Como viver depois da intensidade

Cinquenta anos depois de 1968, João Moreira Salles recuperou as imagens do Maio de Paris e da Primavera de Praga, e juntou-as com os filmes amadores que a sua mãe fez, em 1966, numa viagem exaltante à China, em plena Revolução Cultural. O resultado é No Intenso Agora, um filme com uma tonalidade marcadamente poética, "para tentar entender como se chega a perder a capacidade para a alegria". Pedimos-lhe uma entrevista e acabámos por ter três encontros: mais de sete horas de conversa.

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Num diálogo com estudantes do ensino secundário, numa sessão do festival de cinema DocLisboa, em Outubro passado, João Moreira Salles apresentou-se como “jornalista”. A definição não é falsa, mas é de uma modéstia descarada. A maioria das pessoas na plateia talvez não soubesse, mas a família a que João pertence é uma das mais ricas do Brasil; e não só uma das mais ricas, mas talvez a mais relevante pelo seu papel de mecenas. O pai, Walther Moreira Salles (1912-2001), foi banqueiro, embaixador e — antes do golpe militar de 1964 — ministro de vários governos, de Getúlio Vargas a João Goulart. Um dos irmãos de João é Walter Salles, realizador de filmes como Central do Brasil (1998) ou Diários de Che Guevara (2004). Dizer isto, que não é falso, arrisca-se, entretanto, a soterrar João Moreira Salles sob o peso da sua posição social, e tão-pouco lhe faz justiça.

Actualmente, Salles é editor da Piauí, revista mensal que fundou em 2006 e que combina jornalismo e ensaio. Ele rejeita a etiqueta de “jornalismo literário”, que já classificou como “um nome pomposo, que quer aproximar-se da eternidade da literatura”. Mas o certo é que, na qualidade dos seus textos longos, a revista se mede com as melhores publicações do mundo – um cruzamento entre a New Yorker e a New York Review of Books. Salles é também director do Instituto Moreira Salles, porventura a fundação cultural privada mais importante do país, com um museu no Rio de Janeiro (instalado na antiga moradia da família, no bairro da Gávea) e outro, num edifício de sete andares recém-inaugurado, na principal avenida de São Paulo. O IMS publica duas revistas, três vezes por ano, em formato de livro: a Serrote, especializada em literatura e ensaio, e a Zum, em fotografia.

Além disso — e antes disso —, Salles tinha já uma carreira relativamente longa como documentarista. Nela talvez se possam destacar Notícias de Uma Guerra Particular (1999), sobre a relação entre o tráfico de drogas, a população e a polícia numa favela do Rio de Janeiro; Entreatos (2004), sobre os bastidores da campanha que levou Lula à presidência do Brasil; e principalmente Santiago (2007), um retrato do próprio mordomo da família Moreira Salles. Depois de um interregno de dez anos, Salles regressou em 2017 ao DocLisboa para apresentar No Intenso Agora, uma espécie de ensaio sobre a vida nos momentos em que é vivida na sua máxima intensidade, e sobre o que acontece às pessoas quando esse momento passa. O filme — que estará em cartaz no Cinema Ideal, em Lisboa, de 22 a 28 de Março — não contém nenhuma imagem filmada pelo próprio Salles. O realizador combina cenas de arquivo do Maio de 68, da Primavera de Praga e das manifestações no Rio de Janeiro no mesmo ano com excertos de filmes amadores feitos pela sua mãe, Elisa (1929-1988), durante uma excursão de “industriais, banqueiros e gente de sociedade” à China, em 1966, em plena Revolução Cultural. No Intenso Agora é uma investigação sobre a ideia de felicidade, no plano privado e no público; e é, nas palavras do realizador, “uma tentativa de entender como uma pessoa chega a perder a capacidade para a alegria”.

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Na primeira pessoa

Começo a conversa com Salles por lhe dizer da minha dificuldade em explicar de que trata o seu filme: a descrição a que cheguei parece muito abstracta. “É difícil mesmo”, confirma. “A coisa mais complicada de fazer foi o trailer: como é que se pode reduzir isto a dois minutos e dizer o que é? Não pode, é impossível — e por isso o trailer de facto não representa o filme. Tive de escolher um aspecto, pequeno, e torcer para que ele fosse suficiente para levar as pessoas ao cinema.”

No Intenso Agora é um ensaio narrativo na primeira pessoa, em que o autor se compromete com um ponto de vista assumidamente pessoal, com a liberdade de evocar a sua própria experiência, mas, ao mesmo tempo, sem que a sua vida seja o objecto central do filme: não se trata de “memórias” nesse sentido. O ponto de viragem na obra de Salles é Santiago, o momento em que o autor se introduz como presença explícita dentro do filme. Os seus documentários anteriores eram em certa medida mais convencionais, procurando mostrar a realidade como se o realizador não estivesse presente: como se a câmara de filmar fosse um vidro através do qual é possível testemunhar os acontecimentos tal como eles se dão.

