“Hawking ensinou-nos a ignorar o fim. Essa foi a sua maior lição”

Carlos Fiolhais, físico, professor universitário e ensaísta, aplaude as lições de vida e ciência que Stephen Hawking deu a todos, cientistas ou não, e que o podem ter tornado imortal. “Ele é uma espécie de intermediário da humanidade com a ciência. E isso é um papel insubstituível”, diz, sem conjugar o verbo no passado. Stephen Hawking é (e será) um exemplo.

Foto
O físico Carlos Fiolhais SERGIO AZENHA

Carlos Fiolhais conversou com o PÚBLICO quando se encontrava na estrada debaixo de uma tempestade de meter medo, mas que foi incapaz de abrandar o entusiasmo na voz e a força das palavras para falar sobre Stephen Hawking. Falou da doença que levou este homem britânico a maximizar o cérebro num corpo reduzido ao mínimo, da Breve História do Tempo onde o agnóstico cientista escreveu que ambicionava ler a mente de Deus para conhecer os mistérios do Universo, do lado pop star do “actor” convidado em séries de televisão, do grande divulgador de ciência e da inesquecível voz metalizada ao serviço da consciência e ética científica. Stephen Hawking é um símbolo da possibilidade de conhecer, uma pessoa completa, resume o físico Carlos Fiolhais.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Carlos Fiolhais conversou com o PÚBLICO quando se encontrava na estrada debaixo de uma tempestade de meter medo, mas que foi incapaz de abrandar o entusiasmo na voz e a força das palavras para falar sobre Stephen Hawking. Falou da doença que levou este homem britânico a maximizar o cérebro num corpo reduzido ao mínimo, da Breve História do Tempo onde o agnóstico cientista escreveu que ambicionava ler a mente de Deus para conhecer os mistérios do Universo, do lado pop star do “actor” convidado em séries de televisão, do grande divulgador de ciência e da inesquecível voz metalizada ao serviço da consciência e ética científica. Stephen Hawking é um símbolo da possibilidade de conhecer, uma pessoa completa, resume o físico Carlos Fiolhais.

A vida de Stephen Hawking quase nos fez acreditar que ele poderia ser imortal. Como reage a esta notícia da sua morte?
A imortalidade não existe mas o caso dele é particularmente raro porque ele teve uma doença rara, esclerose lateral amiotrófica. A mesma doença que vitimou o Zé Afonso entre nós. É uma doença que afecta cerca de 700 pessoas em Portugal, portanto, entre dez milhões de portugueses não é muita gente. Mas é, infelizmente, uma doença fatal, sem cura. Há apenas um medicamento que pode atrasar um bocadinho o seu desenvolvimento. A ciência ainda não conseguiu resolver esta questão.

Ele foi um exemplo extraordinário de resiliência perante esta doença com uma esperança de vida limitada…
Muito limitada. Essa doença até se declara numa fase mais tardia da vida, como aconteceu com o Zé Afonso, mas no caso dele foi declarada aos 21 anos. Ele começou a ter quedas, falta de força nos pés, a tropeçar. E depois de ser analisado pelos médicos o diagnóstico foi terrível. Disseram-lhe: “Vai viver no máximo dois anos.” Isto foi há 55 anos. Passaram-se 55 anos quando ele tinha um prazo de validade de dois. É um caso absolutamente raríssimo. Ele está naquela cauda das probabilidades em que desafiou tudo aquilo que devia ser uma condição genética muito especial. Todos nós somos diferentes, mas Stephen Hawkings do ponto de vista biológico era mesmo diferente para conseguir estar tanto tempo com uma doença destas.

Mas não se conformou.
Sim. Mas acho que o facto de saber que tinha um horizonte muito limitado à sua frente fez também com que tivesse uma vida diferente. Resolveu – e fez muito bem, é uma lição para todos nós – fazer a sua vida, acabar o curso, casar, ter filhos. Teve uma vida cheia, teve três filhos, são os filhos que agora anunciam a sua morte. Uma das filhas até colaborou com ele em livros infantis/juvenis de ciência, a Lucy. [A Chave Secreta do Universo e George e o Big Bang, ambos editados em Portugal pela Presença]. O que ensina a todos nós, independentemente da física, é o facto de não nos conformarmos com aquilo que às vezes parece ser o destino. Podemos lutar e a luta dele foi usar o tempo de vida ao máximo. Talvez tenha sido por isso, mesmo em termos psicológicos, que conseguiu ter uma vida cheia como teve. Morrer aos 76 anos está dentro da esperança normal de vida de um indivíduo saudável. Portanto, é um exemplo para todos nós.

