Resistirá Marcelo a interferir no PSD?
Dois anos depois de o Presidente da República ter tomado posse, o xadrez político mudou no país. Com o maior partido parlamentar em turbulência, que papel pode e deve desempenhar o chefe de Estado?
Marcelo Rebelo de Sousa cumpre dois anos de mandato numa altura em que todo o xadrez político mudou no país. Com a entrada em cena de Rui Rio e a aproximação do maior partido da oposição ao PS, PSD e CDS afastaram-se além do que era expectável, ao mesmo tempo que BE, PCP e Verdes, partidos que apoiam o Governo no Parlamento, tendem a radicalizar exigências para forçar uma clarificação que os socialistas não lhe querem dar neste momento. Se a estabilidade deste Governo não está posta em causa, certo é que está lançada a instabilidade quanto ao futuro.
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Marcelo Rebelo de Sousa cumpre dois anos de mandato numa altura em que todo o xadrez político mudou no país. Com a entrada em cena de Rui Rio e a aproximação do maior partido da oposição ao PS, PSD e CDS afastaram-se além do que era expectável, ao mesmo tempo que BE, PCP e Verdes, partidos que apoiam o Governo no Parlamento, tendem a radicalizar exigências para forçar uma clarificação que os socialistas não lhe querem dar neste momento. Se a estabilidade deste Governo não está posta em causa, certo é que está lançada a instabilidade quanto ao futuro.
“A estabilidade não é não acontecer nada, mas sim saber o que vai acontecer a seguir”, diz um dos antigos assessores presidenciais - e o mais experiente, mas que pede para não ser identificado - a quem perguntámos quais os maiores desafios que se colocam ao Presidente da República daqui para a frente, naquela que deverá ser a fase mais exigente do seu mandato. A questão que se coloca ao chefe de Estado, como garante da estabilidade política, é essa, acrescenta este analista: o sistema político está desequilibrado, com a direita a acentuar a tendência de desagregação e a esquerda a puxar o PS, esvaziando o centro. “Se não houver uma alternativa clara”, como tanto tem pedido o Presidente, “o sistema está distorcido”. E o Presidente “deve intervir”. Deverá?
Comece-se pelo diagnóstico. Os primeiros dois anos de exercício da função foram de apaziguamento e desdramatização da situação política, social e económica, mas também de redefinição do papel do Presidente da República, em termos de o colocar no centro da vida política, como actor e não como mero espectador. Se há crítica que lhe foi sendo feita foi a de andar “com o Governo ao colo”.
“Discutível era o comportamento dos tempos iniciais em que havia exageros de proximidade com o Governo”, diz Jorge Reis Novais, colega de Marcelo na cátedra de Direito Constitucional na Universidade de Lisboa e antigo assessor do Presidente Jorge Sampaio. “Quando um Presidente se aproxima muito do Governo, está a distanciar-se das oposições”, avisa.
As coisas mudaram a partir do Verão passado: “O distanciamento foi muito visível no caso dos incêndios e de Tancos”, constata Reis Novais, considerando que “a distância em si é positiva, permite-lhe uma intervenção supra-partidária”. Que só pecará por tardia, na opinião de Joaquim Aguiar, assessor político de Ramalho Eanes e Mário Soares: “Este Governo tem de estar sob vigilância desde que se formou e assim deverá continuar até ser substituído”, pois além de ser minoritário, não é “congruente”: “É um Governo que tem de negociar, em cada medida de política, com os seus apoiantes, que passam a ter um poder desproporcionado em relação ao seu peso eleitoral e transformam esse Governo numa marioneta”.
Entretanto vieram as autárquicas, a estrondosa derrota do PSD e a saída de cena, lenta, de Passos Coelho, a quem Marcelo já não via futuro político para encarnar a “alternativa forte” que repetidamente pedia para garantir a saúde do sistema político. A nova liderança não será a que o antigo presidente do PSD mais desejaria, mas, como diz Joaquim Aguiar, “o Presidente trabalha com a realidade efectiva das coisas, usando os êxitos e os fracassos para abrir espaços e oportunidades por onde possa fazer avançar uma trajectória estratégica consistente”, qual agricultor que, “com a enxada, abre os sulcos na terra por onde a água irá correr”.
