Dragões, telemóveis e aviões
Os contributos de algumas terapias não convencionais são inestimáveis para a imensa legião de seres humanos que já beneficiaram delas.
Foi criando a ideia de que só os cientistas podem, com legitimidade, falar de ciência, que se afastou o grande público da literacia científica, assim como aconteceu para outros saberes. A transversalidade não interessa aos especialistas e a especialização é o bastião do dogma. Quanto mais curtos são os horizontes mais efectiva se torna a diminuição dos níveis de consciência colectiva. É ainda e sempre de biopolítica que estamos a falar e o sistema educativo é o grande aliado da acelerada perda de liberdade individual a que já está sujeita a mais recente geração.
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Foi criando a ideia de que só os cientistas podem, com legitimidade, falar de ciência, que se afastou o grande público da literacia científica, assim como aconteceu para outros saberes. A transversalidade não interessa aos especialistas e a especialização é o bastião do dogma. Quanto mais curtos são os horizontes mais efectiva se torna a diminuição dos níveis de consciência colectiva. É ainda e sempre de biopolítica que estamos a falar e o sistema educativo é o grande aliado da acelerada perda de liberdade individual a que já está sujeita a mais recente geração.
No meu texto [“Biopolítica”, PÚBLICO, 2/3/2018], em nada apliquei o pensamento da curadoria de arte, a não ser porventura usufruir das vantagens que o convívio com a criação humana oferece a qualquer um. Se o facto de os autores de “Ainda as terapias alternativas: um cachimbo é um cachimbo” [PÚBLICO, 6/3/2018] serem cientistas não os impede de apreciar arte, também o facto de eu trabalhar em arte não me impede de me interessar por ciência.
Não deixa de ser curiosa a chamada à colação de dragões, telemóveis e aviões: entre a força do pensamento mítico e o embevecimento pela tecnologia encontramos dois extremos a partir dos quais as civilizações podem ser pensadas com superior interesse.
É com espírito falacioso que os autores referem o episódio de Russell com Wittgenstein (estavam em causa as “proposições assertivas” para este último), reportando-o truncado: ignorar o nível filosófico de colocação de um problema para ironizar a partir do nível literal da imagem envolvida na sua abordagem não é aceitável numa argumentação séria.
Curioso será notar que, ao falar de “produtos químicos”, os autores tenham prescindido de distinguir moléculas naturais de moléculas sintetizadas em laboratório, partindo do princípio de que o leitor nunca pensou nessa dicotomia, que tão bem conhecem. Sobre as características da matéria viva veja-se o livro fascinante de Jean Jacques, La Molécule et son Double, 1992. A naturofobia decorre da cisão progressiva que a partir do século XVII levou o Homem a pensar na Natureza como se não fizesse parte dela e não fosse, também ele, Natureza.
Para biofísicos como Cannenpasse-Riffard, a grande revolução científica do século XXI envolverá a compreensão das repercussões da teoria quântica nos planos biológico e médico (Cf. Biologie, médecine et physique quantique, 1997). Na verdade, a vida não se reduz ao nível subatómico, como afirmam David Marçal e Carlos Fiolhais. Somos feitos de átomos e necessariamente o que acontece neles acontece também em nós, mas, como demonstra Riffard, o entendimento da vida e da terapia como situando-se unicamente ao nível bioquímico é manifestamente insuficiente, não permitindo integrar grande parte dos dados observados e obrigando a ignorá-los, o que é contrário ao método científico.
Num trabalho académico recentemente defendido por Marta Bacelar na Escola de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, a economista apresentou um estudo sobre utilizadores de TNC (terapias não convencionais) segundo o qual 96 dos 100 utentes dessas terapias que entrevistou (70% dos quais com licenciatura ou mais) se consideravam melhor ou muito melhor após o tratamento e pensavam que as TNC devem ser integradas no SNS.
A lei deve proteger os utentes daqueles que não têm formação suficiente. Na Europa, o enquadramento legal das TNC diverge muitíssimo de país para país. Em Portugal estima-se que mais de dois milhões de cidadãos procuram regularmente as TNC; a Lei 71 de 2013, aprovada na Assembleia da República sem nenhum voto contra, acrescentou a legalização da Medicina Tradicional Chinesa àquela que já existia para seis outras TNC com a Lei 45 de 2003: Fitoterapia, Homeopatia, Naturopatia, Osteopatia, Acupunctura e Quiroprática. Esse trabalho exige continuidade e aprofundamento.
Os contributos dessas TNC (com judiciosa gestão dos venenos!) são inestimáveis, sobretudo para a imensa legião de seres humanos que já beneficiaram delas e se sentem a prova viva do sucesso que têm essas formas de terapia. Existem também milhares de trabalhos de investigação sobre as diversas TNC que comprovam a sua eficácia e que estão a ser escamoteados.
Que estejamos a viver o início duma nova era parece notório e flagrante: o planeta grita a sua intolerância zero às agressões e a matriz política globalizada no último meio século tem cada vez mais dificuldade em esconder a sua criminosa perversidade. Perante a enormidade de tudo aquilo a que assistimos, devem preocupar-nos, acima de tudo, as ditaduras do pensamento único.