O tema de Santiago é em parte a tentativa falhada de fazer um filme biográfico sobre o mordomo da família. Em 1992, Salles tinha gravado um conjunto de entrevistas com Santiago Badariotti (1912-1994), para um filme que depois não se achou capaz de montar. Por mais de uma década, as imagens ficaram armazenadas sem destino, até ao dia em que voltou a olhar para elas com o auxílio de dois colaboradores (Eduardo Escorel e Lívia Serpa) e descobriu a possibilidade de um outro filme. Apercebeu-se de que havia filmado Santiago “como um patrão filma o seu empregado”. Se o projecto inicial era fazer um filme sobre o mordomo, o Santiago que acabou por ser feito é também uma reflexão sobre a maneira como o próprio Salles tinha filmado. “A relação de classe veio à tona e eu próprio tornei-me em personagem do filme.”

Em Santiago, no entanto, o realizador vale-se de um truque que passará despercebido ao espectador desavisado: é que a voz que fala na primeira pessoa, embora se refira a um “eu” que é o próprio Salles, é de facto a do seu irmão Fernando. É como se Fernando fosse um actor a fazer de João, acrescentando ao “eu” que narra uma leve patine ficcional. Como se dissesse: “Sou eu, mas não sou realmente eu.”

“É curioso que eu tenha acabado por fazer filmes na primeira pessoa, porque não é uma coisa natural para mim. Tenho muita dificuldade em falar de mim. Quando enviei ao Escorel o material do Santiago e lhe disse que tinha chegado à conclusão de que a única maneira de fazer o filme seria recorrendo à primeira pessoa, acrescentei que ficava muito incomodado porque isso me parecia narcísico. Então ele respondeu, por email, com uma frase do [documentarista francês] Chris Marker [1921-2012] que acabou por ser importante: ‘Ao contrário do que as pessoas dizem, o uso da primeira pessoa em filmes tende a ser sinal de humildade: tudo o que tenho a oferecer sou eu mesmo.’ Não sei se acredito inteiramente nisso, mas de certa forma esse depoimento do Marker autorizou-me a utilizar a primeira pessoa.”

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Em 1959, quando estava com o marido, Walther, nos EUA, Elisa foi considerada uma das mulheres mais bem vestidas do mundo. O filho que segura pela mão é Walter Bettmann/Getty Images

Usar a primeira pessoa acabou por ser também “uma questão política.” “Começou a incomodar-me cada vez mais a relação desigual subjacente aos filmes: eu vou às favelas, vou à periferia pobre, e falo sobre eles, mas eles não falam sobre mim. Não se trata de um dogma que eu queira universalizar, mas para mim foi um desconforto progressivo. Aí, no Santiago, caí por acaso na primeira pessoa e aquilo pareceu-me apropriado.”

A questão da desigualdade

Salles nasceu no privilégio e manifesta uma preocupação aguda, às vezes quase angustiada, com a questão da desigualdade. O seu olhar de cineasta dirige-se constantemente a esse assunto. Por fim, Santiago torna-se também uma reflexão sobre como a relação de estima, de amizade, entre ele e o mordomo é atravessada pela desigualdade de classe. Em No Intenso Agora, uma das primeiras sequências examina um filme amador, para logo reparar, em voz-off, na forma como a babá se retira discretamente da cena para que na imagem figure apenas a família. No entanto, quando lhe digo que ele me parece muito alerta para a arbitrariedade e injustiça até do seu próprio privilégio, Salles retrai-se. “É difícil eu falar disso, porque é um pouco cabotino: fica parecendo que sou uma alma sensível, um paladino da justiça... É um incómodo, sim — mas o incómodo não basta. O incómodo é uma posição confortável, quase narcísica: eu sinto-me bem porque me sinto incomodado, e posso continuar com os meus privilégios todos porque sei que não sou da elite insensível. Isso não basta — a questão é o que fazer com isso.”

E nunca pensou em ir-se embora? “Nunca morei fora do Brasil — morar no sentido de ir sem saber quando voltaria. Já passei períodos fora, por exemplo em 2003, quando a minha mulher, Branca, foi fazer um mestrado em Londres. Fiquei por um ano, montei lá o filme da campanha do Lula, mas sempre sabendo que voltaria logo que a tarefa estivesse cumprida. Ir, de malas feitas, para não voltar — nunca, e não passa pela minha cabeça.”

Mas insiste que morar no Brasil não é para si um sacrifício. “Eu não estou aqui pagando uma pena, constrangido por um superego. A partezinha do prazer e do desejo, a parte selvagem gosta do Rio de Janeiro e quer estar aqui.” Mas logo depois o superego regressa: “Além de que sei o quanto o país me deu, sei que sou um afortunado e isso impõe responsabilidades. Eu não gostaria de ser uma dessas pessoas para quem o Rio de Janeiro é apenas uma espécie de ‘banco imobiliário’ [jogo do Monopólio], em que você saca o seu dinheiro, gasta e não se sente responsável por absolutamente nada do que torna a vida nessa cidade às vezes tão odiosa. Ir embora seria ficar apenas com o privilégio, sem a contrapartida do dever.”

