A cereja no topo do vale

Jerte dá nome a um rio, a uma vila e a um vale que no mês de Março se enche de milhões de flores de cerejeira. Dele se passa para a serra de Gredos, com as suas montanhas imponentes, antes de se descer para a comarca de La Vera, onde Carlos V passou os seus últimos dias, numa moldura também preenchida por esse quadro tão mágico e tão efémero que é a floração por esta altura do ano.

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Naquele momento, descendo umas escadas de pedra que não sabia onde me levavam e sentindo-me grato pela monumentalidade que Plasencia me proporcionava, recebi um sorriso bonito e espontâneo de uma senhora. Um sorriso que logo retribuí para não ficar em dívida para toda a minha vida.

Era um sorriso dócil que, não sei bem por que razão, me fez lembrar a minha avó materna, ao lado de quem tantas vezes me deitara e vendo, do outro lado do Douro, as luzes de Mesão Frio tremeluzindo através da moldura da janela.

Ela preparava-me o jantar — mas o jantar só estava pronto poucos minutos depois de eu chegar, vindo de autocarro, de casa dos meus pais, numa sexta-feira, mal as aulas terminavam.

Não sei se ela o fazia propositadamente mas quero acreditar que sim. A minha avó queria conceder-me tempo, não muito porque a meia escuridão do crepúsculo já se anunciava, para eu trepar a uma velha cerejeira da quinta e colher algumas das cerejas que conseguia alcançar, sem prestar qualquer atenção ao Marão, às vinhas que iam subindo e descendo nas margens do Douro, ao rio que já perdera a sua tonalidade dourada.

Percebia agora, percorrendo já a serpente de alcatrão que deixava Plasencia para trás, que se tratava de uma feliz associação entre sorrisos que me transportavam, em tempos diferentes, para uma das mais doces memórias da minha infância, tão vívida e tão preenchida de cerejeiras, de cerejeiras em flor, de cerejas.

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Sousa Ribeiro

Valle del Jerte — como soava bonito.

São milhões de flores de cerejeira, as colinas vestidas de branco, como outras tantas noivas a caminho de um altar, o esplendor da natureza decorando o Norte da província de Cáceres, desde o Valle del Jerte até à comarca de La Vera, pelo meio de aldeias e vilas encantadoras, numa existência que a vida já quase não contempla, toda uma riqueza paisagística que envolve o viandante numa profunda calma.

São onze os municípios que formam o Valle del Jerte, suspensos no tempo, com as suas gentes vivendo sem pressas, quase adormecidas, como alguém que nada mais espera do que ver, a partir de meados de Março e durante os primeiros dias de Abril, todo este território, situado apenas a duas horas de carro de Madrid ou a pouco mais de 80 quilómetros de Cáceres, cobrir-se como um manto branco — é assim o feliz Valle del Jerte.

O aroma é especial.

A floração manifesta-se primeiro nas zonas mais quentes do vale em forma de V e, rapidamente, estende-se às zonas mais altas e frias, numa altura em que nas primeiras já não há rasto de flor, a não ser no solo.

Jerte é também o nome de um rio, cuja toponímia tem, alegadamente, origem na palavra árabe xerete, uma alusão à pureza das suas águas. Dele falam, igualmente, todos os que o designam como o Valle de Plasencia ou mesmo apenas o valle, como é mais conhecido entre a população de Cáceres.

De uma forma ou de outra, com esta ou com aquela designação, o Valle del Jerte destaca-se em toda a província pelo clima de que desfruta ao longo do ano, beneficiando da sua situação geográfica nas vertentes das serras de Guadarrama e Gredos, que, como pais protectores, servem de barreira natural aos ventos gelados castelhanos — na verdade, o vale goza de um microclima que fecha todas as portas aos rigores do Inverno.

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O espectáculo de cor está agora diante dos meus olhos. Há quem fale de um milhão de cerejeiras.

As aldeias do vale

É difícil desprender o olhar.

O Valle del Jerte esconde segredos, aprisiona o olhar e os sentidos. Uma vez ou outra, apetece-me escutar o borbulhar da corrente das águas que correm ao meu lado. Mas delas não sai nem um murmúrio, um queixume, correm silenciosas como alguém que apenas procura exprimir um sinal de tristeza pela falta de chuva que teima em não cair sobre o vale feliz.

