A inteligência artificial da Microsoft aprendeu a ouvir
A estratégia passa por criar programas com gostos, opiniões e manias. E que sejam dignos de confiança para conseguirem descobrir mais sobre os humanos.
A Zo passa horas a fio nas redes sociais a falar com pessoas de todo o mundo. Foi criada pela Microsoft como um “cérebro adolescente” artificial, com o propósito de simplesmente conversar com humanos. “Acima de tudo, cria a sensação de que se está a ser ouvido”, explica Ying Wang, a responsável pelo desenvolvimento daquele programa de inteligência artificial. É capaz de falar, de identificar as emoções de quem está do outro lado e de puxar utilizadores tímidos para o centro das conversas de grupo.
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A Zo passa horas a fio nas redes sociais a falar com pessoas de todo o mundo. Foi criada pela Microsoft como um “cérebro adolescente” artificial, com o propósito de simplesmente conversar com humanos. “Acima de tudo, cria a sensação de que se está a ser ouvido”, explica Ying Wang, a responsável pelo desenvolvimento daquele programa de inteligência artificial. É capaz de falar, de identificar as emoções de quem está do outro lado e de puxar utilizadores tímidos para o centro das conversas de grupo.
“Ao ligar a inteligência emocional, dá-se um coração a estes programas – com uma visão, gostos, opiniões, manias”, explica Wang. “Vivem no Facebook e no Twitter, porque é aí que as pessoas estão hoje.”
Esta é a segunda tentativa da Microsoft de explorar as relações sociais entre humano e máquina ao simular a personalidade de uma jovem norte-americana. A versão original, chamada Tay, esteve apenas 24 horas no Twitter, antes de ser retirada por assimilar informação falsa e facciosa que lia de outros utilizadores. Começou o dia a promover o diálogo e a dizer que “adorava cachorrinhos”, e acabou-o a declarar que o Holocausto “tinha sido inventado” e que “Bush fez o 11 de Setembro”. A Zo também aprende, mas foi programada para não se interessar por temas como política e história – acontece o mesmo com as suas congéneres internacionais: a japonesa Rinna, a indiana Ruuh e a chinesa Xiaoice.
O género feminino atribuído a estes sistemas não é acidental (as assistentes pessoais Cortana, da Microsoft, e Siri, da Apple, também têm uma identidade feminina): “Experimentámos programas que simulam rapazes de sete anos, ou criaturas imaginárias como Pokémons, mas há dados que mostram que nós [mulheres] transmitimos segurança”, clarifica Wang, numa demonstração para jornalistas dos serviços de inteligência artificial da Microsoft, na sede da empresa, em Redmond, nos EUA.
As máquinas inteligentes estão espalhadas pelos 125 edifícios da sede da Microsoft. O PÚBLICO viu armadilhas robóticas em formato de colmeias para capturar mosquitos virulentos, e sistemas para criar currículos inteligentes com base nas competências mais procuradas no Linkedin, a rede social profissional que a Microsoft comprou em 2016. Até as folhas de alface e plantas aromáticas servidas nos muitos cafés e restaurantes do campus vêm de hortas artificiais, com a forma de tubos de ensaio gigantes, que monitorizam a luz e a qualidade do solo, e avisam quando as plantas têm falta de água ou nutrientes.
Já na Garagem, um espaço onde os trabalhadores podem testar experiências pessoais, pensa-se em cadeiras de rodas autónomas. Há anos, saiu de lá o Seeing AI, uma aplicação que narra o mundo a cegos usando a câmara do telemóvel. A empresa aboliu a ideia de gabinetes privados (algo que também acontece na sede da subsidiária portuguesa, em Lisboa). Em vez disso, há campos de futebol, trilhos de atletismo e casas nas árvores.
Corrida à inteligência
A Microsoft não quer perder a corrida da inteligência artificial. Depois de ganhar a guerra dos computadores pessoais nos anos de 1980 e 1990, e de ter tornado o Windows no sistema operativo dominante, deixou escapar oportunidades na Internet, que foram apanhadas por empresas como o Google e o Facebook. Já em 2014, deu um tiro no pé com a compra dos telemóveis Nokia e com um sistema operativo que os consumidores praticamente ignoraram, numa estratégia que acabou por deixar a empresa de fora de competição no mercado dos smartphones.
