O Prémio Pritzker chegou finalmente à arquitectura indiana
Balkrishna Doshi, premiado após uma carreira de mais de 70 anos, tem Le Corbusier como guru. O Pritzker distinguiu a sua arquitectura poética, reconhecendo finalmente a especificidade de um subcontinente.
A cidade de Chandigarh é um dos locais de peregrinação para os arquitectos de todo o mundo que visitam a Índia. Balkrishna Doshi, o arquitecto indiano que aos 90 anos foi distinguido com o Prémio Pritzker de Arquitectura, ajudou um dos mestres da arquitectura moderna do século XX, Le Corbusier (1887- 1965), a construí-la.
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A cidade de Chandigarh é um dos locais de peregrinação para os arquitectos de todo o mundo que visitam a Índia. Balkrishna Doshi, o arquitecto indiano que aos 90 anos foi distinguido com o Prémio Pritzker de Arquitectura, ajudou um dos mestres da arquitectura moderna do século XX, Le Corbusier (1887- 1965), a construí-la.
Doshi, que considera o arquitecto franco-suíço Le Corbusier o seu guru, acabou por se tornar responsável pela execução das suas obras na Índia. É em Ahmedabad, onde Le Corbuiser também ergueu vários edifícios, que o arquitecto indiano vai acabar por abrir o seu atelier nos anos 50. E é nestas duas cidades indianas que é hoje possível ver a arquitectura do mestre suíço a tornar-se mais tropical e plástica, tal como aconteceu com aquilo que Le Corbusier desenhou para o Brasil.
A arquitectura poética de Doshi, que é o primeiro indiano a receber o Pritzker, faz a ponte entre a arquitectura ocidental e a arquitectura vernacular do subcontinente indiano, sendo apontado como um dos exemplos do regionalismo crítico teorizado pelo britânico Kenneth Frampton nos anos 80. Tal como Álvaro Siza, também já distinguido com o prémio, Frampton usa-os para demonstrar como a arquitectura moderna foi apropriada pelas periferias, por diversas culturas e climas, numa evolução que a põe a dialogar com os sítios de vários continentes e que é uma espécie de segunda via do estilo internacional.
A história de Balkrishna Doshi confunde-se com a história da Índia: começou a estudar arquitectura em 1947, o ano em que o país ganhou a independência do Reino Unido. Poucos anos depois, estava em Paris no atelier de Le Corbusier a ajudar a construir de raiz a nova capital do Punjabe, a moderna Chandigarh, uma vez que Lahore tinha ficado com a separação da Índia do lado do Paquistão.
Passou quase doze anos a trabalhar com Le Corbusier e tinham grandes conversas, contou numa entrevista recente à revista Wired. “Ele estudava as pessoas e os estilos de vida e criou edifícios brilhantes que eram abertos e quase vazios. E ele disse-me que a porosidade e os usos múltiplos são muito importantes e que devemos ser capazes de sentir a brisa a passar pelo edifício. […] Le Corbusier encontrou a plasticidade do betão e o betão bruto aqui na Índia”, defende Balkrishna Doshi, que regressou à Índia em 1954 para supervisionar projectos como o Edifício da Associação Mill Owner e a Casa Shofhan, em Ahmedabad, entre outros.
Depois de Le Corbusier, foi a vez de ser o homem na Índia de Louis Kahn (1901-1974), o arquitecto norte-americano com quem trabalha a partir de 1962, nomeadamente na construção do Instituto Indiano de Gestão. “Kahn estava também muito interessado na ventilação e na luz, mas de uma maneira diferente de Corbusier. Ele procurava a ordem, enquanto Corbusier procurava a excepção”, diz na mesma entrevista. Kahn, aponta Doshi, fala sobre o silêncio de uma sala como ninguém.
Entretanto, logo em 1956, Doshi já tinha aberto o seu próprio atelier, mas é em 1980 que ergue um espaço de trabalho a que chama Sangath, que se pode traduzir por “mover-se em conjunto”. Até 1974, data da morte de Kahn, tinha colaborado com o arquitecto americano.
O júri do Prémio Pritzker escreve que Balkrishna Doshi "criou uma arquitectura que é séria, nunca espalhafatosa, nem seguidora de tendências". E continua: “Doshi está profundamente consciente do contexto em que os seus edifícios estão localizados. As suas soluções têm em conta as dimensões social, ambiental e económica e por isso a sua arquitectura está totalmente empenhada com a sustentabilidade.”
O arquitecto desenhou o Bairro de Habitação de Baixo Custo de Aranya (Indore, 1989), que deu um novo lar a 80 mil pessoas, num sistema de casas que cruza pátios num labirinto de caminhos, sublinhando a importância dos espaços de transição e fluidos na arquitectura indiana. O projecto, que ganhou em 1995 o Prémio Aga Khan da Arquitectura, é também muito flexível, uma capacidade de adaptação que Doshi procura explorar na habitação e que aprendeu com a arquitectura tradicional. Além disso, sublinha, as famílias devem poder acrescentar e transformar os espaços que habitam, uma liberdade que a arquitectura deve contemplar.
Premiado após uma carreira de mais de 70 anos, o arquitecto sublinha que os ensinamentos de Le Corbusier o levaram a questionar a sua identidade e a descobrir “uma expressão contemporânea nova adaptada regionalmente para um habitat holisticamente sustentável”, cita o comunicado do Pritzker. “Todos os objectos à nossa volta, e a própria natureza – luzes, céu, água ou uma tempestade -, tudo está em sinfonia”, afirma ainda o indiano. O júri não deixa de elogiar a importância do vernacular: "Com uma compreensão e apreciação das profundas tradições da arquitectura da Índia, uniu a pré-fabricação e a artesania local e desenvolveu um vocabulário em harmonia com a história, cultura, tradições locais e a mudança dos tempos do seu país natal, a Índia."
O arquitecto italiano Alessandro Pepe, que tem um atelier no Porto e trabalhou por um curto período com Doshi, defende que na sua prática o arquitecto indiano “desligou-se do pragmatismo europeu para procurar um desenvolvimento espiritual na criação do espaço”. O uso da luz e das formas, que aprendeu com Le Corbusier, “é explorado para obter um resultado mais emocional”, atingindo uma dimensão mística e, eventualmente, religiosa. “O Sangath onde Doshi desenvolve o seu trabalho é um edifício de formas curvas em diálogo com os triângulos da planta. A planta do edifício, que é muito conhecida, lembra um templo indiano antigo.”
O Pritzker, equiparado ao Prémio Nobel no campo da arquitectura, é um prémio pecuniário - 100 mil dólares - e uma medalha de bronze, mas sobretudo inscreve o nome dos seus laureados no panteão da disciplina. Além de Siza, o prémio, atribuído desde 1979, distinguiu já também o português Eduardo Souto Moura, bem como os arquitectos Peter Zumthor, Zaha Hadid, Oscar Niemeyer, Norman Foster, Rem Koolhaas ou Frank Gehry.
Em entrevista à CNN, Doshi disse esta quarta-feira que "é muito, muito significativo que este prémio tenha vindo para a Índia - é claro, importante para mim, mas sobretudo para a Índia. "O governo, os responsáveis, aqueles que tomam decisões, as cidades - toda a gente começará a pensar que há uma coisa chamada 'boa arquitectura' e que podem acontecer coisas duradoras."