Faço um pequeno desvio quando já se anuncia outra localidade. Não é um desvio espontâneo. Estava previsto. E, mesmo com pouca água, não deixo de me seduzir pela Garganta de los Infiernos, uma reserva natural criada em 1994 e um dos lugares mais apetecíveis de toda a província de Cáceres. Por estes lados, não é o tamanho, a extensão, que cativa o viajante. Na verdade, não são mais do que 6800 hectares. O que realmente agarra o turista, como se percebe ao fim de umas horas, é a diferença de altitude, a facilidade de chegar a pouco mais de 600 metros, a cota mais baixa, e a surpresa de alcançar, com tempo, os 2342 metros, onde está situado o pico de Angostura.

Este desnível, tão pronunciado, desvenda diferenças e produz uma ampla variedade em termos de fauna e de flora. Sem pressas, num tempo ou noutro, o viandante pode deparar-se, durante o seu trajecto solitário, com aves de rapina, abutres, águias-reais, açores e falcões, num cenário belo onde não faltam a cabra-montês e o javali, enquanto nos rios, nas partes mais frias e oxigenadas, abundam as trutas.

A errância, que pode começar num dos três centros de interpretação (neste caso em Jerte, mas há outros dois, um em Tornavacas e outro em Cabezuela del Valle), enfeitiça e essa sensação, de quietude, de silêncio, tão tranquila e tão apaziguadora para o espírito, exacerba-se à medida que os meus passos rompem caminho, ao longo de um trilho bordejado de carvalhos e castanheiros, até desaguarem em Los Pilones, onde a erosão se encarregou de formar depressões circulares que são vulgarmente designadas por marmitas gigantes. A magia prolonga-se quando, uma vez cruzada a ponte do sacristão, se chega a um refúgio onde se pode passar a noite e a vontade de regressar ganha dimensão quando se percebe que alguns dos trilhos circulares nos levam à Garganta del Collado de las Yeguas e à Puente Nuevo, até Tornavacas ou de volta a Jerte.

Jerte não é apenas o nome de um vale. Ou de um rio. É também de uma vila com pouco mais de 1300 habitantes, considerada a capital desse vale por onde corre esse rio que é o escultor do território e onde o mau humor do clima quase nunca se faz sentir, privilegiando a presença de hortas, de prados e o crescimento de árvores de fruto.

Mas a história de Jerte nem sempre foi pacífica. A pacata vila foi arrasada pelas tropas francesas durante a Guerra da Independência, uma derrota que não a impede de mostrar, nos dias de hoje, uma arquitectura tradicional popular que se revela nas suas casas elegantes, com as suas traves e as suas varandas de madeira, o barro e a pedra de cantaria, tão visíveis na sua pitoresca Plaza Mayor, com as suas colunas que funcionam como portas de acesso para saborear os prazeres gastronómicos e alguns dos melhores vinhos da região.

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Sousa Ribeiro

É o que eu me decido a fazer ao início da tarde, uma tarde com pequenas nuvens, como carneiros passeando-se por um céu azul e sonhador, não sem antes passear pelo bairro de los Bueyes, com as suas casas brasonadas, as únicas que sobreviveram ao saque perpetrado, em 1809, pelas tropas francesas comandadas pelo general Soult — Jerte esteve a arder durante uma semana.

Varanda para o Jerte

O Valle  del Jerte está quase a despedir-se de mim, a cortina não tarda a esconder o palco onde esta peça, exclusivamente branca, se foi desenrolando, este cenário tão fértil, tão harmonioso, de uma beleza singular, este presente que é oferecido de forma gratuita a todos os que amam a natureza. O dia avança, determinado, milhares de flores de cerejeira foram derrubadas, são partículas de uma vida incipiente que se entregam ao abandono da paisagem, o sol ainda brilha, agora menos, as sombras estendem-se, um manto de sombras tranquilas que veste um outro manto que a cada dia se torna menos branco.

Tornavacas. Também soa bonito. Próximo da povoação nasce o rio Jerte. É este o meu último refúgio no vale. A serra aguarda-me.

Para quem vem do norte, o que não é o meu caso, Tornavacas, a quase 1300 metros de altitude acima do nível das águas do mar, é a porta de entrada no Valle del Jerte. Era por aqui que passavam, num tempo que parece estar tão distante, os grandes rebanhos provenientes da meseta castelhana.