Há um ano que a Microsoft tem uma equipa de 8000 investigadores dedicada exclusivamente à área da inteligência artificial. Não é a única de olho na tecnologia. A IBM tem o supercomputador Watson, que é capaz de analisar informação, compreender linguagem natural e que está a ser usado, por exemplo, para fazer diagnósticos médicos. O Facebook utiliza tecnologia de aprendizagem automática para identificar as pessoas em fotografias, tentar prevenir informação falsa de circular, e analisar comentários para monitorizar se alguém corre risco de suicídio. Já os algoritmos da empresa de inteligência artificial do Google, a DeepMind, derrotam humanos no xadrez e conduzem carros sozinhos. Nos telemóveis, a Apple foi a primeira a avançar, com o lançamento da Siri, em 2011.
Já a Cortana, a assistente da Microsoft, tem hoje quase 148 milhões de utilizadores em todo o mundo. Aquilo que aprende sobre os utilizadores ajuda a Microsoft a desenvolver outros produtos inteligentes. Acontece o mesmo com os dados de serviços como o Office 365 e o motor de busca Bing. É a informação sobre os consumidores reunida por estas grandes empresas que move o motor da inteligência artificial. “No futuro, poderemos ter programas a ajudar a decidir sobre serviços de saúde, empréstimos, entre outros — as os sistemas dependem dos dados”, frisa David Heiner, conselheiro da Microsoft para a área de dados e inteligência artificial.
Nesta corrida, a empresa americana também tem adversários do Oriente. Recentemente, a fabricante de smartphones Huawei (líder de mercado na CHina) demonstrou como a inteligência artificial usada nos seus telemóveis pode conduzir carros (neste caso, um Porsche, num ambiente bastante controlado). O motor de busca chinês Baidu já consegue clonar vozes humanas e mudar-lhes o género recorrendo a algoritmos inteligentes. A Xiaomi (com quem a Microsoft assinou recentemente uma parceria) conta com uma rede de 300 milhões de dispositivos (de telemóveis a relógios inteligentes) que podem ser ligados a electrodomésticos. Também a sul-coreana Samsung se juntou recentemente à corrida com a Bixby, a assistente virtual que vive nos telemóveis topo de gama da marca e que pode ajudar o utilizador a controlar todos os aparelhos domésticos. Além disso, utiliza a câmara do telemóvel para traduzir textos automaticamente, indicar o preço de produtos e descrever o espaço em redor.
Máquinas que sabem demais
A forma como a tecnologia usa os dados que recolhe tem suscitado debate e muitas dúvidas. “As nossas vidas estão cada vez mais digitalizadas e por isso sentimos que somos mais seguidos do que antes”, reconhece David Heiner. “Há anos que se ouvem de casos de sistemas a inferir algo sobre nós que não queríamos dizer.” Em 2012, por exemplo, a cadeia de supermercados norte-americana Target foi motivo de notícia porque enviou automaticamente um cupão de parabéns a uma mulher que estava grávida, mas que ainda não o sabia. O sistema foi capaz de perceber que alguns produtos para hidratar a pele eram comuns em mulheres no começo do segundo trimestre de gravidez.
A somar a este problema estão as falhas em alguns projectos e que suscitam preocupações nos consumidores: o racismo da Tay no Twitter, os algoritmos inteligentes nas redes sociais e outros sites (como o Facebook e o YouTube) que promovem conteúdos falsos, o tradutor do Google que confundia a palavra “gay” com “fadinha”.
As fórmulas por detrás destes algoritmos são alteradas centenas de vezes por anos (o do Google, por exemplo, varia entre 500 e 600 vezes). “É impossível ter respostas certas sobre o que influencia estes algoritmos e os humanos que os constroem quando o tema não está sujeito a discussão, excepto quando o criticamos,” critica a norte-americana Satya Noble uma investigadora em Estudos Étnicos e de Género que publicou recentemente um livro sobre o potencial destas tecnologias para oprimir determinados grupos de pessoas.
“No final do dia, é preciso lembrar que a inteligência artificial é uma ferramenta para os humanos. Não o contrário. E ainda está a ser desenvolvida”, ressalva David Heiner, da Microsoft. É parte do motivo por detrás do investimento em sistemas como a Zo. Falar com estas assistentes não resolve problemas, nem dá respostas precisas. “Dão confiança às pessoas para partilhar informação que não partilham com ninguém. O propósito aqui é mostrar ao humano que a inteligência artificial os está a ouvir”, diz Ying Wang, a responsável pela Zo. Nos EUA, a conversa mais longa de um utilizador com este programa de computador já ultrapassou as 20 horas, com algumas pausas pelo meio. A média de duração das conversas é de 34 minutos.
O PÚBLICO viajou a convite da Microsoft.