Sem contratos, só amor: como Givenchy e Audrey Hepburn mudaram o mundo
Viveram no cruzamento entre a era de ouro de Hollywood e a era dourada da alta-costura. Quando Hubert conheceu Audrey o mundo da moda e das estrelas mudaria para sempre. Quando Givenchy morreu, desapareceu o último dos grandes costureiros do pós-guerra.
Um mapa raiado a cores pastel, desenhado pelo museu Victoria & Albert de Londres, mostra os vários nomes que fizeram a era de ouro da alta-costura. Chanel, Balenciaga, Balmain, Dior, Grès, lê-se entre esboços de pequenos grandes vestidos históricos e fatos saia-casaco que mudariam o mundo. Hubert de Givenchy era o último nome vivo dessa ilustração da intensa década do pós-guerra em que “o homem mais elegante da moda francesa” se inscreveu. Com a morte de Givenchy, no dia 10, o último dos grandes costureiros da era dourada da couture desapareceu. O seu nome é sempre, e será sempre, acompanhado do da sua musa, Audrey Hepburn, uma relação também já hoje irrepetível. “Nunca tivemos um contrato, como os outros designers. Só tínhamos amor”, resumia a actriz.
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Um mapa raiado a cores pastel, desenhado pelo museu Victoria & Albert de Londres, mostra os vários nomes que fizeram a era de ouro da alta-costura. Chanel, Balenciaga, Balmain, Dior, Grès, lê-se entre esboços de pequenos grandes vestidos históricos e fatos saia-casaco que mudariam o mundo. Hubert de Givenchy era o último nome vivo dessa ilustração da intensa década do pós-guerra em que “o homem mais elegante da moda francesa” se inscreveu. Com a morte de Givenchy, no dia 10, o último dos grandes costureiros da era dourada da couture desapareceu. O seu nome é sempre, e será sempre, acompanhado do da sua musa, Audrey Hepburn, uma relação também já hoje irrepetível. “Nunca tivemos um contrato, como os outros designers. Só tínhamos amor”, resumia a actriz.
Quando Hubert conheceu Audrey, esperava outra Hepburn. É uma história que parecia não se cansar de contar. O ano era 1953 e a sra. Hepburn visitava o atelier que Hubert de Givenchy tinha aberto há um ano em Paris. Ocupado, só a atendeu porque Katharine Hepburn era uma estrela incontornável de Hollywood. À sua frente surgiu “uma pessoa muito magra com uns olhos bonitos, cabelo curto, sobrancelhas espessas, calças muito pequeninas, sabrinas e uma pequena t-shirt. Na cabeça tinha um chapéu de palha de gondoleiro com uma fita vermelha”, contava há um ano em Calais numa exposição que lhe era dedicada. Audrey, ainda não muito conhecida, ia filmar com Billy Wilder e como Sabrina (1954) é a história de uma maria rapaz filha de um motorista que vai estudar em Paris e se transforma na personificação da elegância, a actriz britânica achou que a personagem devia vestir o melhor que Paris tinha para oferecer.
“Acho que ela nunca tinha visto uma peça de alta-costura”, recordava o autor do futuro "decote Sabrina", um corte em quarto minguante. “Experimentou algumas amostras. Eu estava ocupado a preparar a colecção seguinte e disse-lhe que não poderia fazê-lo, mas ela era muito persistente. Convidou-me para jantar, o que era invulgar da parte de uma mulher [na época] e foi ao jantar que percebi que ela era um anjo.” Ao New York Times, numa de várias entrevistas ao longo dos anos, acrescentaria à história que, antes do fim da refeição, lhe disse: “Farei qualquer coisa por ti.”
Seguiram-se 40 anos de amizade e inspiração, uma relação que definiu a sua obra – uma produção refinada e cheia de imagens que ficaram na história do século XX, mas que também o distinguiu como um dos primeiros designers a criar pronto-a-vestir além da restrita couture e a ter um perfume associado ao seu nome. Hubert James Marcel Taffin de Givenchy, nascido em 1927, fora inspirado pelo guarda-roupa da mãe, mas sobretudo pela sua colecção de tecidos e roupas de todo o mundo do avô (que só estava autorizado a ver se tivesse boas notas). Depois, “sobre o modelo da sua relação de 40 anos [com Hepburn] construiu-se todo um complexo industrial moda/Hollywood”, postulou Vanessa Friedman no New York Times.
