Quem matou Marielle Franco?*
A última frase deste texto está escrita desde o início: para ganhar, temos de vencer também esta morte.
Todos os dias passam por nós mortes sem explicação. Algumas porque os seus motivos são indecifráveis, outras porque as pessoas nos são tão alheias, e a distância é tanta, que nem nos conseguem perturbar. Não há nada no fim daquelas vidas que nos faça procurar uma razão. Morre gente enquanto mudamos de canal sem sequer nos perguntarmos porquê.
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Todos os dias passam por nós mortes sem explicação. Algumas porque os seus motivos são indecifráveis, outras porque as pessoas nos são tão alheias, e a distância é tanta, que nem nos conseguem perturbar. Não há nada no fim daquelas vidas que nos faça procurar uma razão. Morre gente enquanto mudamos de canal sem sequer nos perguntarmos porquê.
Esta não. Esta foi uma pancada seca, certeira. A noite passada mataram uma mulher. Quatro tiros na cabeça. Não, a noite passada executaram uma mulher. A sua morte rasga-nos por dentro e sabemos exatamente porquê. Porque no fundo, ao ler a notícia, todos sentimos o que escreveu Alexandra Lucas Coelho: “O país onde esta mulher voltará a pisar ainda não existe. E sem o ainda estamos todos mortos.”
Marielle Franco representa tudo o que nos faz acreditar que um dia venceremos todos os monstros. Mulher, negra, feminista e ativista pelos Direitos Humanos num país onde, pelos vistos, isso é cada vez mais uma sentença de morte. Marielle foi vítima de uma guerra. Não daquela que o Governo de Michel Temer diz que está a fazer contra a criminalidade, mas da que existe. Marielle morreu às mãos da guerra contra democracia no Brasil.
“Mais um homicídio de um jovem que pode estar entrando para a conta da PM (Polícia Militar). Matheus Melo estava saindo da igreja. Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”, foi uma das suas últimas publicações no Twitter. A morte feita ironia, como uma facada, resolve quem contesta.
Vereadora do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) no Rio de Janeiro, trincheira da favela contra os abusos da Polícia Militar porque a pobreza não é crime e ser negro não é cadastro. Marielle, favelada, de axé, cria de Maré, como se definia, 38 anos, morreu na noite passada por lutar por tudo em que acreditava. Não, foi executada na noite passada por ser tudo o que foi. E é por isso que a sua morte nos sabe a derrota.
“Chove horrores e chorei por uma mulher que nunca conheci”, não fui capaz de dizer mais nada. E eu nem sou dada a estas coisas, mas sei o que a sua morte significa. Saber o porquê é a angústia maior, e talvez por isso às vezes passem tantas mortes por nós sem que queiramos saber a razão. Só que esta entra-nos pelos olhos adentro.
Num país governado por golpistas, onde o fascista Jair Bolsonaro é o candidato presidencial mais bem posicionado, caso consigam prender Lula da Silva a tempo das eleições; onde os tribunais querem fazer política e a maioria dos políticos quer fugir à justiça; onde os crimes de ódio aumentam à proporção das medidas anti-sociais do Governo; onde a violência nas favelas põe militares a matar pobres em nome da “segurança”, não do povo, que esse vive pior, mas da impunidade das elites. Neste país, morreu uma mulher por ser quem era.
Neste Brasil, estamos todas mortas. As mulheres, os negros, os pobres, os gays, os trans, os índios, os sem terra, os sem teto, os sem mais nada do que a dignidade de ficar do lado certo. Sem mais nada do que a dignidade de exigir justiça para Marielle Franco, mulher executada, negra, favelada. É em nome da democracia que temos de nos juntar a este coro que clama por justiça. No Brasil, sim, e na Europa, onde o chão da democracia já começou a tremer.
A última frase deste texto está escrita desde o início: para ganhar, temos de vencer também esta morte. *este texto foi escrito no dia seguinte à morte de Marielle Franco, 15 de março de 2018
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico