O corno operático
O que faz um coração partido? Cria canções country barrocas, violinos a cair em fundo e guitarras slide a desenhar o contorno de um corpo que já é só fantasma: Marlon Williams, Make Way For Love
Cada homem carrega a sua própria tragédia e a de Marlon Williams chama-se Aldous Harding: Marlon tem o coração partido e que pode um homem de coração partido fazer? Vestir um fato e ir para o trabalho fingindo ser uma pessoa digna e preocupada com os outros? Que disparate, toda a gente sabe que nestas circunstâncias se criam canções country barrocas, com violinos a cair em fundo e guitarras slide a desenhar o contorno de um corpo que já é só fantasma.
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Cada homem carrega a sua própria tragédia e a de Marlon Williams chama-se Aldous Harding: Marlon tem o coração partido e que pode um homem de coração partido fazer? Vestir um fato e ir para o trabalho fingindo ser uma pessoa digna e preocupada com os outros? Que disparate, toda a gente sabe que nestas circunstâncias se criam canções country barrocas, com violinos a cair em fundo e guitarras slide a desenhar o contorno de um corpo que já é só fantasma.
É tudo tão estranho em Make Way For Love, tudo tão impossivelmente belo que apetece agradecer à talentosa Harding por ter levado Marlon ao desespero que lhe permitiu criar canções tão díspares como a country-indie quase pop da gloriosa What’s chasing you, baladas teatrais ao piano, propícias a encerrarem a noite num bar de sofás forrados a sífilis (Love is a terrible thing) ou Party boy, que soa aos Suicide a fazerem uma versão de Chris Isaak.
Que género é este, que música é esta? Indie-rock não é certamente e a country nem sempre bate assim. Can I call you, outra balada negra ao piano, vai em quase três minutos quando um acordeão a lança para um universo próximo da chanson — podia ser um lado B de Roy Orbison, esquecido entre o divórcio e a morte da mulher; Love is a terrible thing, de novo ao piano, tem um solo de sintetizador que foi novidade na década de 70. Que música é esta?
É tudo tão estranho em Make Way For Love, estranho porque já não se fazem discos assim: que estão num só sítio (a country), têm uma assinatura (o crooning) e no entanto tentam ser tudo (indie-rock, chanson, pop). Os discos, hoje, têm de ter vídeos com mulheres a rebolar, produtores conhecidos a desenhar beats, arrancar com dez segundos orelhudos para o ouvinte não mudar de faixa no Spotify, têm de falar em empowerment e ter uma visão do mundo em que o Bem está ali e o Mal acolá.
Make Way For Love está-se marimbando para tudo isso, vem com volteios melódicos que não se usam desde a década de 50, um crooning teatral e sofrido, cordas luxuosas por cima de pobres guitarras acústicas, vem do coração dos honky-tonks americanos falar daquilo que nenhum ser humano, à excepção de Dolly Parton, sabe: a dor amorosa. Aquelas cordas em The fire of love, aqueles órgãos em The fire of love — era este o som que Lynch queria de Badalamenti e só agora o pudemos ouvir.
Quase a chegar ao fim surge a própria Aldous Harding, em Nobody gets what they want anymore, um extraordinário dueto que inclui flautas e uma batida saída dos anos 60; no refrão há papapas e Marlon canta: “What am I gonna do when you’re in trouble / And you don’t call out for me?”. O mundo só valerá a pena quando Nobody gets what they want anymore for um êxito e passar na rádio de manhã à noite. É o meu desejo — não vai concretizar-se mas é o mais bonito dos desejos.