"Nunca disse à mamã que tinha ido a Paris”
Foi aprendiz, com apenas 17 anos, do exuberante Jacques Fath. Trabalhou com Robert Piguet, um protestante que como ele era marcado pela contenção, e foi director artístico da loja de Elsa Schiaparelli na Place Vendôme. Também aprendeu com Lucien Lelong, pioneiro que já tinha sido mentor de Pierre Balmain e de Christian Dior, que em 1947 decide romper com a austeridade do pós-guerra com o seu New Look, cintado e rodado, e encetar a era de ouro da alta-costura.
Mas “o homem mais elegante da moda francesa”, como o lembra então o diário Le Monde, só estava em Paris por um motivo. “Balenciaga era a minha religião, e porque sou crente, para mim há Balenciaga e o Senhor”, citava o Guardian. “Um dia, com 10 ou 11 anos, apanhei o comboio para Paris para o conhecer, com os meus esboços debaixo do braço”, saído da sua Beauvais natal. “Claro que não conheci o sr. Balenciaga. Voltei no meu comboio para Beauvais. Nunca disse à mamã que tinha ido a Paris”, contava no Verão passado à revista Paris Match. Só o conheceria em 1953, um ano depois de fundar a sua maison de couture em nome próprio e no mesmo ano em que a sra. Hepburn, esse “anjo com olhos de corça”, lhe bateria à porta.
“Por causa dela pude mudar o look dos ícones de Hollywood e ela pedia que fosse fixado nos seus contratos que eu desenharia as suas roupas, o que foram os primeiros contratos do género”, recordava Hubert de Givenchy sobre a amiga que morreu em 1993. Isso só aconteceu porque Edith Head, a responsável pelo guarda-roupa de Sabrina, não agradeceu a Givenchy quando venceu o Óscar em 1954. Várias peças das colecções de pronto-a-vestir de Givenchy foram usadas no filme, tal como sucederia em Funny Face - Cinderela em Paris (1957) ou no mítico Boneca de Luxo (1961), filmes em que Head também trabalharia. Embora o costureiro nunca se tenha queixado publicamente sobre o tema, Hepburn terá ficado furiosa.
Seriam então seus o vestido de cetim vermelho de Funny Face, o vestido negro de renda com máscara a condizer de Como Roubar Um Milhão (1966) ou, claro, a mais famosa imagem de Audrey Hepburn – Holly Golightly, a personagem escrita por Truman Capote, tem um “estilo chique, descomplicado” que na verdade é a única “área de estabilidade na sua vida”, como avalia Christopher Laverty, autor de Fashion in Film. Usa outras peças Givenchy no filme de Blake Edwards, tal como, nos anos seguintes, a marca vestiria Elizabeth Taylor, Greta Garbo, Grace Kelly, Lauren Bacall, Diana Ross, Brigitte Bardot ou Jackie Kennedy e a duquesa de Windsor – ambas, indelevelmente, para os funerais dos seus maridos. Mas o pequeno vestido preto sem mangas, encimado por uma fiada de pérolas em pleno dia frente à montra da Tiffany’s é a imagem definitiva de Hepburn no cinema. E é a coroação do “little black dress”, ou melhor do “petit robe noire” de Coco Chanel, como a peça mais sofisticada da moda.
O designer aristocrata e a actriz tornavam-se inseparáveis, no dia-a-dia e não só nos filmes. “Audrey sabia perfeitamente como se vestir, e sabia perfeitamente o que devia usar. O que contava eram os seus olhos, a cara e a silhueta. Refinávamos, purificávamos, limpávamos em função do seu rosto. Tínhamos, diria, de rodear Audrey. Os resultados eram extraordinários porque o rosto e o estilo dela tornaram-se o meu estilo”, disse em tempos o costureiro ao New York Times.
