Falhas de medicamentos são "banais". Faltam 4 milhões de embalagens por mês
Observatório da Associação Nacional das Farmácias registou a falta de mais de 48 milhões de embalagens de medicamentos em 2017. Infarmed desdramatiza o problema, notando que apenas foi notificado de 1640 situações de falta de fármacos em 2017
No ano passado, faltaram nas farmácias nacionais 48,3 milhões de embalagens de medicamentos e todos os meses dois mil estabelecimentos farmacêuticos queixaram-se de falhas de abastecimento. São cerca de 4 milhões de embalagens por mês em média, na sua maioria receitadas pelos médicos, que não puderam ser dispensadas no momento da procura, segundo o Observatório do Medicamento em Falta do centro de estudos da Associação Nacional de Farmácias (ANF) que regista as encomendas a que os distribuidores não conseguem dar resposta.
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No ano passado, faltaram nas farmácias nacionais 48,3 milhões de embalagens de medicamentos e todos os meses dois mil estabelecimentos farmacêuticos queixaram-se de falhas de abastecimento. São cerca de 4 milhões de embalagens por mês em média, na sua maioria receitadas pelos médicos, que não puderam ser dispensadas no momento da procura, segundo o Observatório do Medicamento em Falta do centro de estudos da Associação Nacional de Farmácias (ANF) que regista as encomendas a que os distribuidores não conseguem dar resposta.
Este é um fenómeno que já se verifica há alguns anos em Portugal e que continua a ter grande dimensão, de acordo com a ANF, apesar de várias medidas operacionalizadas pela Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed) para o evitar. Um problema que pode ter efeitos nefastos, como a interrupção da terapêutica por parte de alguns doentes, segundo alguns médicos ouvidos para um dossier sobre falhas de medicamentos publicado na última edição da revista Farmácia Portuguesa a que o PÚBLICO teve acesso.
Confrontado com estes números, o Infarmed retorque que seria necessário "clarificar a que se reportam exactamente" e desdramatiza o problema. Em 2017, diz ter recebido um total de 1640 notificações de faltas de medicamentos, incluindo 456 de utentes.
As notificações "mais representativas são as 914 com origem de reporte nas farmácias durante inspecções realizadas pelo Infarmed", refere ainda, acentuando que "as falhas de medicamentos pontuais podem existir por motivos multifactoriais, situações comerciais, gestão minimalista de stocks por parte das farmácias, etc".
"A falta massiva de fármacos, muitos deles essenciais, é um elefante na sala do Serviço Nacional de Saúde", contrapõe Duarte Santos, director da revista e dirigente da ANF que sustenta, no editorial da publicação, que estes números "colossais" deveriam ser "suficientes para um sobressalto na sociedade portuguesa".
Dispensadas 256 milhões de embalagens
Em 2017, as farmácias dispensaram 256 milhões de embalagens de remédios, 156 milhões das quais com prescrição médica. O Infarmed nota, a propósito, que os cidadãos estão a adquirir mais medicamentos - compraram mais 1,4 milhões de embalagens nas farmácias em comparação com 2016.
Segundo a publicação da ANF, porém, as falhas no abastecimento fazem-se sentir em todo o tipo de medicamentos, tanto de marca como genéricos, e em diversas especialidades médicas, incluindo fármacos para doenças crónicas, como a diabetes. Só num mês, em Dezembro passado, e apenas nos genéricos, este observatório do Centro de Estudos e Avaliação em Saúde da ANF contabilizou mais de 951 mil embalagens em falta. O medicamento que lidera o top 10 da lista dos que mais faltam é uma insulina injectável (Lantus, caneta de 5ml) que é considerada essencial pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
E nem mesmo a criação, em Julho de 2015, de um mecanismo excepcional de abastecimento que determina a entrega em 12 horas ao doente de fármacos considerados essenciais para a saúde pública – a chamada Via Verde do Medicamento - foi suficiente para resolver o problema, alega o secretário-geral da associação, Nuno Flora.
No dossier, são descritos casos de doentes que frequentemente não conseguem aviar nas farmácias medicamentos prescritos pelos médicos e testemunhos de clínicos para quem as falhas de fármacos se tornaram um problema suplementar. “As falhas de medicamentos tornaram-se banais”, lê-se no artigo.