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João Moreira Salles: "Não existe biodiversidade na elite brasileira.” Ivone Perez

Essa preocupação com a desigualdade faz-me pensar nas escolhas — pesadas — que uma sociedade assim organizada impõe, por exemplo, na educação dos filhos. Salles confirma: “Uma das razões pelas quais fomos passar um ano em Inglaterra foi também o desejo de colocar os nossos filhos numa escola onde eles iriam conviver com gente com outras vidas, com outras religiões, outros meios sociais... E essa revelou ser uma decisão fundamental, muito acertada. O melhor amigo do meu filho é indiano, outro grande amigo é muçulmano, coisas que um menino da elite do Rio de Janeiro jamais conhecerá. Ele conhecerá um garoto branco como ele, que tem um carro blindado, que tem motorista... Não existe biodiversidade na elite brasileira.”

A imagem e o texto

Não creio que Salles tenha uma ideia fraca dos seus talentos e méritos, mas se há coisa que é impossível é apanhá-lo a vangloriar-se, ou sequer a referir algum dado factual que outros possam perceber como vaidade. Dizer-se “jornalista” não é apenas uma maneira de dissimular o seu estatuto social, mas parece servir também para retirar importância à dimensão literária que, aos meus olhos, No Intenso Agora deixa muito evidente. Quando lhe pergunto se admite vir a escrever um livro, desvia-se desse peso: “Estou com 55 anos... Lampedusa tornou-se escritor mais tarde, mas uma coisa assim não é frequente.” No momento da conversa não me apercebo da ironia, mas, retrospectivamente, o exemplo de um aristocrata de temperamento taciturno é uma escolha pelo menos curiosa. Insisto: a escrita une vários aspectos da actividade de Salles; há uma vocação literária que me parece cada vez mais manifesta. “Não estou a dizer que seja impossível, mas escrever um livro não é projecto que eu tenha”, responde. “Agora, acho que qualquer coisa que queira dizer, sobre mim mesmo e sobre o mundo em que vivo, passará necessariamente pela palavra escrita e não apenas pela imagem. No cinema, encontrei uma maneira de juntar as duas coisas. Não faria muito sentido se não continuasse a explorar isso.”

Santiago e No Intenso Agora — filmes a que Salles se refere como “aqueles que são mais meus” — têm uma marca autoral muito forte, como o próprio reconhece. “Só eu poderia ter feito porque é a minha história, é como eu pensei sobre o documentário esse tempo todo, é como eu vivi a passagem do tempo”, diz nos comentários que aparecem como faixa extra no DVD de Santiago. “Quando você faz isso, é um sentimento de grande alegria, para dizer a verdade: você tem a sensação de que fez alguma coisa que de outro modo não existiria. Ao mesmo tempo, isso cria um problema, porque é muito difícil voltar atrás e continuar fazendo documentários que poderiam ser feitos por outras pessoas. Fecha mais portas do que abre: você chega a um lugar que é mais interessante do que os outros, mas, ao mesmo tempo, depois disso só se sente estimulado a fazer um filme se puder ter uma experiência semelhante.”

Entre o último filme e o anterior passaram dez anos; e agora há uma dificuldade acrescida: “Acho que não vou abandonar a primeira pessoa, mas quero sair da cilada de ter de falar sempre da minha família. Ainda estou à procura de entender como seria um filme na primeira pessoa que não fosse necessariamente sobre mim ou sobre a minha família. Enquanto não tiver essa nova ideia, não volto a filmar.”

Política e melancolia

No Intenso Agora é um filme sobre a pulsão idealista para juntar o pessoal e o político, mas ao mesmo tempo posiciona-se de forma cautelosa e mesmo desencantada em relação à ideia de revolução. Houve quem visse no filme uma apologia implícita do quietismo, da passividade. Em entrevistas recentes, Salles tem procurado contrariar essa ideia, defendendo “a beleza das mudanças graduais”, e até movimentos como o de 1968, não pelos seus resultados imediatos, mas pela sua capacidade para produzir efeitos ao longo de muito tempo. No entanto, vejo uma tensão entre o tom emocional da narração — que lê na intensidade do momento revolucionário já a perspectiva do seu fim — e a sensatez da mensagem política progressista que ele manifesta em entrevistas. O tom do filme é melancólico, e por isso céptico, talvez mesmo “conservador” (com “c” pequeno).

“No Brasil, o 68 francês é um mito que não se abala. Mas, na hora em que as idealizações se encontram com os factos, você percebe que as coisas são muito impuras. O [Daniel] Cohn-Bendit é um sujeito que na segunda semana de Maio vai em viagem a Berlim às custas de uma revista de fofocas e de celebridades. Do meu ponto de vista, isso torna-o maior: tenho uma profunda admiração por ele, inclusive por causa disso. O Cohn-Bendit é humano, é meio malandrão: isso eu admiro, disso eu gosto. O meu filme não é uma afirmação nostálgica sobre 68, mas é gostar de 68 como ele é, atravessado pelas contradições da própria vida. Interessa-me desmanchar a facilidade do 68 utópico que vive na cabeça das pessoas, e não acho que isso seja um gesto conservador.”

