Aos 50 anos, a Comunidade de Lisboa é cosmopolita

Começou com um grupo de estudantes muçulmanos vindos de Moçambique. Cresceu, diversificou-se e foi-se abrindo, até alcançar a maturidade. Nos próximos dias, debate-se o islão na Mesquita Central de Lisboa

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A primeira comunidade muçulmana “a reaparecer em Portugal e na Península Ibérica desde 1497, quando os muçulmanos saíram destas paragens” é a Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL), escreve o seu presidente, Abdool Majid Vakil, no convite para a série de intervenções e debates que se realizam a partir desta sexta-feira na Mesquita Central de Lisboa.

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A primeira comunidade muçulmana “a reaparecer em Portugal e na Península Ibérica desde 1497, quando os muçulmanos saíram destas paragens” é a Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL), escreve o seu presidente, Abdool Majid Vakil, no convite para a série de intervenções e debates que se realizam a partir desta sexta-feira na Mesquita Central de Lisboa.

A CIL faz 50 anos e os encontros que comemoraram este aniversário contam com a participação de académicos portugueses de diferentes áreas, ministros, padres, especialistas em catolicismo ou segurança. “[Os encontros] são um espelho da comunidade. No caso da CIL, nem a caracterizaria como aberta, é verdadeiramente cosmopolita”, diz Paulo Mendes Pinto, director da licenciatura e do mestrado em Ciências das Religiões da Universidade Lusófona, que participa num dos painéis.

Oficialmente, Vakil tem a razão. A CIL foi a primeira comunidade estruturada a nascer na Península Ibérica depois do Al-Andaluz. Dois anos antes, em 1966, uma comissão de dez membros, cinco muçulmanos e cinco católicos, solicitava à Câmara Municipal um terreno para uma mesquita. Em Abril de 1968, era constituída a CIL, fundada por um grupo de jovens estudantes muçulmanos que vinham das ex-colónias e já estudavam em Lisboa.

O que Vakil diz não significa que entre 1497 e 1968 não tenha havido muçulmanos em Portugal. Como não é verdade que não os houvesse nestas regiões antes da chegada dos exércitos.

Os textos, tratados e manuais escolares, como relembra Cláudio Torres num texto recente, repetem todos que “os exércitos árabes e berberes teriam invadido a Península Ibérica em 711, implantando o islão por todo este lado em meia dúzia de anos”. Na verdade, continua o arqueólogo (que participa nos debates deste aniversário), “a islamização, tal como uns séculos antes acontecera com a cristianização, foi um processo lento e gradual, alimentado pelas grandes rotas comerciais mediterrânicas”.

Estas ideias feitas serão certamente parte do debate mais histórico, dedicado ao “Contributo do Islão para a Civilização” (sábado, às 15h), mas a tónica está definitivamente colocada na actualidade e nas questões com potencial polémico que se discutem um pouco por toda a Europa. Assim, há um painel dedicado à “Segurança e Cidadania” (sexta à tarde), outro sobre “A Mulher na Religião e na Sociedade” (sábado às 10h) ou ainda um dedicado ao “Sistema Financeiro Islâmico” (final da manhã de sábado).

No centro das conversas estará sempre a religiosidade actual em Portugal, a forma como esta se enquadra no quotidiano, a sua relação com as imigrações ou a vivência dos muçulmanos na sociedade portuguesa, um caso particular num contexto europeu. Uma comunidade que começou por ser, essencialmente, portuguesa, e que se tornou cada vez mais diversificada, sem que se perdesse o poder de atracção da CIL e da Mesquita Central, onde esta funciona.

“Filhos de elites”

Como escreve num dos muitos artigos dedicados à comunidade, a investigadora Nina Clara Tiesler (autora de uma tese sobre a Nova Presença Islâmica na Europa, com enfoque em Portugal), “um pequeno grupo de muçulmanos de Moçambique que estudavam Direito, Medicina e Economia em Lisboa foram decisivos na fundação de uma organização muçulmana”.

Além de virem quase todos de Moçambique, também eram esmagadoramente sunitas (o ramo da maioria dos 1,8 mil milhões de muçulmanos no mundo). É o caso de Vakil, gestor e economista e um dos fundadores, e também do primeiro presidente da CIL, Suleiman Valy Mamede – jurista de formação, jornalista e o primeiro director da ANOP (Agência Noticiosa Portuguesa, actual Lusa).

