Uma cama, uma sopa, um duche: voluntários de Bruxelas acolhem refugiados em casa

“Não temos nem o poder, nem os meios, nem as competências, mas queremos salvar vidas”, diz um dos participantes no esquema montado pela Plataforma Cidadã de Apoio aos Refugiados, co-presidida pela portuguesa Adriana Costa Santos.

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A escuridão já tomou conta dos quarteirões de arranha-céus ocupados por milhares de escritórios, e o silêncio e vazio fazem das ruas que escondem o Parque Maximilian, entre o canal de Bruxelas e a Gare du Nord, um cenário de desolação urbana. Mas na esquina oposta ao edifício baptizado “World Trade Center”, levanta-se uma estranha azáfama todas as noites, por volta das oito horas. É quando centenas de pessoas se encontram para um ritual de ajuda e solidariedade, que garante um tecto, uma cama e uma refeição quente à população de candidatos a asilo, refugiados, migrantes ou exilados que vivem no parque.

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A escuridão já tomou conta dos quarteirões de arranha-céus ocupados por milhares de escritórios, e o silêncio e vazio fazem das ruas que escondem o Parque Maximilian, entre o canal de Bruxelas e a Gare du Nord, um cenário de desolação urbana. Mas na esquina oposta ao edifício baptizado “World Trade Center”, levanta-se uma estranha azáfama todas as noites, por volta das oito horas. É quando centenas de pessoas se encontram para um ritual de ajuda e solidariedade, que garante um tecto, uma cama e uma refeição quente à população de candidatos a asilo, refugiados, migrantes ou exilados que vivem no parque.

Está um frio inclemente quando Nicole, uma britânica a viver em Bruxelas há 17 anos, se apresenta com a mãe na esquina do parque, para oferecer a sua hospitalidade por uma noite. É o terceiro dia do vortex polar que tomou conta da capital belga e do centro da Europa: com os pais a chegarem de visita do Reino Unido, e planos fechados para umas obras de renovação da casa, Nicole não contava acolher refugiados por estes dias. Mas depois de uma breve conversa com a família, a decisão foi tomada, e meteu-se no carro com a mãe, em direcção ao parque. Desta vez não levará quatro pessoas de volta, como faz habitualmente. Hoje só vai haver espaço para dois convidados — que já se aproximam com as suas pequenas mochilas às costas. “Chegamos à conclusão que ninguém ia conseguir dormir descansado sabendo que havia pessoas que passariam esta noite na rua”, justifica a mãe de Nicole, enquanto esta vai cumprindo as formalidades das apresentações.

Essa consciência, ou preocupação, com as dificuldades de quem se vê forçado a viver no parque é aquilo que une os voluntários que desde Setembro do ano passado estão em contacto com a Plataforma Cidadã de Apoio aos Refugiados para abrir as portas de casa, por uma noite, ou duas, ou uma semana, a quem de outra maneira não teria um jantar em família, um duche quente, um colchão para passar a noite. Tal como Nicole, quem se envolve no acolhimento, não consegue mais abstrair-se ou ignorar o sofrimento das cerca de 500 pessoas que por um caminho ou outro foram parar ao Parque Maximilian. E muito menos quando está tanto frio que todo o corpo dói.

“Sabemos que os nossos pequenos gestos de solidariedade não vão parar as bombas, ou a venda de armas, nem vão acabar com as crises económicas e políticas no mundo. Mas podem dar coragem, esperança e dignidade a alguém que já não terá de passar a noite ao relento”, escreveu um dos voluntários na página da Internet onde se acumulam testemunhos da “Não temos nem o poder, nem os meios, nem as competências, mas queremos salvar vidas”, resume um outro.

Em Bruxelas desde Outubro de 2015, Adriana Costa Santos, uma jovem portuguesa de 23 anos, é a co-presidente da Plataforma Cidadã e já se habituou a ouvir relatos semelhantes. No Parque Maximilian, é fácil perdê-la de vista: todos a conhecem, os refugiados e os voluntários, que a chamam pelo nome, para que ela responda a mais uma pergunta, atenda mais um pedido, arranje mais uma solução à última hora. Adriana, ao mesmo tempo franzina e robusta, não perde nunca o sorriso, a disponibilidade e a compostura, firme no seu compromisso de alojar mais uma e ainda mais outra pessoa esta noite, o telefone sempre em riste mesmo quando os frio de dez graus negativos lhe congela os dedos.

A jovem não gasta energia a falar dela própria mas tem paciência e disponibilidade para responder a todas as perguntas sobre o projecto a que está ligada desde o dia em que chegou a Bruxelas: foi depois de ser avisada por uma amiga da existência da Plataforma, e por andar interessada em fazer voluntariado, que decidiu sair de Portugal. A ideia era ficar por três meses, mas com a Plataforma a ganhar dimensão e com Adriana a assumir cada vez mais responsabilidades, acabou por “mudar de plano e ficar”.

