeno formato, distribuem-se pelas duas paredes laterais da capela, exceptuando uma única, na cabeceira, no lugar onde inicialmente estaria o altar-mor. Esta, que se adivinha posterior a todas as outras, mostra um conjunto de coroas de flores funerárias encostadas a um caixão, por detrás das pernas de uma figura masculina, que é decerto o filho de Ana, presente em muitas das demais imagens. Bruno Saavedra, que nasceu no Brasil, no estado da Bahia, conta que veio a Portugal acompanhar o filho de Ana, seu amigo, nos últimos cinco dias de vida da mãe. O fotógrafo esclarece que o amigo lhe pediu para o acompanhar nestes dias, e que ele, quando chegou a casa de Ana, “sentiu que tinha que fotografar aquilo tudo.” Como uma urgência, movido por uma força de que desconhece a origem, fotografou incansavelmente tudo o que via.

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Quando lhe perguntamos se se sentiu como uma testemunha destes momentos dramáticos, disse não gostar do termo, visto que procurou sempre “ser o mais invisível possível”. Procurou unicamente “captar o carinho e o amor que tanto Ana como o filho tinham um pelo outro.” E finalmente, perguntou-se se este não seria um caso excepcional, já que a morte é tantas vezes acompanhada pela solidão. Sem fugir aos clichés, Bruno Saavedra afirma “que tudo o que era possível fazer por uma mãe, o filho fez por esta mulher”, e mesmo que “gostava que as fotografias fizessem as pessoas reflectir melhor sobre o modo como tratam as pessoas de idade.”

Para além desta intenção sem dúvida louvável, há aqui um olhar pessoal sobre o mundo em que Ana vivia, e que é também um olhar que acaba por fugir a todo o moralismo – que a arte dispensa sempre. As estantes cheias de livros, de fotografias antigas e de bibelôs, ou as plantas que, iguais a milhares de outras plantas de interior, crescem livremente nos vasos sem que alguém se lembre de as cuidar, são apenas o resultado desse olhar silencioso e púdico que é o do artista, e que se faz discreto até ao limite do possível perante a morte e a dor. Evidentemente, as imagens de Ana deitada na cama, ainda esboçando um abraço ao filho ou um pedido a alguém, são as mais fortes, por sabermos que são também as últimas desta pessoa. O contraste entre estas e um retrato antigo, disposto numa das estantes fotografadas, que a representa jovem e sorridente, de cabelo castanho comprido, é absolutamente notável. E isto mesmo se em todo o conjunto encontramos mais familiaridade com uma certa democratização estética operada na fotografia digital de autor por sites de partilhas de imagens, como o Instagram e o Flickr do que com grandes referências do mundo da fotografia que se poderiam invocar aqui. Destas, Diane Arbus, que retratou exaustivamente as franjas do humano, é sem dúvida um nome poderoso.

Retratos, portanto, mas também reportagem. As referências constantes a uma vontade de invisibilidade do fotógrafo são disso testemunho, ele que pretende apagar-se, no fundo, por detrás da objectiva da máquina, para dar lugar ao que vê. Bruno Saavedra aparenta desconhecê-lo, mas toda a fotografia tem uma relação próxima, íntima mesmo, com a morte. E esta, todos os fotógrafos a intuem. Começa com as imagens de mortos vestidos e em pose, muito antigas, que era hábito encomendar no século XIX, espécie de máscara mortuária que quer perpetuar a ilusão da vida para além da inevitabilidade do desaparecimento. Continua com o retrato, ele que era, na opinião benjaminiana, o último reduto da aura, do aqui e agora que a morte irá aniquilar: como se a história da fotografia fosse um permanente desafio ao desaparecimento de quem vive.

Susan Sontag, que escreveu maravilhosamente sobre a relação entre a fotografia e a morte, disse que, se a vida era um filme, a morte era uma fotografia. E que fotografar não era mais do que construir um enorme cemitério do que não volta mais. Um cemitério, uma colecção, um museu, acrescentamos nós.