Conselho Superior da Magistratura cria observatório da violência doméstica

Observatório vai examinar decisões judiciais. Nesta sexta-feira um caso relacionado com o abuso de uma criança relatado por uma juíza do Tribunal Constitucional deixou atónita a plateia de um seminário promovido pelo DIAP.

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Clara Sottomayor deu um exemplo daquilo que as decisões judiciais não devem ser Enric Vives Rubio

O caso passou-se em 2013, num café de Cernache de Bonjardim, mas é pouco conhecido. A juíza do Tribunal Constitucional Clara Sottomayor recordou-o nesta sexta-feira, num seminário sobre violência doméstica promovido pelo Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa (DIAP), como um exemplo daquilo que não devem ser as decisões da justiça. Não era a primeira vez que aquele ex-emigrante de 65 anos e com hábitos de alcoolismo se metia com aquela mãe e com a filha de dez anos. Um mês antes tinha-as atacado à noite, quando voltavam a casa. Mordeu uma orelha à mulher e beijou-a na cara à força. Quando a criança tentou defender a progenitora apalpou-lhe os órgãos genitais.

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O caso passou-se em 2013, num café de Cernache de Bonjardim, mas é pouco conhecido. A juíza do Tribunal Constitucional Clara Sottomayor recordou-o nesta sexta-feira, num seminário sobre violência doméstica promovido pelo Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa (DIAP), como um exemplo daquilo que não devem ser as decisões da justiça. Não era a primeira vez que aquele ex-emigrante de 65 anos e com hábitos de alcoolismo se metia com aquela mãe e com a filha de dez anos. Um mês antes tinha-as atacado à noite, quando voltavam a casa. Mordeu uma orelha à mulher e beijou-a na cara à força. Quando a criança tentou defender a progenitora apalpou-lhe os órgãos genitais.

A 20 de Agosto de 2013 calhou a menina estar sozinha dentro de um café de Cernache, sentada num sofá a ver televisão, enquanto a mãe apanhava ar fresco na esplanada. Da cadeira onde estava o ex-emigrante mostrou-lhe a língua: “Ó pequenina, eu quero-te foder.” A miúda nem lhe respondeu: correu para os braços da mãe, e contou-lhe o que se tinha passado.

Três anos mais tarde o processo judicial chegou ao Tribunal da Relação de Coimbra. Que manteve a condenação do arguido por abuso sexual de menores por causa do que tinha feito em Julho de 2013 — uma pena suspensa e uma multa —, mas que entendeu não haver razão para o punir em relação ao que disse à criança no café. “Não resultou provado que tivesse actuado com o propósito de manter conversação de cariz sexual com a ofendida”, escreveram no seu acórdão os juízes desembargadores Orlando Gonçalves e Inácio Monteiro.

De mais a mais, tratou-se de um monólogo e não de uma conversa, uma vez que a menina fugiu, não chegando a responder ao ex-emigrante, concluíram. Uma situação que, no seu entender, o Código Penal não prevê, uma vez apenas pune “quem actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos”. Ou seja, os magistrados entenderam que só podiam condenar o arguido por mais este crime se a criança lhe tivesse respondido. “Estaria mais protegida, segundo o Tribunal da Relação de Coimbra, se tivesse entrado na conversa”, criticou Clara Sottomayor, perante uma plateia atónita.

Uma acusação por dia

A protecção das crianças é, também, um dos objectivos da Convenção de Istambul, elaborada pelo Conselho da Europa para prevenir e combater a violência doméstica. O documento foi ratificado por Portugal, mas a avaliação que fazem da sua aplicação em território nacional algumas organizações não governamentais é muito crítica. A presidente da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, Teresa Féria, disse no mesmo seminário que o legislador se esqueceu pura e simplesmente de transpor para a ordem jurídica nacional partes do documento.

Na próxima semana estará em Portugal um grupo de peritos do Conselho da Europa para analisar a situação no terreno e preparar um relatório de avaliação. Entretanto, o Conselho Superior da Magistratura criou um observatório de violência de género e violência doméstica que irá, de acordo com Teresa Féria, examinar as decisões judiciais sobre estas matérias. Em Outubro passado suscitou escândalo um acórdão de dois juízes do Tribunal da Relação do Porto que desculpabilizava a violência doméstica praticada contra uma mulher “adúltera”.

De acordo com as estatísticas apresentadas no seminário, o número de acusações deduzidas pelo DIAP de Lisboa no que ao crime de violência doméstica concerne subiram entre 2016 e 2017: passaram de 347 para 386. Dá uma média de uma acusação por dia.

“O lar continua a ser um dos lugares mais perigosos das sociedades, em particular para as crianças”, observou a procuradora Fernanda Alves, que coordena a secção do DIAP de Lisboa especializada neste tipo de crime. No ano passado deram aqui entrada, em média, 179 queixas por mês, o que somou 2147 inquéritos, 402 dos quais por violência doméstica contra menores e 303 dos quais por violência no namoro.

Fernanda Alves considera que a prevenção do fenómeno passa pela alteração de valores, comportamentos e atitudes, mas não esquece que a articulação entre os diferentes tipos de tribunais que tratam do problema — a justiça penal, a justiça familiar e a justiça cível —, que ainda continua a falhar, é essencial.