Em 1955, por exemplo, Hubert de Givenchy propunha o primeiro vestido-camisa, e Audrey Hepburn acompanhava-o nessa criação. Em 1957, criava um aroma só para ela, L’Interdit, o primeiro perfume com uma estrela como “rosto”. A associação de uma estrela a um criador nunca fora tão eficaz e criaria as bases para o que hoje são os contratos milionários e rotativos que colocam as actrizes nas campanhas da moda. Mais rara é a sua posição de musas, a sussurrar de igual para igual aos ouvidos dos criativos.
Como um psiquiatra
Com Hepburn, Givenchy “ajudou a promover uma imagem mais jovem da feminilidade francesa na moda. Não era tão agressivamente ‘jovem’ como Yves Saint Laurent”, que vestia Catherine Deneuve, por exemplo, “mas ajudou a divulgar essa imagem junto de um público mais amplo”, defendeu Valerie Steele, directora do Museu do Fashion Institute of Technology de Nova Iorque, à Associated Press. No que tocava à couture, esse mundo rarefeito em que uma peça pode demorar mais de um ano a construir, “Balenciaga vestia as mães da alta-costura, e todas as suas filhas acolheram Hubert. Ele era uma energia diferente, mais moderno”, contextualiza Pamela Golbin, curadora do Museu de Moda e Têxtil de Paris.
Ambos eram apaixonados por linhas puras e pela simplicidade. “Ela não era como as outras estrelas de cinema, porque adorava a simplicidade.” E ela dizia, em jeito de soundbyte antes de existir tal conceito: “Sou ligada a Givenchy como os americanos ao seu psiquiatra.”
Naqueles tempos, a alta-costura tinha perto de 20 mil clientes; hoje serão cerca de duas mil, um artesanato anacrónico no tempo da moda rápida e dos desfiles Facebook Live. Uma relíquia preciosa, preserva-se apesar de parecer que o seu tempo já passou – no momento da morte de Givenchy, essa aceleração do tempo, mas sobretudo a comercialização de todas as relações, é também sintomática da extinção de uma simbiose como a de Hepburn com o costureiro
O cruzamento entre a era de ouro da couture e a era de ouro de Hollywood ficou para trás e hoje o sonho da alta-costura (e do próprio pronto-a-vestir de autor) apoia-se num sistema de moda feito de redes sociais, malas com logótipos e parcerias com a H&M. Basta pensar que nos últimos anos, quando a direcção artística da Givenchy pertencia ao gótico festivo de Riccardo Tisci, que era a sua relação com a socialite e influencer Kim Kardashian (que acumulava outra ligação similar a Olivier Rousteing, da casa Balmain) que definia a imagem de massas da casa francesa. “Sofro. O que está a acontecer não me deixa feliz. No fim de contas, uma pessoa tem orgulho no seu nome”, disse, num raro momento de queixume, Hubert de Givenchy ao jornal Women’s Wear Daily em 2007.
Audrey Hepburn ajudou-o a chegar ao estrangeiro, ou até a vestir outras actrizes no cinema – Jean Seberg em Bom Dia, Tristeza (1958), Capucine em A Pantera Cor-de-Rosa (1963) –, e ele ajudava-a a ser feliz e a trabalhar. “As roupas de Givenchy são as únicas em que me sinto eu própria. Ele é mais do que um designer, ele é um criador de personalidade.” A simbiose também lhe permitia ser outras. “Era uma ajuda enorme saber o que ia vestir para o papel. Depois, o resto já não era tão difícil. As roupas maravilhosas e simples de Givenchy [davam-me] a sensação de ser fosse quem fosse que interpretava.” O crítico de moda Alexander Walker, citado pela Vogue, acrescenta: “Givenchy ajudou a criar a imagem dela tanto quanto qualquer um dos seus realizadores.”
Trabalharam juntos em vários filmes entre 1954 e 1987 – Funny Face (1957), Ariane (1957), Charada (1963), Quando Paris Delira (1964), Como Roubar Um Milhão, Laços de Sangue (1979) e até no telefilme Love Among Thieves (1987). O vestido com que recebeu o Óscar de Melhor Actriz por Férias em Roma (1953) era seu, bem como o vestido para o segundo casamento ou o de baptizado do filho Sean. Antes de Hepburn morrer, Givenchy deu-lhe um casaco acolchoado azul marinho. “Quando estiveres infeliz, veste-o e dar-te-á coragem.”