Tinha também qualidades intelectuais especiais…
Tinha, de facto, um cérebro especial também. Além de ser um físico de referência. O que ele fez foi ampliar as capacidades do cérebro ao máximo para conseguir viver num corpo reduzido ao mínimo. Isto também é uma lição para todos. Podemos não desistir perante uma adversidade. No caso dele, teve uma carreira científica reconhecida. Enquanto a doença progredia, ele também progredia fazendo avanços na ciência.

O que destaca na carreira científica de Stephen Hawking?
Ele interessou-se por alguns dos mistérios mais difíceis que existem. Os mistérios do espaço, do tempo, da matéria, energia. No fundo, os mistérios do Universo. É cosmofísico e trabalha em questões muito gerais e muito difíceis. O que tentou fazer, e fez propostas nesse sentido, foi juntar duas teorias que dificilmente podem ser juntas – pelo menos até agora têm resistido – que é a teoria da relatividade geral de Einstein, a teoria da gravidade, e por outro lado a teoria quântica que preside às interacções num mundo muito pequeno, das partículas. Juntar uma teoria que se aplica ao muito grande com uma teoria que se aplica ao muito pequeno não é nada fácil. Ele ousou fazer isso, por exemplo, tentando explicar propriedades dos buracos negros, que são entendidos como o fim do espaço e do tempo, uma grande concentração de matéria e energia onde o espaço e tempo encurvam. Avançou com uma proposta nova, talvez a sua maior contribuição tenha sido essa, a dizer que os buracos negros afinal não são tão negros como isso e que podem irradiar. E essa chama-se mesmo a “radiação de Hawking”.

Por que é que nunca ganhou um Prémio Nobel?

Essa sua teoria – que junta, de algum modo de forma limitada, duas grandes teorias da física – diz que num campo gravítico muito intenso podem surgir partículas e algumas saem para fora do buraco negro e luz também. Mas não está provada. Não há provas experimentais, observacionais para isso. E é por isso que nunca ganhou o Prémio Nobel. As teorias dele, em geral, foram muito especulativas. Foram teorias que fizeram avanços na ciência mas, em boa parte, avanços que não estão confirmados. Sabemos que os buracos negros existem, o último Prémio Nobel foi para pessoas que colaboraram na detecção de ondas gravitacionais a partir de choques de buracos negros, mas essa radiação de Hawking ainda não foi detectada.

Acha que ainda será?
Não se sabe. Há boas razões para não ter sido detectada. Pensamos que, se os buracos negros se emitiram radiação, já a emitiram há muito tempo e actualmente essa emissão é tão fraca que não conseguimos detectá-la. Mas ainda pode acontecer que se consiga. O futuro na ciência é uma caixinha de surpresas e a ciência também vive disso. Pode acontecer que alguém pegue num dos trabalhos de Hawking e diga que, afinal, tinha razão. Não será, se calhar, uma razão plena, mas pelo menos por apontar para uma pista certa.

 O que temos a certeza é que ele se confrontou com problemas com os quais continuamos a estar confrontados. São problemas que os físicos de hoje tentam perceber quando fazem a chamada Teoria de Tudo, título já agora de um filme baseado na vida dele a partir de uma biografia da sua primeira mulher. A Teoria de Tudo é uma teoria unificada, era o sonho de Einstein, de podemos ter uma explicação para tudo. Stephen Hawking não fez essa teoria mas tentou casar as coisas de uma maneira ad hoc. Juntou umas coisas daqui e dali e fez previsões. No entanto, são previsões que não foram confirmadas. Mas não se sabe se algum dia poderão vir a ser.

Então, para si, faz sentido que nunca tenha recebido o Nobel?
Faz, são as regras do jogo. O Nobel é um prémio que é atribuído a descobertas ou invenções confirmados. Mas não deixa de ser, por isso, um grande cientista.

