Pensar a economia, pensar Portugal, propor pluralismo
O Portugal de hoje começou em 1993, o momento simbólico em que terminaram dois grandes ciclos de crescimento muito semelhantes.
Nos últimos anos, sob o ambiente de chumbo da austeridade, o debate económico popularizou-se. Mas não é certo que se tenha democratizado. As visões apressadas, a busca de uma sentença singela ou a ansiedade de encontrar um culpado roubaram espaço às atitudes serenas, à apreciação das continuidades, das roturas e do lastro estrutural da nossa vida material, isto é, da sua complexidade. Usou-se pouca informação e estudou-se pouco. Ao mesmo tempo, predominou a noção de que a economia é plana e descarnada, funcionando através de mecanismos abstratos e de poderes teleológicos (“os mercados”), quando na verdade o que mais conta são deliberações concretas tomadas por instituições onde intervêm atores poderosos e se definem normas e regras, tanto jurídicas como políticas. Quer dizer, onde se estabelecem formas de economia política. É isso, aliás, que define os contextos em que umas economias evoluem e consolidam ou alteram a sua condição face a outras. O surgimento e afirmação de novas gerações de economistas e outros cientistas sociais que revigoram o debate contrariou significativamente esta tendência e é a melhor razão para que se insista na ideia de que se pode almejar o pluralismo e propor discussões onde o tempo, o espaço, as instituições e a compreensão dos contornos da deliberação política são essenciais. A criação da Associação Portuguesa de Economia Política, que em janeiro realizou um importante encontro, é prova disso.
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Nos últimos anos, sob o ambiente de chumbo da austeridade, o debate económico popularizou-se. Mas não é certo que se tenha democratizado. As visões apressadas, a busca de uma sentença singela ou a ansiedade de encontrar um culpado roubaram espaço às atitudes serenas, à apreciação das continuidades, das roturas e do lastro estrutural da nossa vida material, isto é, da sua complexidade. Usou-se pouca informação e estudou-se pouco. Ao mesmo tempo, predominou a noção de que a economia é plana e descarnada, funcionando através de mecanismos abstratos e de poderes teleológicos (“os mercados”), quando na verdade o que mais conta são deliberações concretas tomadas por instituições onde intervêm atores poderosos e se definem normas e regras, tanto jurídicas como políticas. Quer dizer, onde se estabelecem formas de economia política. É isso, aliás, que define os contextos em que umas economias evoluem e consolidam ou alteram a sua condição face a outras. O surgimento e afirmação de novas gerações de economistas e outros cientistas sociais que revigoram o debate contrariou significativamente esta tendência e é a melhor razão para que se insista na ideia de que se pode almejar o pluralismo e propor discussões onde o tempo, o espaço, as instituições e a compreensão dos contornos da deliberação política são essenciais. A criação da Associação Portuguesa de Economia Política, que em janeiro realizou um importante encontro, é prova disso.
A atitude detida que sugiro, e que me parece uma condição elementar para que o debate seja democrático, não prescinde de tentar perceber coisas que vêm de longe. Por exemplo, que somos um país onde a industrialização moderna só ocorreu nos anos 1960 e foi extraordinariamente limitada nos seus efeitos modernizadores porque, na década anterior ao 25 de Abril, quando houve taxas de crescimento exuberantes, o volume total de emprego não aumentou e o que se exportou massivamente, sob a forma de emigração, foi força de trabalho. E que, por isso, só a revolução democrática criou e estabilizou o mais poderoso mecanismo de inclusão social de que uma economia pode dispor, o que consiste na inserção das pessoas no emprego e no mercado do trabalho. Assim como não deve dispensar a compreensão das mudanças radicais a que provavelmente não demos a devida atenção, como a que se encasulou ao longo da segunda metade da década de 1990, quando se estabeleceram as poderosas regras e normas que dariam forma à União Económica e Monetária e ao euro, gerando condicionalismos e restrições apertadas que aprisionaram o crescimento e outras formas de deliberação e desviando a criação de riqueza da esfera produtiva para outros planos. Coisas bem diferentes dos “mercados” tão presentes na linguagem comum.
Por isso, no livro A Economia Portuguesa: Formas de economia política numa periferia persistente (1960-2017), Almedina, 2018, que acabo de publicar, digo que “o Portugal de hoje começou em 1993”. Foi esse o momento simbólico em que terminaram dois grandes ciclos de crescimento económico muito semelhantes, cada um com cerca de dez anos, o que se seguiu ao 25 de Abril e o que correspondeu à primeira fase da integração europeia (engana-se quem julgue que Portugal só cresceu neste último período, basta observar a informação estatística disponível). Mas aquele ano foi também o momento em que se desencadeou a formação de um conjunto de circunstâncias económicas e políticas originais, todas elas a contribuírem para o dado absolutamente novo de um crescimento anémico, que depois a austeridade transformaria em instabilidade e retrocesso. Desse caldo fizeram parte coisas vindas de trás, como uma desindustrialização e uma terciarização excessivas e uma acentuada dependência expressa na balança comercial, e coisas originais, das quais a mais saliente foi um intenso processo de endividamento externo, capitaneado pela banca e possibilitado pela financeirização emergente, isto é, pela facilidade de circulação de capitais que passou a ter a função de reciclar nas periferias os excedentes económicos concentrados no centro de uma Europa já profundamente assimétrica e fraturada. Resistiu ainda a criação de emprego, que só quebraria dramaticamente no final da primeira década deste século.
É a soma destes dois argumentos que nos pode ajudar a perceber como nos dias de hoje se torna central um punhado de circunstâncias muito difíceis que são a matéria de uma economia política da recuperação ensaiada desde que se iniciou um novo ciclo político. Os desequilíbrios presentes na economia portuguesa são enormes. É essa, aliás, a causa da sua persistente condição periférica, isto é, da sua dependência, com diferentes formas ao longo dos tempos. Excessos de desindustrialização e de terciarização, com dinamização das exportações através de serviços turísticos low cost, concentração em baixos salários e na precariedade laboral. Custos do trabalho a pesaram pouco e cada vez menos no valor da produção. Um domínio poderoso da circulação de capitais financeiros que captam uma significativa parcela da riqueza criada. Uma dívida pública que atingiu montantes exorbitantes para cobrir os desmandos de uma banca que endividou externamente o país e viu a sua dívida reestruturada, ao invés da que passou a ser pública. Um Estado coartado na sua ação positiva de configurador da economia e da sociedade porque as restrições financeiras que sob ele impendem são grandes. E, finalmente, um território deslaçado, fruto de um modelo de crescimento unipolar, centrado em Lisboa e assente na redução comparativa do valor do trabalho. É por isso que os termos verdadeiramente estruturais de uma recuperação são exigentes. Têm de atender ao sistema produtivo e à qualificação das nossas atividades, dando relevo às industriais. Não podem ignorar a enorme punção de valor que a dívida origina. Obrigam a compreender a natureza dos movimentos da financeirização. Implicam um Estado capaz e ativo, e não meramente criador de mercados privados, como muitos desejam. Compelem a que olhemos para o país inteiro sabendo que precisamos de um sistema urbano nacional robusto, que ajude a reconstituir os territórios fragilizados. Cada um destes termos são possíveis de detalhar e de debater com a serenidade de quem se preocupe mesmo com a vida material do país e das pessoas e com a sua natureza estrutural. Pode ser que volte a alguns deles. Autor do livro A Economia Portuguesa: Formas de economia política numa periferia persistente (1960-2017), Almedina, 2018
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico