David Byrne: aos 65 anos como se fosse a primeira vez
Aos 65 anos como se fosse a primeira vez — mas foi sempre assim que ele fez.
Há oito anos, em entrevista a David Byrne, às tantas perguntámos-lhe se se sentia mais europeu do que americano. Não apenas por ter nascido na Escócia, mas porque por diversas afirmou que o mítico sonho americano acabou por se cumprir de forma mais consequente, não no país que adoptou como sendo o seu, mas na Europa.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Há oito anos, em entrevista a David Byrne, às tantas perguntámos-lhe se se sentia mais europeu do que americano. Não apenas por ter nascido na Escócia, mas porque por diversas afirmou que o mítico sonho americano acabou por se cumprir de forma mais consequente, não no país que adoptou como sendo o seu, mas na Europa.
Na altura respondeu de forma genérica, enunciando que gostava dos EUA, mas que também se sentia estrangeiro, dizendo que na Europa havia mais maturidade na abordagem a uma série de questões. O tema volta a estar na ordem do dia quando a América de Trump provoca tantas polarizações. É verdade que ele já veio afirmar que este álbum foi concebido antes da sua chegada ao poder. Não é sobre a era Trump. É, antes, sobre um mundo que não consegue projectar esperança, enredado num labirinto de impasses (económicos, políticos, socioculturais), do qual uma das consequências dos últimos tempos foi a aclamação de Trump.
O que move David Byrne é qualquer coisa que ajude a superar o desencanto e desconfiança reinante. A representação de um desejo de mudança que pode bem já estar presente no subconsciente colectivo de muitos mas que ainda não ganhou expressão concreta. Uma matriz de alento, não como forma de mascarar a realidade, mas para a revelar. Durante muitos anos pareceu que a sua forma de lidar com a realidade americana era através da ironia, da fantasia e do absurdo, embora essa perplexidade fosse sempre sintoma de curiosidade. Neste álbum essa atitude não está totalmente ausente, mas existe um renovado espírito de celebração, e de redescoberta, no sentido mais optimista, que prevalece, como se procurasse motivos para a esperança no meio do desespero.
O disco tem vindo a ser publicitado como o seu regresso aos álbuns a solo de originais, 14 anos depois. É verdade. Mas também é justo que se diga que nunca deixou de estar presente nos últimos anos, seja do ponto de vista da música (colaborações em dois álbuns com St. Vincent e Fatboy Slim e um álbum a meias com Brian Eno, para além de ter composto um musical e encetado outras parcerias menos relevantes), ou também enquanto artista, fotógrafo, realizador de cinema ou ensaísta.
A presente obra começou por resultar, no início, de uma cooperação com Brian Eno, seu parceiro desde os Talking Heads, vindo progressivamente a afastar-se dessa matriz inicial, com a chegada de muitos outros colaboradores (Rodaidh McDonald, Patrick Dillett, Oneohtrix Point Never, Happa, Onyx Collective). Aos 65 anos poderia cair na tentação de apenas recriar o seu passado ou então, o que também é vulgar, tentar replicar os que entretanto o evocam como uma referência primordial — dos LCD Soundsystem aos Dirty Projectors. Mas nada disso.
É evidente que existem canções que remetem para os melhores Talking Heads, sendo o exemplo mais perfeito o polirrítmico Everybody’s coming to my house, com ele a introduzir humor (“We’re only tourists in this life / Only tourists but the view is nice”), e outras que apontam para alguns dos seus trabalhos a solo, como o ritmo distendido e tropical de Every day is a miracle ou de It’s not dark up here. Mas na maior parte dos casos David Byrne optou por arriscar, com canções que puxam por diferentes climas.
Por vezes parece que diversas canções habitam a mesma canção, como na melancolia espacial de This is that ou em Doing the right thing, com novelos orquestrais a darem lugar a desenvolvimentos electrónicos. O mesmo acontecendo com I dance like this, que começa com piano solitário, para desaguar num ambiente meio industrial.
Os temas nem sempre resultam imediatos, com várias camadas de leitura, e em alguns casos isso redunda em perda, daí que seja uma obra para abrir clareiras de opinião, mas na maior parte do álbum os resultados convencem. Pelo menos ninguém o pode acusar de não tentar fazer sonoramente aquilo que proclama teoricamente: recomeçar como se fosse a primeira vez, embora no seu caso se trate apenas de continuar o que sempre fez. A América, paradoxalmente, tem-lhe servido para se ir reinventando.