De 2015 até hoje, tanto o contexto dos movimentos de refugiados e migrantes na Europa, como os serviços prestados pela Plataforma, mudaram significativamente. No Parque Maximilian estavam, em 2015, sobretudo famílias sírias e iraquianas, cujo acampamento foi rapidamente desmontado pela cidade de Bruxelas, que tratou do seu alojamento. Com a crise debelada, a Plataforma Cidadã fornecia-lhes vários serviços num centro de dia — infantário para as crianças, aulas de línguas para os adultos, acompanhamento jurídico e apoio à integração cultural.

No final de 2016, com o desmantelamento do campo de refugiados de Calais (em França), o Parque Maximilian voltou a ser procurado pelos candidatos a asilo e migrantes que vivem em trânsito pela Europa. No Verão passado, perante o crescimento do acampamento em Bruxelas, as autoridades belgas decidiram intervir: através de acções policiais de despejo dos “residentes”, e depois com um controverso acordo fixado com o Governo do Sudão, que levou os serviços secretos de Cartum até Bruxelas para identificar refugiados, que foram deportados e torturados no regresso ao país.

“No fim do Verão de 2017, a Plataforma lançou um apelo aos voluntários para ajudar a proteger a população mais vulnerável do parque das acções da polícia. E depois de receber tantas propostas de acolhimento, surgiu esta ideia, por que não alojar toda a gente?”, conta Adriana, que através das redes sociais fez crescer o número de inscrições de voluntários de 400 para mais de 39 mil.

Depois de dois anos e meio de operação, a Plataforma mantém-se uma organização formada inteiramente por voluntários que põem em prática, da forma mais pessoal e simples possível, a sua solidariedade. “Não é nada de mágico, é apenas humano, mas esse é o mais belo dos adjectivos”, resume um dos voluntários. É, também, uma organização independente, apolítica, arreligiosa, que cumpre uma função humanitária e cobre uma necessidade social que costuma estar na esfera das instituições públicas ou das organizações profissionais de ajuda de emergência — o que explica, talvez, que tanto Adriana como Mehdi Kasson, o outro co-presidente, tenham sido nomeados os “bruxelenses do ano” de 2017 pelo jornal Le Soir.

“Tratam-nos como criminosos”

Amadou (nome fictício) de 28 anos, está todas as noites no Parque Maximilian. É por isso que nos dois meses que leva em Bruxelas nunca precisou de dormir na rua, apesar de não ter documentos, nem roupa, “nem um único euro no bolso do casaco”. “Os belgas são simpáticos, isto que eles estão a fazer é simplesmente extraordinário”, diz este senegalês, que fugiu do seu país por razões políticas mas viu o seu pedido de asilo rejeitado em Bruxelas. “As autoridades querem mandar-me para Espanha, porque foi lá que eu entrei na Europa”, esclarece.

Da saída do Senegal à entrada na Europa foi quase um ano, recorda, em que passou primeiro pela Mauritânia e daí para Marrocos, onde foi saltando de cidade em cidade ao longo de meses até se ver num bote de borracha a cruzar o estreito com direcção a Algeciras. O desembarque em solo espanhol foi acompanhado pela Guardia Civil, que tem instruções para deter todos os migrantes. “Tratam-nos como criminosos, põem-nos logo algemas”, reclama Amadou, que passou mais de um mês numa prisão espanhola antes de ser “processado” num centro de refugiados. Foi daí que fugiu para a Bélgica.

No parque Maximilian, Amadou encontrou muitos outros candidatos a asilo e migrantes com um experiências semelhantes: aos contactos iniciais com traficantes, que podem pedir entre 1500 a mais de 5000 euros para garantir a travessia até à Europa, seguem-se meses em trânsito, até à. Em contacto com a Plataforma estão egípcios, etíopes, eritreus, guineenses, iraquianos, afegãos, e muitos sudaneses, que ora desembarcaram na Grécia vindos da Turquia, e daí caminharam a chamada rota dos Balcãs, ora cruzaram o Mediterrâneo até às ilhas da Sicília ou ao Sul de Espanha. Quando chegam à Bélgica, já passaram por centros de detenção, unidades de acolhimento ou serviços sociais ou de imigração de uma série de países: são pessoas permanentemente em trânsito no espaço da União Europeia por causa do sistema de Dublin, que prevê que só possam pedir asilo no país de entrada.