Em No Intenso Agora há uma cena em que uma operária, depois de muitos dias de greve, é obrigada a voltar para a fábrica e expressa de maneira muito viva um sentimento de revolta e decepção. No plano emocional, pelo menos, acho que o filme partilha o ponto de vista dela. “Tem toda a razão”, diz Salles. “Agora: aquela moça é conservadora?”

Essa sequência entrou no filme perto do final do trabalho. Mostrar — visualmente — o fim do Maio de 68 foi uma das dificuldades com que a equipa se deparou. “Várias vezes ao longo do filme eu digo que 68 terminou: terminou no discurso de 3 minutos e 48 segundos do [Charles] de Gaulle; terminou quando, com vinte e poucos anos, os jovens resolvem escrever as próprias memórias — porque o que aconteceu já aconteceu e não vai acontecer de novo. Termina na passeata em apoio ao De Gaulle, no último fim-de-semana de Maio; termina quando as estruturas burocráticas da esquerda francesa (a [confederação sindical] CGT e o Partido Comunista) correm para fazer um acordo com o governo. Mas uma coisa é dizer que acabou, outra é dar conta da experiência. O Eduardo [Escorel] insistia: nós dizemos várias vezes que 68 acabou, mas falta uma imagem que dê isso. Nessa altura lembrei-me da cena na fábrica Wonder. Aquela moça, que se chamava Jocelyne, acreditou que era possível viver de outra maneira, com outro tipo de relação com o trabalho. E eu gosto das impurezas de 68 porque, no fim das contas, quem a obriga a voltar para a vida que ela tinha não é a direita, mas o sindicato, que lhe diz: isto é tudo uma questão salarial, conseguimos 10% de aumento, vais perder um ou dois dias de férias, mas vais ganhar mais, portanto agora volta para lá — para a fábrica insalubre, para o trabalho triste... Acho que ela é comovente, é quem melhor exprime a dor do fim de Maio. E a última cena do meu filme, a cena da saída da fábrica dos irmãos Lumière [de 1895], é todo o oposto disso — é a hora em que se abrem os portões e as pessoas vão, não para o trabalho, mas para a vida, para casa, para a família, para a música, para a comida.”

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Manifestações em Maio de 1968, em Paris Gaumont Pathé Archives

A consciência de que o tempo passa

A ideia de felicidade, que o filme investiga, é desde o início acompanhada como uma sombra pela ideia da morte, da passagem do tempo como perda. “A consciência de que o tempo passa é sempre dolorosa: essa é a quota da vida”, dirá o narrador já quase no final do filme. É uma frase que ele toma emprestada de Eduardo Coutinho (1933-2014), cineasta de filmes como Cobra Marcado para Morrer (1984), As Canções (2011) ou Últimas Conversas (2015) — que Salles terminou de montar e estará em cartaz também no Cinema Ideal.

No Intenso Agora tem a morte da mãe do próprio Salles em pano de fundo e tem depois as imagens dos sucessivos funerais políticos de 1968: em Paris, em Praga (quando Jan Palach se imolou pelo fogo), no Rio de Janeiro (onde o estudante Edson Luís foi assassinado pela polícia). A morte está implícita até na dedicatória: Coutinho, a quem No Intenso Agora é dedicado, morreu enquanto o filme estava a ser feito. E há um momento em que o narrador diz — de maneira sem dúvida sincera, mas que soa quase irónica — que, na sua opinião, o filme mais bonito sobre 1968 é Morrer aos Trinta Anos (de Romain Goupil, 1982): um filme que já traz a morte no título. Quando comento isso com Salles, ele ri-se.

“Foi tacteando, às apalpadelas”, que fez o percurso que o levou das imagens da mãe, na China, para o Maio de 68, e que o conduziu a olhar para fenómenos políticos a partir de temas existenciais, como a nostalgia, a morte. Em 2011, passou seis meses a ensinar na universidade de Princeton, nos EUA, e nos tempos livres aproveitava para explorar a biblioteca. “Naquela altura eu já tinha começado a pensar no filme, que então era só sobre a minha mãe e sobre a Revolução Cultural. Lendo sobre a China, começaram a aparecer-me relatos dos jovens maoístas franceses que por lá passaram no mesmo período. Um deles foi o Robert Linhart, que passa pela China poucos meses antes da minha mãe e sente um encantamento que me chamou muito a atenção. Por conta disso, acabei por ir ler o Linhart sobre a experiência dele em 1968, e depois as memórias de outras pessoas — trotskistas, como o Alain Krivine, o Daniel Bensaïd, anarquistas, como Cohn-Bendit e outros. E então dei-me conta de que — em todos eles — existe essa questão: aquilo foi tão poderoso, como se pode viver depois disso? Foi aí que a conexão se fez — uma conexão que não é política, mas que é, digamos, ‘existencial’. As coisas foram-se juntando de maneira muito intuitiva, sem muita certeza de que fosse possível transformar isso em filme. E há muita gente que acha que não é, que a conexão é artificial. Acho que a Laís [Lifschitz] e o [Eduardo] Escorel embarcaram mais rapidamente do que eu na possibilidade de as coisas se juntarem. Eu, dependendo do dia e da hora, ainda tenho dúvidas, ainda me pergunto. No Santiago havia pelo menos um personagem.”

