“Cannabis”: uma urgência
Temos ouvido e lido muito sobre a cannabis terapêutica e os seus detractores. A estratégia principal é clara: criar muita confusão e medo para que nada seja feito
“Caro Dr. Bruno Maia, deixe-nos apresentar-lhe as nossas desculpas pelo atrevimento (...) temos a imperiosa necessidade de alterarmos a baixa qualidade de vida do nosso filho (...) que sofre de epilepsia e que toma diariamente 17 comprimidos, sem que tenha sido melhorado o seu quadro clínico.”
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“Caro Dr. Bruno Maia, deixe-nos apresentar-lhe as nossas desculpas pelo atrevimento (...) temos a imperiosa necessidade de alterarmos a baixa qualidade de vida do nosso filho (...) que sofre de epilepsia e que toma diariamente 17 comprimidos, sem que tenha sido melhorado o seu quadro clínico.”
Assim começava uma carta que me foi entregue em mãos por um pai envergonhado que procurava na cannabis uma alternativa para o seu filho. Envergonhado porque tinha medo (palavra utilizada pelo próprio) de falar do assunto ao seu médico. E tinha razões para ter medo. Razões que a Maria (nome fictício) bem conhece — quando falou da cannabis ao médico da sua filha de 20 meses que convulsava 150 vezes por dia, ele acusou-a de “querer drogar a filha”. Não obstante, a Maria pôs-se a caminho e conseguiu importar óleo de canabidiol para a filha — tudo correu bem, até ao dia em que a encomenda foi apreendida na Alfândega, só libertada depois de umas belas centenas de euros. O Mário (também nome fictício) enfrenta ainda uma pena de prisão suspensa ou uma multa por ter plantado em casa a única coisa que alivia as suas dores crónicas — foi acusado de tráfico de droga.
Temos ouvido e lido muito sobre a cannabis terapêutica e os seus detractores. A estratégia principal é clara: criar muita confusão e medo para que nada seja feito. Em caso de dúvida, prevalece o status quo. O PCP tem defendido que não precisamos de uma nova lei. Se não precisamos de uma nova lei, então é porque a Maria é mesmo uma criminosa e deve permanecer na clandestinidade e no contrabando. Se não precisamos de uma nova lei, então é porque doentes como o Mário devem ser atirados para a cadeia. Se não precisamos de uma nova lei, então é porque está certo que só quem possa pagar 500 euros por mês pelo Sativex (o único canabinóide autorizado pelo Infarmed) é que possa ter acesso a esta terapêutica. Se não precisamos de uma nova lei, então só a grande indústria farmacêutica poderá comercializar medicamentos de cannabis enquanto o próprio doente que cultiva a sua planta é um traficante de droga.
E temos ouvido falar as instituições, a Ordem dos Farmacêuticos, o Infarmed, entre outros. E o discurso é redondo. Os regulamentos, a burocracia, as boas práticas. “Os médicos não prescrevem plantas.” ”O circuito do medicamento é só para medicamentos.” Falam obcecadamente nos procedimentos e na sua rotina porque, dizem, preocupam-se com a “segurança dos doentes”. Mas na realidade é a sua própria segurança e intocabilidade que os preocupa — o que interessa é que, se alguma coisa correr mal, eles não sejam responsabilizados, porque cumpriram com os seus regulamentos. Escudados atrás da burocracia, escudam-se também da realidade de quem precisa da cannabis.
Tudo se resume a vontade política. A cannabis pode ser uma estratégia terapêutica como qualquer outra. E não precisa de ser fumada — existem hoje vaporizadores que eliminam a combustão e o fumo da sua administração. Já ninguém duvida que existe evidência científica forte da sua eficácia (adjectivo utilizado pela própria Ordem dos Médicos) e experiência terapêutica em milhares de doentes de 14 países europeus, Canadá e na maioria dos estados americanos. Não precisamos de inventar a pólvora ou criar barreiras onde elas não existem, basta olhar para as experiências destes países e aprender como se faz: certificam-se e auditam-se os produtores da planta; verifica-se a qualidade do produto, fazem-se análises periódicas para despiste de contaminantes e classificam-se os lotes quanto à dose, à espécie da planta e aos seus constituintes; o médico prescreve de acordo com as recomendações existentes e o doente que tem na frente; monitorizam-se os efeitos secundários e as reacções adversas como com qualquer outro medicamento; formam-se médicos e informam-se doentes. Nada que não façamos já com muitos outros medicamentos, produtos ou técnicas terapêuticas.
Não têm vontade política? Então deixem passar à frente quem tenha e vamos resolver o problema destas pessoas de uma vez por todas.