Ao contrário da esmagadora maioria dos seus companheiros do parque, Amadou não pretende seguir para o Reino Unido, onde não há controlo de identidade e existem várias comunidades étnicas bem estabelecidas. Quer ficar na Bélgica, onde pode falar francês e onde espera arranjar um trabalho que lhe permita viver uma vida pacata, sem ter medo de entrar num supermercado nem necessidade de andar a fugir da polícia. “Não fumo, não bebo, não sou malcriado nem violento, sou um bom rapaz”, promete. “Mas a Bélgica quer mandar-me para Espanha, e eu para lá não vou”, garante, dizendo que a sua única opção é continuar a esconder-se das autoridades no parque — e reconhecendo a ironia de dali poder ver o escritório do serviço de estrangeiros que processa os pedidos de asilo no outro lado do passeio.

Um pouco de normalidade

Chegar ao Reino Unido é o grande sonho dos quatro rapazes que Nazaré Vinha, uma alentejana a viver em Bruxelas há quase vinte anos, recebeu em sua casa. Os dois primeiros, vindos do Sudão, tentaram uma primeira vez atravessar o canal mas acabaram por regressar a Bruxelas; os outros dois, originários da Eritreia, estão agora em Paris: Nazaré recebeu há dias uma mensagem em que contavam que estão a dormir na rua, debaixo de um viaduto. Ficou triste, pela situação difícil em que eles se encontram e pela consciência de que não tem nada para lhes oferecer em troca. “Eles têm um sonho, e eu não tenho nada para lhes propor em alternativa a esse sonho” que na maior parte das vezes se revela impossível, lamenta.

Por isso, Nazaré propõe-lhes uma cama, um chá, umas costeletas de borrego, umas botas novas, aquilo que for preciso para . “A única coisa que posso fazer é dar-lhes algum conforto durante algum tempo, para que possam descansar e retemperar as forças. Posso tentar devolver um pouco de normalidade à vida deles. Eles esquecem-se que são jovens porque passaram por coisas inimagináveis e têm de sobreviver na rua mas que são exactamente como os nossos jovens, com a sua individualidade e os seus sonhos”, compara.

Foi no Natal, em Portugal, que Nazaré tomou conhecimento do sistema de albergue de refugiados montado pela Plataforma. A sua filha Adriana Sthiago, de 25 anos, recebeu um telefonema que a deixou muito incomodada: era Abdul, um jovem do Darfur que ela já tinha acolhido na casa que partilha com vários amigos, a perguntar se tinham lugar para ele não passar a noite de Natal na rua. “Eu estava em Portugal, rodeada da minha família, com calor e com comida e sem poder fazer nada “, lembra Adriana, que então confessou à mãe que estava inscrita na Plataforma Cidadã e há uns meses tinha começado a receber refugiados em casa.

A filha, que está a fazer um estágio no centro (do Governo federal) para requerentes de asilo, Petit Chatêau, receava uma descompostura materna — há sempre dúvidas quanto à segurança, e também “uma resistência a que se abram as portas de casa e a intimidade a completos estranhos”, diz. Mas Nazaré achou o gesto de Adriana admirável. “Fiquei impressionada, e também envergonhada por não ter pensado em fazer o mesmo”, revela. Decidiu então seguir o exemplo da filha e inscrever-se na Plataforma. “No Facebook vi que estavam a pedir voluntários para um programa especial de Ano Novo, deixei o meu nome e no dia 29 de Dezembro fui ao parque buscar dois rapazes sudaneses da idade dos meus filhos”, conta Nazaré, que sem saber exactamente o que fazer com eles acabou por “levá-los a fazer turismo, como se fossem dois convidados de visita a Bruxelas”.

Depois de os deixar novamente no parque, Nazaré desatou a chorar. “Não conseguia deixar de pensar como o mundo é injusto, como o meu filho estava tão bem em casa e eles ali, com as suas mochilas, totalmente vulneráveis”, lembra. Os sudaneses seguiram viagem rumo à costa, em busca de um transporte (clandestino) para o Reino Unido. Nazaré tinha-lhes dito que se não conseguissem, poderiam voltar a sua casa — foi o que aconteceu. “Fiquei aliviada quando os vi, mas também triste por eles não terem feito o que queriam”, diz a portuguesa, que entretanto tinha acolhido outros dois jovens, oriundos da Eritreia. “Eles não quiseram ficar muito tempo, e nós sabemos que isso quer dizer que têm já alguma coisa combinada para tentar sair da Bélgica”, explica. Os dois foram procurar asilo para Paris, mas agora estão a dormir na rua — Nazaré sabe porque comunicam no WhatsApp todos os dias.

“A partir do momento em que os conheço não posso deixar de me preocupar com eles. A sorte deles traduz a sorte de muita gente, mas agora para mim é a imagem deles que fica, miúdos, magrinhos, sempre com medo, sempre escondidos. Nós podemos resolver o problema deles por um dia ou dois, mas eles podem passar anos neste limbo. Estão presos nesta fortaleza europeia: deambulam, mas as vidas deles estão paradas”, diz.

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