O professor Passos entre a arrogância e o sectarismo
Com excepção da vergonha da Tecnoforma, nada na vida de Passos Coelho o impede de ser docente em universidades nacionais.
A polémica dos convites a Passos Coelho para dar aulas em três universidades só merece mais do que uma linha de aversão porque reflecte um preconceito aberrante e expõe à vista de todos uma atitude mesquinha e perigosa. O assunto não chegou ao grande debate nos jornais (ficou-se pela pequena conversa de café ou pelas redes sociais) porque fica mal expor ao grande público a arrogância de classe ou o sectarismo ideológico mais básico que alguns dos críticos manifestaram. Mas, mesmo na penumbra, a onda não deixa de ser reveladora e irritante. O sectarismo que empurra uma certa esquerda, faz hoje de Passos Coelho o que a direita fez com Mário Soares no Verão Quente.
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A polémica dos convites a Passos Coelho para dar aulas em três universidades só merece mais do que uma linha de aversão porque reflecte um preconceito aberrante e expõe à vista de todos uma atitude mesquinha e perigosa. O assunto não chegou ao grande debate nos jornais (ficou-se pela pequena conversa de café ou pelas redes sociais) porque fica mal expor ao grande público a arrogância de classe ou o sectarismo ideológico mais básico que alguns dos críticos manifestaram. Mas, mesmo na penumbra, a onda não deixa de ser reveladora e irritante. O sectarismo que empurra uma certa esquerda, faz hoje de Passos Coelho o que a direita fez com Mário Soares no Verão Quente.
O que sobrou nos posts do facebook, nas mensagens privadas, nos risinhos desdenhosos da cantina é, em alguns casos, uma indignação larvar pela ascensão social até uma cátedra de um pacóvio de Trás-os-Montes que reside em Massamá e faz férias em Manta Rota. Raquel Varela, historiadora situada nas fronteiras da esquerda radical diz no seu blogue pessoal que "Passos foi de Massamá ao Restelo a cavalo na vida política pública" e o que vale a pena constatar nesta declaração não é o destino nem o meio de transporte: é a origem, é Massamá.
Em outros casos, o que tresanda no horror ao “professor Passos” é o preconceito de uma certa esquerda extrema, chique e arrogante, que ainda olha para a austeridade da troika como uma maldade deliberada e maldosa de uma meia dúzia de arrivistas liderados por Passos Coelho. Alguém com esse passado jamais terá lugar no Olimpo do saber. Rui Bebiano, docente da Universidade de Coimbra, vê o “escândalo” (o termo é meu) como prova de uma inominável injustiça e um óbvio sinal de nepotismo: "É uma desonra para uma escola pública, e uma afronta para quem, no sistema universitário, tanto dá ao longo da vida subindo custosamente a pulso, ou nem sequer o consegue fazer devido ao rigoroso limite de vagas", escreveu no Facebook. Haver concorrência à endogamia universitária é de facto uma “afronta”.
Para o país dos doutores e apelidos nobres, Passos chegou onde chegou apenas por causa do indigenato ignaro que tropeça no erro sempre que exerce o seu direito de votar. O erro com Passos tem de ser apagado, custe o que custar. O que não parecia difícil: bastava dar largas ao ressentimento. Se fosse para uma empresa, Passos estaria finalmente a receber os juros da sua política a favor dos negócios. Se fosse para o lobbying, representaria o segundo acto da sua submissão aos interesses do capital que tinha iniciado no Governo. Como vai dar aulas, Passos tornou-se o arrivista que vive da ignorância, o indigente que ameaça depauperar o brilho da magnífica intelligentsia nacional.
Passos, tantas vezes manhoso e videirinho, não é um intelectual e a sua crença numa ideologia regeneradora pensada para libertar o país através do desmonte do Estado é uma prova do seu profundo desconhecimento da História. Mas tem a seu favor um trunfo raro: o da experiência feita no pior período da vida nacional em muitas décadas. O que vale tanto ou mais do que muitos doutoramentos. Passos teve empregos garantidos pelo capital social que acumulou no PSD e manchou a sua biografia nas negociatas legais mais imorais e indignas da Tecnoforma. Mas a sua passagem pelo Governo deu-lhe um leque de saberes e competências que lhe garantem um curriculum acima da média. Negociar com o FMI ou com a Comissão Europeia, participar em cimeiras europeias, gerir a crise bancária e o estouro do BES não faz parte de uma experiência comum. É um capital de saber feito raro e precioso. Não se trata de discutir se ele esteve, ou não esteve bem; trata-se apenas de perguntar que espécie de competências fazem falta a um professor universitário nas áreas da administração pública ou da economia.
Entre dissertar sobre sebentas de pensamentos alheios, que é o que fazem tantos docentes universitários, ou pegar numa mais frágil base teórica e transmitir experiências reais tem haver complementaridade, nunca oposição. De resto, há muitos professores “convencionais” nas universidades e poucos capazes de lhes aportar os saberes da vida concreta. É por isso importante e interessante para o país pegar na experiência real de Passos Coelho e reproduzi-la no sistema de ensino. Só não entende isto quem for incapaz de separar Passos Coelho da sua condição social ou do seu passado político. Ser um outsider das oligarquias, não é pecado. Ser defensor (mais nas palavras do que nos actos) de uma ida “além da troika” para chegar a um neoliberalismo feroz não é um crime. A diversidade de origens, de opiniões e de mundividências é fundamental nas universidades e no espaço público. Francisco Louçã não deixa de ser um dos nossos mais brilhantes pensadores da área da economia (e da política económica) por defender ideias radicais e anti-sistema.
É banal em Portugal e em todos os países desenvolvidos encontrar ex-políticos nas universidades. Ao contrário do que diz o senso comum, nem sempre a melhor escola é a escola da vida, mas, com excepção da vergonha da Tecnoforma, nada na vida de Passos Coelho o impede de ser docente em universidades nacionais. Que se saiba, a sua licenciatura é limpa – e mesmo que não tivesse licenciatura completa teria sempre experiência para dar aulas, à semelhança de Jacques Delors e de muitos outros. Que se conheça, Passos não se serviu do seu cargo no Governo para enriquecer de forma ilícita. Que se julgue, Passos prestou um serviço público ao gerir o país nos anos de chumbo da troika, ou ao ter coragem para afrontar os donos disto tudo. Não é da linha de Cascais, mas de Vila Real, não andou por Oxford, mas na Lusíada, não mora nos bairros chiques, mas em Massamá, não é de esquerda, mas sim liberal puro e duro… Qual é o problema?
Nenhum. Como escreveu o socialista Sérgio Sousa Pinto, "a experiência de um ex-primeiro-ministro, qualquer que seja, é única e valiosa". Com o seu passado recente enterrado pelo sucesso de António Costa e da solução política que construiu, Passos saiu de cena e em vez de se transformar num lobista como Paulo Portas ou como Miguel Relvas, decidiu passar uns tempos pelas salas de aulas. Talvez haja quem o preferisse ver a cavar valas num qualquer campo de reeducação política. Esses não são capazes de perceber que, muito para lá das diferenças ideológicas ou dos juízos de valor que se possam fazer sobre a sua passagem pelo Governo, há em Passos Coelho uma aura de coragem cívica e uma imagem de dignidade na forma como resistiu à troika que não justificam o quase ódio ou o ostracismo a que tantos o querem votar. Vê-lo a ensinar o que viveu e aprendeu nesses anos de chumbo é útil para as universidades. E é também uma forma justa de o país o homenagear e de conservar na memória essa experiência traumática, mas bem-sucedida, do ajustamento.