Mais amados lá fora do que cá dentro
Alguns portugueses afrodescendentes de segundas e terceiras gerações têm sido autores de alguma da música portuguesa mais válida dos últimos anos, mas continua a ser no exterior que são muitas vezes validados. Rogério Brandão, ou seja Nigga Fox, e P. Adrix, são os dois casos mais recentes.
Não é caso único. Existem inúmeras situações assim, com variáveis muito diversas. A meio dos anos 1990, por exemplo, a geração gaulesa (Daft Punk, Air, Etienne de Crecy) que lançou uma lufada de ar fresco no panorama de música electrónica global precisou de ser elogiada em Inglaterra para começar a ser falada num país que, nessa altura, apenas tinha olhos para a canção francesa ou para a cultura rock mundializada.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Não é caso único. Existem inúmeras situações assim, com variáveis muito diversas. A meio dos anos 1990, por exemplo, a geração gaulesa (Daft Punk, Air, Etienne de Crecy) que lançou uma lufada de ar fresco no panorama de música electrónica global precisou de ser elogiada em Inglaterra para começar a ser falada num país que, nessa altura, apenas tinha olhos para a canção francesa ou para a cultura rock mundializada.
Da mesma forma, há mais de uma década, foi necessário que os Buraka Som Sistema adquirissem visibilidade internacional para começarem a ser encarados com seriedade em Portugal. No início foram olhados pela maioria como curiosidade exótica. Ou mero fenómeno de moda. O processo de credibilização foi lento e as ambivalências identitárias com que foram vistos desde o início (serão angolanos, afro-portugueses, africanos, lisboetas, lusófonos ou simplesmente portugueses? A música que praticam é lisboeta, portuguesa, angolana, luso-angolana, afro-portuguesa, tudo isso, nada disso?) confundem-se com as baralhações artísticas (são DJs ou uma banda? Praticam kuduro, pós-kuduro, batida, tarraxo, afro-house?) que ainda hoje estão longe de se ter desvanecido.
Existem variáveis artísticas nessa equação, mas também sociais, políticas e económicas. Falando de forma clara. Os Buraka foram tolerados e até admirados por uma fatia considerável da população portuguesa, mas não necessariamente amados e celebrados como coisa nossa. Existe sempre uma interjeição a acompanhar uma conversa sobre o grupo e no entanto falamos do projecto português do universo da cultura pop que mais visibilidade alcançou fora de portas, por muito que isso pareça custar a muitos e ainda hoje não tenha sido apreendido. Não surpreende que o seu percurso, principalmente nos primeiros anos, tenha sido feito mais fora de portas de que aqui. Foi-lhes mais fácil comunicar e encontrar interlocutores na Europa e no resto do mundo do que em Portugal.
O mesmo tipo de fenómeno acabou por acontecer com outros projectos que acabam por partilhar algumas marcas identitárias análogas, como Batida ou Throes + Shine, com um percurso internacional mais consolidado do que aqui. E claramente também tem acontecido isso com a série de lançamentos efectuados pela editora Príncipe Discos (Marfox, Nigga Fox, Nídia, Blacksea Não Maya, Normal Nada, DJ Firmeza), com um reconhecimento internacional junto de um público conhecedor, não surpreendendo que uma série de editoras de prestígio, como a inglesa Warp (Aphex Twin, Kelela, Nighmares On Wax, Oneothrix Point Never), se tenham interessado pelos seus artistas, lançando a série de três volumes Cargaa e agora um EP de seis temas de Rogério Brandão (Nigga Fox).
Internacionalmente as condicionantes socioculturais que aqui criam resistências não existem. As interrogações que estão presentes no subconsciente de muitos portugueses não têm validade em Londres ou Tóquio. Ali é apenas a música, o ritmo e a fisicalidade que são abraçados de forma espontânea. Ali não existem hesitações. A sonoridade suplanta qualquer outro tipo de sugestionamentos que possam subsistir.
Para além de DJ Marfox, a figura da editora que tem tido um percurso mais estruturado é o de Nigga Fox. Deu-se a conhecer em 2012 através de uma mixtape e um ano depois com o EP O Meu Estilo, tendo lançado entretanto Noite e Dia (2015) e 15 barras (2017). Ouvindo a sua música percebe-se o grau de refinamento a que chegou com o novo Crânio.
São seis temas instrumentais que partem de uma base estrutural kuduro, mas que vão além desse motivo, com arranjos complexos e um som orgânico (com algumas partes de percussão por Galiano Neto) por entre texturas sintéticas. Quando o frenesim rítmico é menor, como em Karma ou Poder do vento, faz coabitar o melhor da electrónica abstracta com edificações rítmicas que propagam quer melancolia quer excitação, com quebras seguidas de acelerações. Ou seja, consegue pegar em expressões electrónicas consolidadas e introduzir-lhe uma série de transmutações inesperadas, num disco excelente onde mostra que é um dos músicos-produtores mais singulares da realidade electrónica global de hoje.
A maior parte dos nomes que têm sido lançados pela editora Príncipe são afrodescendentes de segundas e terceiras gerações oriundos da periferia da cidade de Lisboa, existindo agora uma nova vaga de nomes que, por opção, ou contingências económicas familiares, emigraram e é a partir do estrangeiro que operam. É o caso de Nídia, a viver em Bordéus. De Lycox, nas periferias de Paris. E agora de P. Adrix, que habita em Manchester.
É como se a editora Príncipe nos devolvesse um mapa de exclusões do centro ou de opções por outras realidades socioculturais. Não era preciso terem emigrado para que a sua música reflectisse palpitações localizadas e globalizadas, mas dir-se-ia que dessa forma elas se tornam mais evidentes. É isso que se pressente no álbum de estreia de P. Adrix, com as derivações rítmicas do kuduro ou afro-house a denotarem a assimulação de outras infusões rítmicas, do drum & bass ao grime, do tecno à electrónica mais abstracta, daqui resultando uma sonoridade sincrética mas expansiva
Até no nome dos temas (Tejo, Estação de Queluz, Abertura de roda ou Sonhos) existe qualquer coisa de alegórico e isso também se pressente na música, com o universo kuduro a servir de centro, mas rodando à sua volta inúmeros estímulos, numa remontagem de influências onde a catarse física anda sempre a par de uma rigorosa definição atmosférica. O hedonismo aqui é regrado, marcado por noções como tempo e espaço, com várias geografias a serem reinterpretadas a partir da linha de baixo.
Em vez de turbulência, a procura de tranquilidade. Nem sempre é música de fácil assimilação, mas é inteligível, reafirmando estes agentes como capazes de criar novos imaginários e experiências no contexto do Portugal pós-colonial, ao mesmo tempo que se posicionam como fazedores de alguma da mais estimulante música popular urbana da actualidade.