Sento-me por uns instantes numa esplanada, envolvido pelo olhar melancólico de Tornavacas. Não corre um fio de vento. Se prestar mais atenção à panorâmica, se deixar de pensar nas duas cerejeiras da minha avó que mais recordações me trazem, naquela quinta onde havia tantas, observo, à distância, como uma sentinela, impondo-se sobre a serra de Candelario, o Calvitero, subindo quase até aos 2400 metros, o que lhe confere o estatuto de pico mais alto da Extremadura. 

Mas concentro-me em Tornavacas, o lugar onde reinava o senhorio dos Álvarez de Toledo e onde pernoitou Carlos V, o monarca tão intimamente ligado a estas terras como eu às da minha avó materna, para onde a memória, mais do que os olhos ou o corpo, resvala a cada momento. Numa das casas de Tornavacas pernoitou o rei e a zona antiga da vila ainda exibe, aqui e acolá, velhas mansões fidalgas com as suas fachadas rasgadas por vigas de madeira que nunca estão muito longe da bonita igreja barroca do século XVI que presta culto à Virgen de la Assunción e onde o Cristo del Perdón é mais venerado do que qualquer ícone onde planto os meus olhos antes de descansar.

Sim, a serra espera-me. Depois dela, La Vera.

Mas não podia, ao longo do meu trajecto, ignorar o Puerto de Tornavacas, essa varanda em plena divisória entre as águas do Douro e do Tejo, com uma vista soberba sobre o vale de Jerte. Neste recanto, entre a serra de Gredos e de Béjar e Candelario, muitas histórias de nómadas e de transumância foram escritas, outras páginas falam da presença de romanos, cuja herança ainda é visível em alguns trechos da calçada que desce para Tornavacas, pela qual haveria de errar, muitos anos mais tarde, durante a sua última viagem, iniciada em finais de Setembro de 1556, em Laredo, na Cantábria, o imperador Carlos I de Espanha e V do Sacro Império Romano-Germânico, ao encontro de La Vera por um trilho que hoje lhe presta tributo.

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Espinha dorsal

A estrada sobe, como que movida pelo forte desejo de tocar aquele céu de um azul que fere a vista, logo depois corre plana, pouco acima dos mil metros de altitude quando chego a El Barco de Ávila, com a sua ponte românica unindo as margens do rio Tormes, com o seu castelo de Valdecorneja dominando ambos e a própria povoação com cerca de 2500 habitantes. A estrada insinua-se agora pelo meio de um vale, ladeada pela vegetação com as suas bonitas cores e, mais para lá, recortando o horizonte, as montanhas, colossais, verdadeiros gigantes de granito. É a serra de Gredos, a espinha dorsal de Espanha, como a definem geólogos, com os seus picos que raramente baixam dos 2000 metros e com um, o mais alto de Castela e Leão, a aproximar-se perigosamente dos 2600 — o de Almanzor, cuja toponímia faz referência ao lendário caudilho cordovês Abi Amir Muhammad, mais conhecido por Al-Mansur, o vitorioso, que, em finais do século X, mantinha em alerta máximo a Espanha cristã, tomando e saqueando, até à sua morte, em 1002, cidades como Barcelona, Pamplona e mesmo Santiago de Compostela.

Aos pés do Almanzor, exibe-se a Laguna Grande, onde o silêncio apenas é quebrado pelo vento e onde a solidão só não é total porque, de quando em quando, uma cabra ou uma ave preenchem este quadro tão harmonioso, com uma das faunas e floras mais importantes de todo o país. A serra de Gredos, declarada parque natural, convida à exploração dos seus recantos mais íntimos, das suas cascatas, das suas piscinas naturais, da Garganta del Rey, na antecâmara das Cinco Lagunas, das suas aldeias tão impregnadas de serenidade.

Algumas, ainda que com contornos pouco definidos, já se avistam de Puerto del Pico, a quase 1400 metros de altitude, com uma panorâmica sublime que também abarca uma calçada romana, uma das mais bem conservadas de Espanha, como uma serpente que rivaliza com a outra serpente de alcatrão que me conduz até ao vale, ao encontro do castelo de Mombeltrán, mandado levantar por Beltrán de la Cueva, duque de Albuquerque, no século XV.

Daqui, lanço um derradeiro olhar ao Puerto del Pico, às majestosas montanhas da serra de Gredos e parto à descoberta de La Vera.