“Muitos doentes, sobretudo crónicos, sabem que a vida deles depende da manutenção daquele efeito e ficam muito angustiados, pedindo que seja encontrada uma alternativa imediata”, explica, citado pela revista, Miguel Silva, director do Departamento de Cardiologia do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental.
Nas doenças crónicas, como a diabetes, não encontrar o fármaco pode funcionar como um pretexto para a interrupção terapêutica, o que acontece “sobretudo nos doentes com fraca adesão” ao tratamento, avisa Cristina Esteves, médica responsável pelo Núcleo de Diabetes do Hospital Distrital de Santarém.
As falhas provocam stress e ansiedade aos doentes e aos seus familiares. A revista relata o caso de Rute Oliveira, que tem sentido grandes dificuldades em encontrar Lovenox, um fármaco biológico anticoagulante para prevenção ou tratamento de tromboses venosas. O filho, de 3 anos, é doente oncológico e necessita deste fármaco, que Rute afirma apenas conseguir obter a “conta-gotas”. Este medicamento também é utilizado pelas grávidas com propensão para a formação de coágulos de sangue.
Para os médicos, que são obrigados a procurar alternativas aos fármacos em falta, este transformou-se num problema suplementar. A maior parte dos clínicos ouvidos neste trabalho afirmam que raramente são informados com antecedência deste problema. Dizem também estar pouco informados sobre as causas e referem que recebem apenas informações esporádicas dos laboratórios, explicações essas que normalmente lhes chegam por via indirecta, através dos delegados de informação médica, ou de rumores. O que se ouve é que “os fármacos são canalizados para mercados em que o preço de venda ao público é mais elevado, como os países do Norte da Europa ou, há alguns anos, Angola”.
Infarmed garante acesso
O Infarmed esclarece que "no caso de reais rupturas de medicamentos" monitoriza o impacto do ponto de vista da sua substituição, "inclusivamente ao nível das dosagens e formas farmacêuticas disponíveis", e, sempre que necessário, emite circulares informativas aos profissionais de saúde, além de que faz "todas as diligências para que o medicamento em causa seja adquirido por via de autorizações especiais".
Garante ainda que "a resolução é também sistematicamente rápida e sem grande impacto nos doentes", notando que na sua grande maioria "estes medicamentos são de uso hospitalar e por conseguinte, um universo diferente daquele que é reportado".
Voltando ao trabalho da revista da ANF, há casos em que a falha de medicamentos é completa e outros em que apenas desaparece uma determinada dosagem. Na área da cardiologia, a reportagem destaca as falhas de abastecimento do Micardis e Pritor, usados no tratamento da hipertensão arterial. Na diabetes, foi muito frequente em 2017 a falta da insulina Lantus e do Trajenta.
Também na endocrinologia haverá problemas. O Thyrax na dosagem de 0,1 miligramas e também na dosagem de 0,0245 mg, um fármaco do grupo das hormonas da tiróide, tem estado "temporariamente indisponível". O desaparecimento “súbito” causou transtornos. “Foi preciso alterar, de um momento para o outro, a medicação de um grande número de pessoas. Houve pessoas que estavam bem controladas e passaram a apresentar défice ou excesso de hormona tiroideia”, relata à revista Francisco Rosário, coordenador do Serviço de Endocrinologia do Hospital da Luz de Lisboa.
De igual forma, na urologia e andrologia tem havido “problemas sérios” com a falta de medicamentos, desde há dois ou três anos, segundo Nuno Monteiro Pereira, do Hospital dos Lusíadas. É o caso do Carveject, solução injectável para o tratamento da disfunção eréctil. Durante alguns meses só se encontrava a dose de 10 mg, obrigando a tratar os doentes com “duas injecções no pénis em vez de uma”.
A pneumologia e a imunoalergologia também não escapam a este fenómeno. Manuel Barbosa, director do Serviço de Imunoalergologia do Hospital de Santa Maria (Lisboa), destaca a falta de dois corticóides inalatórios nasais durante 2017: o Aeromax e o Avamys.