Um filme falado

A personagem que dá unidade a No Intenso Agora é o próprio Salles, enquanto narrador. Agora a voz é realmente a sua.

“Seria um tanto barato se fosse usar novamente o mesmo truque”, reconhece Salles. “No caso de Santiago, boa parte das memórias de que o filme fala são compartilhadas: o meu irmão também viveu naquela casa, conheceu o Santiago, nós temos o mesmo pai. Além disso, Santiago é um filme que coloca em questão a veracidade de uma série de coisas: se as imagens que vemos foram ensaiadas, o que é que foi dito sinceramente pelo Santiago e o que foi dito porque eu lhe pedi, etc. Ao fim de 13 anos, quando revi o que tinha gravado com o Santiago para finalmente fazer o filme, eu já não sabia ao certo quais as cenas que tinham sido manipuladas ou não. O filme tinha esse elemento de ludíbrio, de engano, de saber se o que o espectador vê é mesmo o que parece. A voz do meu irmão falando em meu nome acrescenta uma camada a esse jogo. Não fiz com essa intenção, mas acabei por gostar.”

Salles nunca filmou ficção, por isso nunca dirigiu actores. Mas dirigiu Santiago um pouco como se ele fosse um actor e em No Intenso Agora teve de decidir como queria representar-se a si mesmo. “Enquanto narrador, eu sou em certa medida personagem: não pode ser a minha voz, tem de ser a minha voz um pouco modificada. Falo muito baixo, não projecto a voz. Tomei isso de empréstimo do Marker, que nos filmes dele fala quase como se estivesse conversando ao pé do ouvido do espectador.”

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Anna Luiza Muller

No El País Brasil, Flávia Marreiro assinala, certeiramente, que “No Intenso Agora parece ser feito também para ser ouvido”. Mas acertar no tom foi um longo processo: “Devo ter gravado o texto inteiro, de cabo a rabo, umas 20 vezes, até encontrar uma versão que me satisfizesse. Nas dez ou doze primeiras, usei um truque: como tenho o hábito de correr na praia todos os dias, de manhã cedo, a uma hora em que não há quase ninguém, nessa época eu corria gritando. Gritava a plenos pulmões, como se estivesse no Engenhão [estádio do Botafogo]: gritava ‘golo!’, gritava a escalação do time [clube] do Botafogo, xingava o árbitro, o juiz de linha. Quando chegava à gravação, a minha voz estava inteiramente rouca. Ficava muito diferente e agradava-me mais, mas era muito desafinado, e ao fim de um tempo todas as pessoas que trabalham comigo me pediram para parar de fazer isso.”

No Intenso Agora começa com imagens de um filme amador, sem som, e sobre esse silêncio irrompe a narração, que se oferece de imediato na primeira pessoa, num tom que não é autoritário, mas discreto, melancólico, dubitativo.

“Em dado momento, houve um amigo meu que viu o filme e achou que a voz estava demasiado triste. ‘O filme é triste, não é preciso fingir que é triste’, disse-me ele. ‘E não é preciso gravar tudo no mesmo tom.’ Ele achava que eu ‘entregava’ uma melancolia desde o início, como se conduzisse a plateia a entristecer, sendo que no início a gente não sabe por que tem de ser triste.” Salles voltou ao estúdio de gravação para gravar mais uma vez o começo do filme — “com a voz um pouco mais projectada, falando um pouco mais rápido, tentando colocar uns estilhaços de luz, para não ficar muito sombrio”. “Só que o filme fala de uma intensa felicidade que se vai perder, e eu já entro nele sabendo disso.”

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Pequim, 1966, durante a Revolução Cultural VideoFilmes

Uma competência que se pode perder

No Intenso Agora é um filme que constantemente se desdobra no plano temático, quase como uma conversa que flui por vários caminhos. Ele cruza aspectos pessoais e políticos, mas o que lhe dá pungência são as imagens da mãe: os assuntos em que Salles toca desta vez são ainda mais íntimos do que em Santiago. “Estou falando de mim. Estou falando de coisas que me são muito próximas e que são dolorosas, e delas eu posso falar — tenho legitimidade para falar. Mas com um certo pudor, um certo limite. Por que é que eu não digo que a minha mãe se matou? Muita gente estranhou isso, gente que achou que este filme fracassava por isso. Gente que disse: para quem não sabe que a mãe dele se matou, a conexão com os suicidas de 1968, essa impossibilidade de seguir vivendo — nada disso fica claro.”

