Um cancro levou a senhora
A cultura em Coimbra está tão doente como a malha urbana à beira rio.
São tristes as recentes notícias de fecho de livrarias nos centros urbanos: a Leitura no Porto, a Pó dos Livros em Lisboa, a Miguel de Carvalho em Coimbra. São, como José Pacheco Pereira já assinalou (PÚBLICO, 3/3/2018), sintomas do alastramento do que ele chama “nova ignorância”. A dolorosa verdade é que cada vez se lê menos e que se lê cada vez pior. Entre os jovens, o que se lê são snapchats e legendas, mostrando que a escola não tem estado a cumprir o seu dever.
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São tristes as recentes notícias de fecho de livrarias nos centros urbanos: a Leitura no Porto, a Pó dos Livros em Lisboa, a Miguel de Carvalho em Coimbra. São, como José Pacheco Pereira já assinalou (PÚBLICO, 3/3/2018), sintomas do alastramento do que ele chama “nova ignorância”. A dolorosa verdade é que cada vez se lê menos e que se lê cada vez pior. Entre os jovens, o que se lê são snapchats e legendas, mostrando que a escola não tem estado a cumprir o seu dever.
Em Coimbra existem circunstâncias particulares, que se juntam ao fenómeno do declínio das mentes que Lisboa e Porto também exibem. Ao contrário destas cidades que possuem centros históricos reabilitados e transbordantes de vida, com a ajuda não só do boom turístico recente mas também e desde há algum tempo de movimentos culturais dinamizados em boa parte pelas autarquias, Coimbra tem o seu centro histórico — a Baixa — praticamente morto. Não só o turismo está quase todo canalizado para a Universidade, como a câmara municipal não tem investido na reabilitação urbana nem numa política cultural que leve as pessoas ao centro. O livreiro Miguel Carvalho, em declarações à Lusa, percebeu bem o que lhe aconteceu: “‘Casei com uma senhora chamada Cultura, em Coimbra, durante 20 anos, mas um cancro levou a senhora e eu agora vou enterrá-la e vou para outro sítio’, sublinhou, constatando, para além de um ‘desprezo e desrespeito para com o centro histórico’, uma realidade de ‘anticultura’ em Coimbra.”
O declínio da Baixa tem sido gradual, mas acentuou-se dramaticamente nos últimos anos. Moro em Coimbra e, tal como os meus conterrâneos, é raro deslocar-me à Baixa por ser deprimente lá ir. Quem não acredite que faça um passeio como eu fiz no passado sábado de tarde, no qual só encontrei abertos dois ou três cafés (parei nesse oásis que ainda é o Santa Cruz) e duas ou três lojas de recordações (recordo-me delas pela negativa: como é possível que se venda tão atroz bugiganga?). A Baixa está mesmo em baixa: as lojas têm fechado dia após dia; as ruas estão degradadas e sujas; o casario está dilacerado por um grande tumor que é o buraco aberto para o Metro Mondego passar. Quando dizem que está tudo bem, os governantes da cidade ou estão a ser cínicos ou estão a revelar a sua incapacidade de ver a realidade que está diante dos olhos de todos. Falta-lhes mundo, não devem viajar, nem mesmo no território nacional onde há, para além de Lisboa e Porto, várias cidades onde dá gosto ir (Guimarães, por exemplo). A Coimbra ainda falta o básico: estações ferroviária e rodoviária funcionais, uma política de mobilidade inteligente, praças e parques cuidados, limpeza urbana, restauração moderna e lojas atraentes (naturalmente, há excepções), percursos convidativos.
Por seu lado, a cultura em Coimbra está tão doente como a malha urbana à beira rio. Assim como não há um plano de recuperação do centro histórico, também não há uma ideia directora na cultura. Não há uma estratégia cultural participada e mobilizadora. Alguns equipamentos como a Biblioteca Municipal estão anquilosados. E um equipamento recente como o Convento de S. Francisco não está bem aproveitado, permanecendo sem gestão autónoma e, por isso, sem uma programação a médio e longo prazo. Os grandes espectáculos não passam por lá e quem os quiser ver terá de ir, por exemplo, à Figueira da Foz, para onde a livraria de Miguel Carvalho se deslocalizou.
Há que reconhecer que a maleita coimbrã não é só camarária. Embora bastante mais activa do que a câmara, a Universidade é também parte do problema. Será que na Universidade se lê e se dá a ler na medida suficiente? Será que a Universidade tem uma ideia cultural para si e para a cidade que ultrapasse os meros chavões do turismo de massas? Se a Universidade não se transformar mais do que aquilo que tem feito, se não conseguir uma reinvenção cultural que seja ao mesmo tempo uma reinvenção cívica, dificilmente Coimbra terá futuro. A Universidade tem de ser parte da solução. E, para isso, poderia preparar em conjunto com a câmara uma candidatura a Capital Europeia da Cultura 2027. Por que não reanimar a Baixa com cultura? Outros estão mais adiantados? Talvez. Mas Coimbra, se acordar, ainda vai a tempo.