O problema foi o que veio a seguir: a sucessão no PSD, em vez de reforçar o partido, cedo começou a apresentar sinais de crise interna que tardam a desaparecer. Em público, o Presidente reduziu a turbulência interna no PSD a questão “acessória” e defendeu que ainda havia tempo para os dois maiores partidos celebrarem alguns consensos de regime, um dos seus desígnios de sempre: "É agora que temos de pensar, de falar, de juntar esforços, de promover convergências, de definir e tentar fazer vingar objectivos. Não é daqui a meses, em pleno ano eleitoral de 2019, quando já for tarde".
Esse objectivo “está prestes a ser alcançado, ou pelo menos a ter algum grau de concretização” - constata Luís Marques Mendes, amigo, compagnon de route e conselheiro de Estado de Marcelo Rebelo de Sousa – “e isso, que era matéria do seu programa político, é um ponto muitíssimo positivo para o Presidente”. Mesmo que sejam consensos de “serviços mínimos”, vêm numa lógica de “semear para colher”, diz. E representa um ganho em relação à liderança de Passos Coelho do ponto de vista de Belém, pois “antes não havia pontes de diálogo”.
Intervir no PSD? Do “nem pensar” ao “novo partido”
Mas a discrição presidencial sobre a situação interna no seu partido de origem, vinda de quem habituou o país a comentários, mais ou menos brincalhões, sobre os acontecimentos políticos, denota mais preocupação que desprendimento. Ouçamos os nossos comentadores: “O actual nível de conflito na área do PSD não promete nada de bom”, analisa António Costa Pinto, cientista político com obra de referência na análise da função presidencial. Embora pense existir pelo menos um ponto em que o interesse do Presidente coincide com o da actual direcção do PSD – “A sobrevivência, vide, crescimento eleitoral do PSD na conjuntura pós-Passos Coelho”, - a questão é saber se Marcelo resistirá a intervir na crise interna do partido.
E aqui, as opiniões não podiam ser mais divergentes. Da posição mais conservadora de Jorge Reis Novais – “O facto de haver uma crise em desenvolvimento no PSD não o deve incentivar a intervir, o Presidente não deve ter intervenção nenhuma na vida dos partidos, sempre que aconteceu correu mal” – à mais radical sugerida pelo antigo assessor que pediu o anonimato – “O Presidente tem uma grande autoridade à direita e pode acelerar ou travar os acontecimentos”, e se “a desagregação à direita se acentuar, tem várias alternativas, das quais a mais extrema é criar um novo partido de direita” – vai um mar de possibilidades.
Mas todos se recordam das más experiências das tentativas de interferência do Presidente Mário Soares no PS e da intervenção de Eanes com o PRD: “O registo histórico não mostra que os conselhos presidenciais tenham muita eficácia junto dos governos e dos partidos, como também não mostra que as interferências presidenciais nos próprios partidos tenham sucesso”, lembra Joaquim Aguiar, acrescentando que “o Presidente não tem partido nem há maioria presidencial que fosse constituída pelos partidos que apoiaram a sua eleição”.
Também por isso, Marques Mendes é peremptório: “O Presidente nunca vai intervir no PSD, isso é um risco enorme e ele tem experiência política suficiente para saber que não o pode fazer”. Mas não só por isso. É que também “não tem nenhuma vantagem nisso”. “Independentemente do que está a suceder, nada disso altera a capacidade de influência do Presidente, que não está condicionado nem manietado de nenhuma forma”, frisa.
Mas este antigo líder social-democrata deixa um conselho ao actual: “Rui Rio teria vantagem em melhorar a sua relação política com o chefe de Estado, diferente da que teve Passos Coelho. Até para não deixar que o monopólio dessa boa relação fique nas mãos de António Costa”.
Daqui até às legislativas, no Outono de 2019, Marcelo deverá ser, então, um Presidente mais contido do que foi nos dois primeiros anos de mandato – como aliás já se nota desde o início do ano. Mas isso não significa que deixe de estar no centro da vida política, de uma forma ou de outra, garante Costa Pinto: “Não é de crer que se transforme num actor político mais discreto, até porque se trata de um estilo e não apenas de uma estratégia conjuntural”.
Significará apenas que possa ser mais reservado nos comentários sobre as questões “acessórias”, e ser ainda mais pedagógico, como sugere Joaquim Aguiar: “No período que antecede um acto eleitoral, o maior desafio do Presidente é fornecer aos eleitores as informações relevantes para que eles façam uma escolha adequada e ajustada às possibilidades, sem cair na demagogia dos desejos” das campanhas eleitorais. Seja como for, os maiores desafios deste mandato estão ainda agora a chegar.