Para mim, não ficou claro: só descobri o suicídio da mãe ao pesquisar mais tarde. Aos meus olhos, no entanto, isso não diminui o filme.

“Acho que nem tudo precisa de ser dito. E está insinuado: para quem intui que isso talvez tenha acontecido, vai encontrar confirmação, porque logo depois da imagem da estação de metro Gaité, em Paris, que é o grande suicídio do filme, a primeira imagem que se vê é a da minha mãe, desfocada. De facto, foi o destino dela, o que ela decidiu fazer, mas não achei que tivesse o direito de dizer isso explicitamente. Seria uma maneira de tornar as conexões mais claras, mas por outro lado haveria o risco de uma certa chantagem sentimental, porque é uma coisa muito dramática, que traria à tona apelos sentimentais, falsas empatias... É como se comprasse a simpatia da plateia.”

Apesar de fazer filmes na primeira pessoa, há em Salles um elemento de reserva. Em Santiago, quase no final do filme, há uma cena em que o mordomo tenta dizer alguma coisa sobre si, mas é cortado, de forma quase abrupta, pelo realizador. “A informação sobre o suicídio não está no filme, em parte pela mesma razão por que no anterior não está a informação da homossexualidade do Santiago”, explica Salles. “Trata-se de uma decisão arbitrária, soberana, que eu tomo em nome da preservação do meu personagem. Quando Santiago foi rodado, em 1992, havia um ónus em dizer-se gay, e eu achei que não devia expor um senhor de 80 anos de idade, que não conhece bem o cinema, que sabe que está fazendo um filme mas não sabe a potência que isso tem, que acha no fundo que está falando com uma pessoa conhecida, um amigo, quando na realidade está falando para uma sala escura, cheia de gente que não o conhece.”

No caso da mãe, foi “uma questão de recato”, diz Salles. “A minha mãe foi entristecendo, e foi entristecendo aceleradamente nos últimos dois ou três anos. Para mim, não é um tabu, mas, para ela, preservar a imagem da mulher cativante, bonita, talvez fosse importante.”

“O assunto da minha mãe está ligado à questão central do filme, uma questão que é minha também: você tem uma competência para a felicidade e perde essa competência. Pode ser uma doença, uma desilusão amorosa, um fracasso profissional — existem inúmeras razões pelas quais se pode perder isso. Mas perdê-la de uma forma tão irrecuperável é uma coisa que me assombra. Até aos meus 12, 13 anos, eu via a minha mãe como uma pessoa vital, absolutamente solar, com uma curiosidade infinita em relação às pessoas. Era agregadora, sedutora — todos a achavam o máximo. Depois, ela perde isso. Para mim, foi sempre um mistério e é uma coisa que não quero manter ao largo, que quero trazer para perto de mim, para poder entender. O filme nasce dessa questão e chega naturalmente a 68, porque há uma coisa parecida em muitos dos militantes de 68.”

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Até há “três ou quatro anos”, antes de passar pelo processo de fazer o filme, a memória da mãe ainda era incómoda para Salles; hoje, deixou de o ser. “O filme talvez me tenha permitido voltar a falar dela até com admiração, com um carinho que eu já não tinha com ela em vida, e não tinha há muitos e muitos anos. Para ela, evidentemente, isso não significa nada, porque não está mais aqui, mas para mim é bom poder falar com mais intimidade sobre a minha mãe.”

Numa sessão em Lisboa, recorda o realizador, houve uma pessoa que reparou que, na parte final do filme, a três ou quatro minutos do fim, há um momento em que se refere a ela com a palavra “mamãe”, uma expressão que não usa antes — “ao longo do filme, ela é ‘minha mãe’”. “Uma espectadora perguntou se isso era intencional, se revelava uma aproximação. Não foi intencional, mas a resposta é sim: o filme permitiu-me dizer ‘mamãe’, que é uma forma de tratamento mais afectiva. Isso não foi pensado: aconteceu porque o filme permitiu que acontecesse. E isso — ganhar o direito de ser carinhoso com alguém — é um ganho.”

Lula nos intervalos da euforia

Em 1968, Salles (com seis anos) morava com a mãe e os irmãos em Paris. Em No Intenso Agora, ele pergunta várias vezes: será que a minha mãe foi capaz de se deixar levar pela curiosidade de ir ver as coisas de perto ou preferiu a prudência de ficar só observando a partir da varanda? Ao contrário da China, daquilo ela não gravou imagens. Ouvindo-o repetir esta pergunta no filme, tive a impressão de que podia estar a colocá-la a si mesmo. “Essa é uma óptima relação — uma relação precisa — em que eu nunca tinha pensado”, diz Salles.

“Para falar verdade, como cidadão nunca vivi um ‘intenso agora’. Fui às manifestações pelas eleições directas [em 1984], saía da faculdade com os amigos, mas naquela época a minha cabeça estava muito longe de tudo isso.” Mais tarde acompanhou a campanha que levou Lula à presidência do Brasil, mas absorvido na tarefa de tentar fazer um filme. “Estive na campanha o tempo todo, mas não vivi a experiência.”