Foto
Cientista numa conferência sobre as Origens do Universo, em 2007, em Bruxelas REUTERS/Francois Lenoir

É talvez o mais conhecido cientista do mundo. Porquê?
Não devemos ter medo de o dizer. O facto de estar com um cérebro ampliado ao máximo num corpo reduzido ao mínimo é o que o torna conhecido. É o símbolo do poder da mente encarcerada num corpo incapaz. É isso que o torna conhecido. A deficiência física ajuda. Não precisava disso para ser um físico bom mas para comunicar para o público isso tornou-se um elemento extraordinário. As pessoas vêem algo maravilhoso. Vêem a capacidade humana apesar das limitações. Há outra coisa: ele precisava de meios para sobreviver. A assistência médica é cara, ele tinha enfermeiras sempre à volta, ele próprio reconhecia que tinha de escrever livros e fazer comunicação porque precisava. Ele fez, por exemplo, a Breve História do Tempo que o torna muito conhecido e que vendeu 25 milhões de cópias em todo o mundo.

A Breve História do Tempo é um livro difícil. Como se tornou tão popular?
Não é um livro nada fácil. É muito difícil de perceber e, no entanto, é o livro de ciência mais vendido de sempre.

Será o mais lido?
Não é o mais lido de certeza. Não acredito que todos os que o compraram o leram. E se foi lido, não foi compreendido. Apesar de não usar matemática, só há ali uma equação, ele fala de coisas difíceis de compreender como uma nova teoria para o início do espaço e do tempo. Mas tinha truques. São truques publicitários, de algum modo, que resultam muito bem.

Por exemplo?
O uso da palavra Deus. Stephen Hawking, que era agnóstico, usa no livro metáforas de natureza religiosa. Quando diz “eu só quero ler a mente de Deus”. Esse tipo de mensagem contribuiu de certeza para o êxito do livro. Aqui está um livro de um cientista cujo objectivo é ler a mente de Deus. Fala de Deus mais do que uma vez. E essa palavra tem esse encantamento, as pessoas querem saber o que se passa na mente de Deus. Ele reconheceu noutros livros que isso é uma maneira de falar e que o que quer falar é dos mistérios do Universo, mesmo não existindo o criador. Os outros livros que escreveu depois acabam também por ser mais fáceis de ler. Mas a “Breve História do Tempo” é um marco. Até pelo título que é muito feliz. É a história de tudo, desde que existe tempo, desde o Big Bang, até à actualidade. Depois, aproveitando este título, tem um livro mais recente chamado A Minha Breve História [Gradiva] que é engraçadíssimo, é sua autobiografia.

Transformou-se numa estrela da ciência. Concorda?
Sim, é uma pop star. É uma espécie de Lady Gaga, ou talvez mais célebre do que a Lady Gaga. Talvez mais célebre do que muitas estrelas pop modernas. Porquê? Porque tinha um grande humor, um sentido de humor próprio para a comunicação. Prestou-se, por exemplo, a aparecer num episódio dos Simpsons, num episódio do Star Trek, séries populares de televisão… não se importava. Ajudou a criar esse mito do cientista que, apesar de estar numa cadeira de rodas, consegue pensar o Universo. Constituiu-se como símbolo da possibilidade de conhecer. É isso que ele simboliza.

Era também um exemplo como comunicador e divulgador de ciência.
Exactamente. Ao papel de muito bom cientista, e não diminui nada esse papel, acresce outro papel em que é inigualável. Talvez só Carl Sagan nos tempos modernos tenha feito isso. É o papel de comunicador. E o paradoxo está aqui: quem mais e melhor consegue comunicar é uma pessoa que nem voz tem! Não consegue mexer os músculos para dizer palavras, tem de ser com a ajuda de um computador.

No entanto, as suas participações mais mediáticas não beliscaram a sua credibilidade como cientista?
Não, não. É estimado pelos colegas da astrofísica e da física em geral. Acham que o que fez pela divulgação da ciência é uma mais-valia. É qualquer coisa que todos os colegas agradecem. Não é de modo nenhum, mal visto. Não é considerado como alguém que quer protagonismo barato ou engrandecer o trabalho dele. Pelo contrário, é uma pessoa que prestou um grande contributo à ciência. E, para a sociedade em geral, o contributo foi tornar a ciência mais conhecida. Hoje, todos associamos Stephen Hawking ao cosmos e, por causa dele, temos a noção de que é possível conhecer mais sobre o mundo. Não estivemos no Big Bang, somos resultado do Big Bang, mas podemos com a nossa mente chegar a uma parte dos mistérios do Big Bang. A mesma coisa para os buracos negros e outros mistérios do nosso vasto mundo, as estrelas que explodem…. São mensagens que a ciência moderna espalha com a ajuda de divulgadores como Stephen Hawkings. E há mais. Stephen Hawking junta a isto o facto de ser uma voz da ética.

