Morreu Gabriela Cerqueira, a programadora cultural que produzia com poesia

O cinema e o teatro marcaram a vida profissional desta mulher que foi directora executiva do grande Festival dos 100 Dias, que preparou caminho para a Expo-98, responsável pelo Teatro Camões e programadora do Centro Cultural de Belém. Samuel Fuller e Raúl Ruiz, Fernando Lopes e José Álvaro Morais estão entre os muitos realizadores com quem trabalhou.

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Gabriela Cerqueira tinha 75 anos e uma vida dedicada às artes Facebook Gabriela Cerqueira

Gabriela Cerqueira, que dirigiu o Festival dos 100 Dias da Expo-98 e produziu nomes como Samuel Fuller, Raúl Ruiz ou Fernando Lopes no cinema, morreu na terça-feira, em Lisboa, aos 75 anos. Ocupou cargos públicos e foi programadora, mas os traços essenciais de produtora são os mais destacados pelos que com ela trabalharam. “Uma pessoa que conseguia pôr as coisas a funcionar”, aliava a gestão a “uma poesia na forma como desempenhava as suas funções”. “Não havia impossíveis”, resume Teresa Villaverde.

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Gabriela Cerqueira, que dirigiu o Festival dos 100 Dias da Expo-98 e produziu nomes como Samuel Fuller, Raúl Ruiz ou Fernando Lopes no cinema, morreu na terça-feira, em Lisboa, aos 75 anos. Ocupou cargos públicos e foi programadora, mas os traços essenciais de produtora são os mais destacados pelos que com ela trabalharam. “Uma pessoa que conseguia pôr as coisas a funcionar”, aliava a gestão a “uma poesia na forma como desempenhava as suas funções”. “Não havia impossíveis”, resume Teresa Villaverde.

“Ao longo dos anos, o seu percurso profissional convocou o cinema, as artes visuais e as artes performativas, tanto na esfera da criação e da produção, como no domínio da gestão e programação cultural", lê-se no comunicado da família, assinado pelos filhos, entre os quais os actores Marcello e Luca Urgeghe, e enviado esta quarta-feira à agência Lusa. No comunicado é ainda destacado o "percurso singular" de Gabriela Cerqueira, "que acompanha as mudanças estruturais do país cultural, político e social", ao longo de mais de quatro décadas, nas artes visuais, no teatro e no cinema. O velório acontece na quinta-feira na Basílica da Estrela, em Lisboa, das 17h às 23h e o funeral realiza-se na sexta-feira, com saída da Basílica da Estrela às 15h para o Cemitério dos Prazeres. 

Foi no cinema que teve a seu cargo a produção executiva de Les trois couronnes du matelot, de Raúl Ruiz, ou de Rua sem Regresso, de Samuel Fuller. Como produtora de um filme, como os muitos em que João Pedro Ruivo, assistente de realização, trabalhou com Gabriela Cerqueira, distinguia-se porque ultrapassava o exercício convencional das funções de gestão de produção e gestão administrativa e fazia uma real ponte com a criação artística, disse ao PÚBLICO.

“Era algo que fazia com paixão e liberdade artística total”, numa relação próxima com o “elenco, no desenvolvimento dramático do filme, até ao guarda-roupa, numa cumplicidade total com o realizador – ela sabia como gerir o dinheiro de forma a realizar o projecto artístico”, elogia João Pedro Ruivo.

Trabalharam juntos em vários projectos, dos quais destaca O Fio do Horizonte (1993), de Fernando Lopes, mas que também incluíram Ao Fim da Noite (1991), de Joaquim Leitão, ou o telefilme com Robert Wagner To Catch a King (1984), rodado em Portugal. Recorda como Gabriela Cerqueira trabalhou muito no estrangeiro também graças ao trabalho com a distribuidora Animatógrafo de António da Cunha Telles, e que foi “um apoio nos bastidores e logo numa fase inicial”, detalha, de filmes como Capitães de Abril (2000), de Maria de Medeiros, que teve João Pedro Ruivo como assistente de realização.

No fundo, Gabriela Cerqueira “tentava desbloquear, fazia uma desburocratização, tinha uma fantasia, uma poesia na forma como desempenhava as suas funções, [normalmente] associadas a uma rigidez, a uma frieza, e que na Gabriela eram de envolvência artística, de generosidade”.  Era “uma pessoa de uma gigantesca sensibilidade artística e de empenho total num projecto em que estava envolvida”.

Gabriela Cerqueira desenvolveu grande parte da sua actividade no cinema e no audiovisual. De 1974 a 1976, integrou a equipa de Nome é mulher, das jornalistas Maria Antónia Palla, Maria Antónia Fiadeiro e Teresa de Sousa (redactora principal do PÚBLICO), com produção da Cinequipa, programa pioneiro do jornalismo de investigação e intervenção, no Portugal pós-revolucionário, que foi transmitido pela RTP.

A ligação à produtora — uma das três independentes existentes na época — determinou o percurso de Gabriela Cerqueira, associando-a desde logo à produção de filmes-documentários de novos realizadores como João e Fernando Matos Silva (O Meu Nome É..., sobre o combate ao fascismo), José Nascimento (Pela Razão Que Têm e Terra de Pão, Terra de Luta, sobre a reforma agrária), Monique Rutler e Francisco Manso, entre outros.