“Como documentarista, eu não podia deixar de tentar registar aquele momento em que uma pessoa com a trajectória política e social do Lula vai tornar-se Presidente, rompendo 500 anos de sucessões oligárquicas. A eleição não podia passar e eu ficar lamentando não ter tentado fazer o filme.” Mas se Entreatos narra um momento de euforia, ele não o mostra pelo lado eufórico, antes “conta a grande história pela porta dos fundos.”

É um filme que Salles demorou quase dois anos a montar. Era muito difícil articular as cenas públicas com as cenas privadas: “Havia um choque entre elas, mas até aos últimos três meses eu não sabia porquê.” “As cenas públicas são o registo de alguma coisa que, quando vivido, tinha muito mais energia do que o registo dessa coisa, um pouco como qualquer imagem do Maracanã lotado ou do Carnaval carioca. As cenas de comício, de passeata, são uma prova de que aquilo aconteceu, mas são incapazes de transmitir a experiência. Os ‘entreactos’ são exactamente o contrário: intervalos entre momentos fortes — entre um comício e outro comício, a viagem entre uma cidade e outra — e que são vividos com muita desimportância. Quem viveu aqueles momentos provavelmente esquece-os três ou quatro dias depois; se eles ganham alguma relevância, é por causa do filme.”

Talvez Salles não faça filmes sobre a euforia; quando lho assinalo, ele sorri. “Mais: eu faço um filme sobre o maior político de massas que o Brasil produziu desde Getúlio Vargas e não aparece a massa. Não tem o elemento que faz do Lula a personagem que ele é.”

Como é que olha para o filme agora, no ocaso do lulismo? “Acho que o filme é melhor do que seria se eu tivesse optado pela versão convencional, que não teria nada de muito diferente daquilo que se pode ver nos programas de televisão da época. Em retrospecto, creio que as misérias e glórias daquilo que viria a ser o governo Lula podem ser identificadas ali em germe. O Lula é, essencialmente, um político da conciliação, e não é — nunca foi — um político da ruptura.”

O filme inclui uma cena em que Lula conta uma história dos seus tempos de metalúrgico. Um dia, está em casa e toca-lhe à porta o funcionário dos censos a perguntar-lhe quantos filhos tem e quanto de rendimento. Lula quer mostrar que tem carro, frigorífico, ar condicionado — mas isso o funcionário do instituto de estatística já não quer saber. “Eu acho esse episódio extraordinário”, diz Salles. “O que é que o Lula quer dizer com esta história? Quer dizer o orgulho que sente por ter conseguido entrar para a classe média — e classe média para ele significa o acesso a bens de consumo. O que vai fazer, como Presidente, é tentar criar um modelo de desenvolvimento que está essencialmente baseado no consumo. Ele não quer romper com o sistema, quer que todos entrem para dentro do sistema.”

“Não há nenhuma ideia de ruptura ali. Também não há nenhuma ideia de Brasil. São 40 dias de filmagem, ou próximo disso, e em nenhum momento ele tem um projecto de país. O essencial é que vai ser Presidente e é quase como se o símbolo bastasse, como se o Brasil se curasse pelo simples facto de ter finalmente deixado de lado a oligarquia e eleito um homem do povo.”

Em 1968 como em 2013

O ano de 1968 simboliza em No Intenso Agora o momento em que a ideia de felicidade é reivindicada no espaço público, de uma forma incondicional, intransigente, espontânea. Em Junho de 2013, o Brasil foi varrido por manifestações de rua que trouxeram à memória o Maio de 68, porque também começaram de forma inesperada, por um motivo aparentemente trivial (20 cêntimos de aumento na tarifa do autocarro), e cresceram de forma descentralizada, num movimento que a dada altura pareceu incontrolável.

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Maio de 68, Paris Iskra Credits

“Ficou desde o início muito claro para mim que a dinâmica de 2013 se assemelhava à de 68”, diz Salles. “Assemelhava-se, especificamente, num aspecto que está no filme. No próprio mês de Maio, [Jean-Paul] Sartre entrevista Cohn-Bendit no Nouvel Observateur: Cohn-Bendit insistindo que não era preciso programa, que o valor estava na espontaneidade, na negação de qualquer liderança e de qualquer direcção, e Sartre dizendo que isso é interessante, sim, mas que com isso as energias se dissipam muito rapidamente. Não sei se eu disse isso com todas as letras à Laís em 2013, mas era o meu sentimento. Havia o mistério de saber por que é que aquilo estava acontecendo, o que é que as pessoas queriam, mas o facto de elas não quererem nada que fosse muito claro, ou de quererem coisas muito contraditórias — de não indicarem a direcção do movimento — provavelmente faria com que ele durasse pouco.”