De que forma?
Fez parte de um grupo de pessoas que alertou para os riscos da inteligência artificial. A última vez foi na Web Summit. Não sendo a sua área de especialidade, estava em contacto com pessoas dessa área e achava que é algo que nos deve preocupar. Ele – que só conseguia falar com a ajuda de computadores! – falou do perigo que os computadores podem ter se tiverem um poder que seja semelhante ou mesmo que exceda o do nosso cérebro.

Qual é o perigo que Stephen Hawking via na inteligência artificial?
É o perigo da desumanização. De os humanos não serem precisos sequer, porque os computadores podem fazer tarefas automáticas mas podem também fazer tarefas que nós pensamos que são menos automáticas como é a de pensar. Há quem fale numa espécie de fim dos tempos. Daqui a umas dezenas de anos a humanidade seria substituída por robôs porque conseguiriam pensar mais do que um humano, com a vantagem de serem imortais. Seria de algum modo um fim da nossa história. E ele diz que isto é um problema sério e que é a questão mais preocupante de todas.

Pôs também a sua voz metalizada ao serviço da consciência científica, das preocupações do homem e do seu futuro. Portanto, era um grande cientista, um grande divulgador de ciência e também uma voz ética da ciência. É uma pessoa completa. Uma pessoa que não ficou presa a si, apesar de todas as suas limitações, mas que se deu aos outros, deu-se não só no seu ramo da ciência mas também oferecendo as suas opiniões sobre o mundo. Isso é muito importante nos tempos de hoje, porque a ciência não é apenas dos cientistas, é de todos nós. Stephen Hawking simboliza muito bem essa entrega da ciência pelos cientistas a todos nós. Nos últimos 20 anos, foi talvez o ícone daquilo que a ciência pode fazer. No caso dele, ciência pura. Mostrou que o nosso cérebro é a única parte do Universo que consegue compreender o Universo. O cérebro de Hawking é, de algum modo, o representante dos nossos cérebros que, neste pequeno planeta, neste pequeno ponto azul perto de uma estrela banal que é o Sol, colocam questões e procuram responder a questões grandes como “de onde vem isto tudo”, “para onde vai”, “de que é que somos feitos”… Mesmo não se sabendo de ciência, são questões fáceis de fazer. Até uma criança pode perguntar de onde veio o mundo. Ele é uma espécie de intermediário da humanidade com a ciência. E isso é um papel insubstituível.

A ciência fica mais pobre sem uma figura como Stephen Hawking.

Stephen Hawking tocou em tantas coisas importantes para a ciência. Para si, físico, qual a parte que mais o impressionou?
Gosto de comunicar ciência e ele é um exemplo de grande comunicador de ciência quando tudo estava contra ele. Mas, para mim, a lição maior até tem pouco a ver com a ciência. É a lição de não nos deixarmos vencer pelo destino. Se as probabilidades são pequenas, jogar nas pequenas probabilidades. Não nos conformarmos com o destino que nos anunciam. Viver a nossa vida até ao fim. Ele, com 76 anos, viveu uma vida completa e viveu uma vida feliz. Mesmo dentro da contrariedade, dentro de uma doença, soube ter os pequenos prazeres da vida.

Por exemplo, esteve há quatro anos em Portugal com a sua cadeira de rodas e as suas enfermeiras, veio num daqueles grandes paquetes que trazem turistas a Portugal e lá andou ele… a ver Lisboa, a ir aos pastéis de Belém, ao Castelo de S. Jorge, aquelas coisas que os turistas já reformados fazem. É uma lição. O mundo é grande, é vasto, é rico. E mesmo que pareça que o fim do mundo está à nossa frente, porque a nossa morte é sempre o nosso fim, adiamos isso. Adiamos o nosso fim do mundo. Vivamos a vida. E é essa a grande lição. Ensinou-nos a ignorar o fim. Se vivermos uma vida como ele viveu, de interrogação, de comunicação, com outras dimensões, o amor, a paixão... A mensagem de Hawking é de esperança, de não desistir, de nos agarrarmos à vida, de agarrar o futuro. Nesse sentido, por causa dessa mensagem, Hawking não morreu.

Fotogaleria