Um dos aspectos mais distintivos desta espécie de vanguarda, nota a investigadora alemã a viver em Portugal, é que se tratam de “filhos de elites”, já portugueses, por virem das colónias, e bem integrados. Mesmo depois do 25 de Abril, quando chegam de Moçambique e da Guiné Bissau muitas famílias que praticavam o islão, “eram vistas mais como ‘retornadas’ do que como imigrantes”.

Passaram cinco décadas e a comunidade é hoje muito mais heterogénea, mas “os descentes destes muçulmanos [pós-1974] ainda constituem a maioria dos praticantes” do islão em Portugal. No país há cerca de 55 mil muçulmanos, 45 a 47 mil destes sunitas, segundo o Alto Comissariado para as Migrações.

Jovens “sentem-se em casa”

A Nova Presença Islâmica, resultado dos fluxos migratórios e da atracção que Portugal ganhou com a adesão à União Europeia, é formada essencialmente por marroquinos, argelinos, senegaleses, bangladeshis e paquistaneses. Ainda assim, 60% dos muçulmanos em Portugal são portugueses (ou eram no início desta década).

Num texto dedicado aos jovens portugueses muçulmanos, comparando as suas atitudes com as dos jovens não-muçulmanos, Tiesler (ligada ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa) concluiu que embora a religião seja muito mais importante para os primeiros, também estes estão “profundamente apegados ao seu país de origem e à ideia do ‘português’ mainstream’”.

Mais dedicados ao associativismo (a CilJovem, associação ligada à CIL organiza muitas actividades), fazem mais voluntariado e também estão mais disponíveis para integrar redes internacionais de jovens – particularmente no ambiente pós-11 de Setembro e de “guerra ao terrorismo” em que o estudo na base do artigo foi realizado.

Os jovens muçulmanos viajam mais mas estão menos disponíveis para passarem longos períodos fora de Portugal. Entre a “guerra ao terrorismo” e a crise, a académica nota que não têm grandes motivos para se “sentirem felizes em casa”. Mas à pergunta se se sentem “em casa”, 89% dos muçulmanos concorda fortemente com esta posição (88% dos não-muçulmanos deu a mesma resposta).

Mesquita, cemitério, escola

O nível de integração dos fundadores da CIL na sociedade portuguesa não significa que tudo tenham sido facilidades. Inicialmente, a comunidade era uma “associação de direito privado” e só em 2006 (na sequência da Lei da Liberdade Religiosa de 2001) passou a comunidade religiosa registada, um estatuto equiparado ao da Igreja Católica e que permite aceder a benefícios fiscais.

A construção da Mesquita Central de Lisboa, que hoje, com a sua livraria, espaço social, e sede de várias associações (de mulheres, grupos de muçulmanos guineenses e a CilJovem), é o verdadeiro núcleo da vida da comunidade, levou décadas. A cedência do terreno, pedida em 1966, só chegaria em 1977. A primeira pedra foi lançada em Janeiro de 1979 e a primeira fase da construção foi inaugurada em Março de 1985.

Para iniciar a construção, a CIL contou com doações de membros da comunidade e de países muçulmanos (a Arábia Saudita doou 1 milhão de dólares). Só muito mais tarde, a partir dos anos 2000, começariam a chegar bolsas e contribuições públicas. A partir de 2005 passou a existir formalmente uma área para a comunidade no cemitério do Lumiar (informalmente, este já era desde 1988 o cemitério escolhido por grande parte das famílias muçulmanas). Em 1998, abriam as primeiras turmas do Colégio Islâmico de Palmela.

Diálogo inter-religioso

Além de académicos, muçulmanos e não muçulmanos, são convidados destes encontros o secretário-geral da ONU, António Guterres, o presidente e reitor da Al Azhar, a Universidade do Cairo que é a principal instituição do islão sunita; assim como o grande imã da mesquita com o mesmo nome. Na abertura dos encontros estarão o primeiro-ministro, António Costa, e o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa.

Mendes Pinto lembra que estes encontros são reflexo do caminho de maturidade que a comunidade tem feito. “Nos últimos 20 anos, por exemplo, a CIL foi participante activo no diálogo inter-religioso”, diz, recordando que em 2001, durante a visita do Dalai Lama, a grande cerimónia inter-religiosa teve lugar precisamente na Mesquita Central.

Para o académico, com a diversificação da comunidade é inevitável que “quem vem chegando demora mais tempo a integrar-se” e na última década “formaram-se núcleos fortes, na Amora ou em Palmela, que são quase autocéfalos”. Mas “apesar disso, quer por ter sido a primeira, quer por existirem nela figuras muito conhecidas e importantes, como Vakil e o xeque David Munir, a CIL manteve sempre um poder simbólico forte”.