Vendo No Intenso Agora no Brasil, torna-se quase irresistível estabelecer uma analogia entre o arco que o filme descreve, da euforia ao retrocesso, e a experiência que o país atravessou nos últimos cinco anos. Mas Salles não procurou de forma deliberada essa relação com a actualidade política. “O mundo, por circunstâncias mais ou menos fortuitas, aproximou-se do filme. Não foi uma questão de presciência, não é que eu tivesse antevisto o que ia acontecer, mas é uma coincidência que acaba por nos favorecer.” Para o realizador, a possibilidade de que o filme comentasse 2013 só ficou clara no Festival de Berlim, quando, logo a seguir à primeira projecção pública, um brasileiro lhe colocou essa questão. “Ficou claro para mim ali, em Fevereiro de 2017, mas não estava claro antes, ao longo de todo o processo de fazer o filme. Entendi por que é que ele fez a pergunta e tentei pela primeira vez estabelecer as conexões com o que se passava no Brasil. Mas não foi 2013 que moldou o filme; ao contrário, o facto de eu estar fazendo o filme é que enformou a maneira como vi 2013.”

Não deixa de ser paradoxal que uma pessoa que tem um interesse tão grande por este tipo de momento colectivo, que está justamente a fazer um filme sobre isso, quando se desenrola à sua frente uma dessas raras ocasiões históricas, prefere abster-se. “Em 2013, de facto, eu não me envolvo: acompanho com uma distância quase clínica. Isto apesar de ter a Laís ao meu lado, saindo directamente do trabalho de montagem para as manifestações. Acho que para conseguir entrar na intensidade é preciso acreditar que aquilo vai ter uma consequência. Não dá para entrar numa coisa dessas sem a esperança de que vá durar. Eu admiro esse engajamento, esse optimismo, essa fé que não é atingida por um cepticismo: que não é atingida pelo sentimento de que as coisas são bonitas também porque são um pouco tristes, de que as coisas fracassam, e de que há uma beleza nisso. Talvez haja de facto algo de conservador nesse meu cepticismo, mas não se trata de uma adesão à imobilidade. O movimento que avança a duras penas é um movimento admirável, de que se pode gostar até mais do que do triunfo.”

Qual é, então, a relação de Salles com o “intenso agora”? “O que me dá essa sensação da intensidade é o estádio de futebol. É a pequena intensidade. O que tem em comum é o sentimento oceânico, que muita gente descreve nesses momentos: que você não é mais só você, que de certa forma se irmana com todos os que estão ali, e isso atravessa classe, atravessa género, atravessa idade. Todos os que vivem uma dessas grandes experiências colectivas falam nisso. Os jovens que estiveram nas manifestações de 2013 dizem: ‘Eu andava pela Avenida Paulista e ao meu lado havia uma pessoa que noutras circunstâncias eu jamais conheceria, mas naquele momento a gente estabelecia uma conversa que era uma conversa de iguais.’ Vai deixar de ser igual assim que parar, ou assim que a polícia vier dar porrada, porque vai dar mais porrada nele do que em você, porque você tem a cara bonitinha de classe média, você é branco e tem boa dentição. Nesse sentido não é igual — mas você tem a ilusão de que é, e essa ilusão é vivida como verdadeira.”

“Esse sentimento de ser parte de uma coisa que te transcende é uma das definições de uma experiência mística”, acrescenta Salles. “Isso o estádio de futebol deu-me. Para uma pessoa como eu, muito dentro de si mesma, esse é um momento em que consigo conectar-me. A coisa vem de fora para dentro. E nisso é importante eu ser botafoguense, porque é um time esquisito, de pouca gente, um time que tem muito mais derrota do que vitória. O sentimento de solidariedade não é com a multidão, não é com os vencedores, mas com pessoas que optaram por uma coisa que é difícil, que — nessa esfera, nesta cidade — é a mais difícil de todas, a que menos te dará retorno; e, no entanto, você é leal a isso. Essa é uma maneira muito racional de pensar num time de futebol, mas confesso que é o que me comove no Botafogo.”

A história dá a volta, e do que Salles fala, de novo, indirectamente, é da questão do privilégio, de um desejo de igualdade. “Eu vou para o estádio e sinto-me muito próximo — mas muito próximo mesmo — do desdentado de 82 anos de idade que está sentado na arquibancada ao meu lado. Numa sociedade de muitos ‘estamentos’, em que as barreiras são muito rígidas, o estádio de futebol é um lugar em que elas são dissolvidas. Em alguma coisa que é muito importante para mim, ele é igual a mim. E acho que isso é mais forte num time como o Botafogo. Porque é fácil ser Flamengo: você só tem de gostar de vencer, de ser o mais forte, de estar do lado do poder, do lado do dinheiro, e tudo isso é de certa forma natural. Optar pelo contrário é mais raro. Eu comecei a gostar de futebol na década de 1970, que foi o pior período da história do Botafogo: não tinha uma vitória, não tinha nada, enquanto o Flamengo tinha o Zico. E eu desprezo as pessoas que optaram pelo time do Zico: entre vietnamitas e americanos, é como você escolher os americanos.”