Retrato de uma cidade tão bela quanto escaqueirada
Ao longo da última década, João Pina foi construindo um corpo de trabalho sobre o Rio de Janeiro que ziguezagueia entre a beleza encantatória e o enraizamento trágico da violência. O fotolivro 46750 ensaia um cruzamento dessas duas faces.
Por estes dias, enquanto decorre a impressão, João Pina sabe que estão a gravar na capa dura de tecido avermelhado do seu mais recente fotolivro um título desactualizado – 46750. É assim que chegará às livrarias em Maio. Este número, que para além de um título é uma contagem tenebrosa, poderia ser, com toda a certeza, revisto em alta. Isto, se o fotógrafo quisesse indicar com precisão os últimos dados disponibilizados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro sobre o número de homicídios que ocorreram nesta região metropolitana, que por causa de uma nova espiral de violência e do poder do crime organizado viu recentemente os serviços de segurança serem entregues ao comando do Exército, naquela que foi considerada por Brasília “uma medida extrema”.
Na verdade, a actualidade dos números é paradoxalmente irrelevante em 46750, o novo trabalho daquele repórter que, há uma década, tem passado várias temporadas no Rio de Janeiro, não apenas para cobrir acontecimentos de noticiário. No arco temporal que traçou, entre o início de 2007 e o fim de 2016, os dados oficiais do ISP revelam que houve 46.750 mortes resultantes de homicídios no Rio. À medida que os dias forem passando sobre esta data, também este número avançará, numa marcha inexorável, trágica e assustadoramente quotidiana, uma marcha em crescendo que ninguém parece conseguir contrariar. Estampada na capa por cima da fotografia de um pescoço longilíneo e costas tatuadas com a silhueta do Cristo Redentor, aquela cifra serve sobretudo para nos dar uma ordem de grandeza daquilo que está a acontecer numa cidade gangrenada pela violência (nos quatro anos de guerra da Bósnia morreram cerca de 100 mil pessoas).
46.750 é um número que hoje está seguramente desactualizado, ao contrário das imagens que João Pina captou – tanto as de agora, como as de há dez anos –, que nos dão um fresco não apenas do frenesi assassino, como de outras facetas do Rio, onde “em geral, a vida continua”. E nisso a cidade parece não ter mudado um milímetro.
Perante a dimensão do número e tudo o que ele representa (sobretudo em custos sociais) será possível falar então num quotidiano normal? “Claro que sim, só que é um normal diferente daquilo a que estamos habituados noutras cidades. É preciso aceitar a ideia de que a vida escapa ao nosso controlo – eu não estou habituado isso, mas muitas pessoas no Rio estão”, diz João Pina em conversa com o P2 por telefone a partir da gráfica Maiadouro, onde 46750 (em pré-venda no site do autor e editado pela Tinta da China) está a ser impresso e acabado.
Consciente da dificuldade de sair dos clichés associados ao Rio de Janeiro, o fotógrafo (que encontrou neste livro "a oportunidade de desconstruir" o seu trabalho) quis dar conta da capacidade dos “cariocas” de “sobrevoarem” o clima de tensão permanente através da “criação de espaços de descontracção e alegria”; quis mostrar a sua “resiliência”. “Tentei olhar para outros lugares onde existe muito mais do que sangue… procurei os pequenos sinais do quotidiano para que quando olhemos para a fotografia de uma mulher grávida dentro de um caixão não nos esqueçamos do absurdo de tudo isto.” No Rio, diz Pina, “as emoções são sempre muito marcadas, quando é triste, é muito triste, quando é alegre, é muito alegre”. “A poesia no samba fala disso: hoje cantamos para não chorar e com isso nos rimos.”
Indo mais longe no desafio às imagens que foi recolhendo ao longo dos últimos anos, o fotógrafo convidou a poeta Viviane Salles, nascida e criada na favela Cidade de Deus, a escolher imagens do livro sobre as quais viria a escrever. Dessa selecção resultaram nove poemas que dialogam com outras tantas fotografias. Será a poesia aqui uma tentativa de dizer o indizível, o tal “absurdo” que tantas imagens de 46750 convocam? “A minha visão no Rio é sempre a de um estrangeiro. Pensei que o olhar de alguém vindo de dentro deste universo dos morros e das favelas, alguém que sentisse na pele este quotidiano, pudesse descrever melhor o que ali se vive. Não que eu estivesse à procura de outra forma de falar de assuntos difíceis, mas achei que o género de escrita tinha de ser complementar e não uma visão idêntica à minha.”
Resumir tudo a uma imagem pode ser perigoso. Mas a visão de uma construção vernacular que parece ter sido bombardeada e que ainda ostenta o orgulho da bandeira da “ordem e progresso” é tentadora, impele-nos para esse exercício. Estaremos perante uma metáfora certeira do país, da cidade? “Sim, ainda que ao longo desta última década tenha havido momentos diferentes, acho que o que sempre esteve aqui foi uma cidade escaqueirada. A bandeira representa o orgulho brasileiro, mas quase tudo o resto é ruína.”
Uma exposição com parte das imagens de 46750 estará patente na 10.ª edição dos Encontros de Fotografia Documental de Sète, França, que arranca no dia 8 de Maio.