Vontade de experimentar

Entre os amigos todos a tratavam por Gabi e todos lhe reconhecem esta sensibilidade de que fala o assistente de realização, a energia inesgotável, a alegria de viver e a capacidade de entrega a um projecto, fosse no trabalho, fosse em família.

Maria João Seixas, antiga directora da Cinemateca Portuguesa e amiga “de décadas” de Gabriela Cerqueira, também destaca a sua “imensa vontade de experimentar”, de fazer o que nunca tinha feito. “E isso via-se na cozinha, nas receitas que trocava, e até naquele curso de costura que ela queria tirar porque achou que tinha de saber costurar”, diz Seixas, que a conheceu através do realizador Fernando Lopes, cuja carreira a produtora “acompanhou sempre”.

“A Gabi era daquelas pessoas que gostava muito de gostar: de livros, de filmes, de pessoas, de roupas… Tinha um ar de menina delicioso e uma capacidade de mobilizar as pessoas que a rodeavam.” Seixas lembra, a este propósito, o “momento dramático” em que Sérgio Godinho foi preso no Brasil da ditadura militar, acusado de subversão e posse de maconha, e em que Cerqueira, que estava muito ligada ao músico, organizou um “verdadeiro movimento” para o libertar.

“Ela era uma pessoa muito, muito ligada à vida. Uma profissional estupenda, fosse em que área fosse”, acrescenta Maria João Seixas, lembrando duas das últimas vezes em que estiveram juntas: numa delas a jornalista organizou uma “saída geriátrica” em que um grupo de “quatro amigas septuagenárias” de que ambas faziam parte foi ver o último filme de Spielberg, The Post; noutra Gabriela Cerqueira apareceu-lhe em casa, de ramo de flores na mão. “Foi no dia em que passavam dois anos sobre a morte do meu filho [o arquitecto e crítico de arquitectura Diogo Seixas Lopes] e ela tinha estado na Caparica, apesar do frio. Ainda trazia a areia da praia nos pés e vinha, como sempre, luminosa. Com a morte da Gabi fica por aqui um buraco negro, fica mesmo.”

Na Animatógrafo (1987-1995), onde exerceu funções também na área da produção, trabalhou em O Bobo, de José Álvaro Morais, Repórter X, de José Nascimento, no documentário Lissabon Wuppertal Lisboa, de Fernando Lopes, sobre a bailarina e coreógrafa alemã Pina Bausch, ou Sem Sombra de Pecado, de José Fonseca e Costa. Produziu os filmes Três Irmãos e Os Mutantes, de Teresa Villaverde, com quem criou a produtora Mutantes. A cineasta recorda a produtora e amiga ao PÚBLICO como “não havia impossíveis” para Gabriela Cerqueira, “a imagem da alegria de viver”.

Trabalhou também no teatro, montando Traições, de Harold Pinter, a única encenação do artista plástico João Vieira, com quem assinou e produziu o documentário Pinto Quadros por Letras (2003).

Gabriela Cerqueira foi directora executiva do Festival dos 100 Dias (1996-1998), o evento que serviu de "contagem decrescente" para a Expo-98, e que envolveu Pina Bausch, os compositores Emmanuel Nunes, António Pinho Vargas e Michael Nyman, os maestros Bernard Haitink, Riccardo Chailly e Valery Gergiev, músicos como Wynton Marsalis, encenadores como Joan Font, e que promoveu exposições como Viagem ao Século 20 À Prova da Água, no CCB, reunindo fotografias de Tina Modotti, Robert Mapplethorpe ou Cartier-Bresson.

Durante a Expo-98 fez ainda a direcção de produção do Teatro Camões, onde se estreou a ópera O Corvo Branco, de Philip Glass, com libreto de Luísa Costa Gomes e direcção de cena de Robert Wilson, em Setembro de 1998.

"Gargalhadas maravilhosas"

Em 1979, fez parte da equipa do secretário de Estado da Cultura Helder Macedo, escritor e professor, no V Governo Provisório de Maria de Lourdes Pintasilgo. Dirigiu o departamento de apoio à criação e difusão (2004-2006) do Instituto das Artes (actual Direcção-Geral das Artes) e foi adjunta da direcção de António Mega Ferreira (2006-2012) e consultora para a programação de artes performativas (2012-2013) no Centro Cultural de Belém.

Foi no consulado de Mega Ferreira que Luísa Taveira, a antiga directora da Companhia Nacional de Bailado que é hoje uma das vogais do conselho de administração do CCB, a conheceu. Taveira fazia, então, parte da equipa de programadores deste centro cultural e lembra Cerqueira como uma pessoa sempre muito atenta ao que se ia fazendo nas restantes artes performativas, sublinhando, em particular, o seu envolvimento no Prospero, o projecto europeu de cooperação cultural para a área do teatro, que foi decisivo para a internacionalização de formações portuguesas como o Teatro Praga e a Circolando.

“Ela trazia a sua experiência de vida impressionante e as suas gargalhadas maravilhosas para o trabalho e tudo se tornava mais fácil”, diz Taveira. “Mais do que produtora, a Gabi era uma pessoa que conseguia pôr as coisas a funcionar.”

Em 1998, o Presidente da República Jorge Sampaio concedeu-lhe a comenda da Ordem de Mérito. com Lusa