Casar não tem de significar herdar
A vontade de partilhar um património em vida não tem de significar a partilha adicional por morte.
A proposta apresentada por deputados do Partido Socialista de alteração de regras sucessórias previstas no Código Civil relativas ao cônjuge vem ao encontro de uma pretensão legítima de reconhecimento legal de uma maior autonomia da vontade no plano da regulação sucessória.
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A proposta apresentada por deputados do Partido Socialista de alteração de regras sucessórias previstas no Código Civil relativas ao cônjuge vem ao encontro de uma pretensão legítima de reconhecimento legal de uma maior autonomia da vontade no plano da regulação sucessória.
No cenário atual, e desde a Reforma de 1977, o cônjuge tem o estatuto de herdeiro legal, legitimário e legítimo, com um tratamento sucessório privilegiado, que se traduz, essencialmente, na garantia de um mínimo de um quarto da herança em sede de sucessão legal, no caso de concurso com descendentes (cfr. artigo 2139.º, n.º 1, do Código Civil), na previsão do direito de habitação da casa de morada de família e direito de uso do recheio a seu favor (cfr. artigos 2103.ºA a 2103.º C), e na consagração de um direito a alimentos (cfr. artigo 2018.º). O cônjuge sobrevivo pode ainda ser chamado por sucessão voluntária, se o autor da sucessão o tiver contemplado, por testamento ou por pacto sucessório, com uma atribuição patrimonial.
Ora, atendendo à cada vez mais comum constituição de novas famílias na sequência de divórcio ou rutura de união de facto, o estatuto de herdeiro legal inerente à celebração de um casamento não é desejado por muitos, em regra por vontade de preservação do seu património para os descendentes nascidos de anteriores casamentos ou de relações prévias. Conscientes de que o casamento implica, imperativamente, uma reserva de parte do seu património, a chamada legítima, para o futuro cônjuge, diminuindo, assim, a quota a reverter para os descendentes, muitos “optam” por não casar e viver em união de facto, desprovida, como é, de tal efeito sucessório.
A renúncia antecipada, unilateral ou recíproca, aos direitos sucessórios legais não é admitida no nosso Código Civil, possibilitando-se apenas o repúdio depois da abertura da sucessão, ou seja, depois da morte do dono do património a partilhar.
A possibilidade de afastamento do estatuto de herdeiro legal do cônjuge é uma medida legislativa que consideramos positiva, viabilizando a celebração de matrimónios sem tal repercussão sucessória, por vontade das partes, em respeito à individualidade e desenvolvimento da personalidade de cada um, e mesmo independentemente da existência ou não de descendentes com expetativa sucessória.
Possibilidade essa que não deve limitar-se aos cônjuges que se casem no regime de separação de bens, nem tem de ser recíproca, sendo que será este, julga-se, o caso mais comum.
Com efeito, a vontade de partilhar um património em vida não tem de significar a partilha adicional por morte. Os cônjuges podem desejar um regime de comunhão, típico ou atípico, tornando comuns, por exemplo, os bens que adquirirem durante o casamento, fruto de um esforço conjunto, e não pretender o estatuto sucessório de herdeiro legitimário e legítimo no caso de morte de um deles.
E será de admitir quer a renúncia unilateral, quer a recíproca, reconhecendo como legítimo o desinteresse de apenas um dos futuros cônjuges quanto à aquisição do estatuto de herdeiro legal, seja por dispor de um património superior, seja por não ter descendentes a proteger, ao contrário do outro cônjuge, bastando, pois, a renúncia unilateral do não progenitor para acautelar a continuidade do património na família sanguínea.
A nosso ver, a renúncia deve poder ser realizada em momento prévio ao da celebração do casamento, em convenção antenupcial, dada a respetiva função reguladora do estatuto patrimonial dos futuros cônjuges, com total salvaguarda da liberdade de vontade e o devido esclarecimento jurídico, mas também na vigência do mesmo, desde que sob forma solene, devendo ainda ser ponderada, entre outros aspetos, a admissibilidade de revogação dessa renúncia e, se o for, em que termos.
Concluímos com o entendimento de que se poderia ir mais longe, com uma revisão da posição sucessória do cônjuge, encarando o casamento como um meio de enriquecimento pessoal, mas não necessariamente patrimonial. Tal reforma pode traduzir-se na negação do estatuto de herdeiro legal, mas assegurando ao cônjuge sobrevivo um direito a alimentos e a habitação, acautelando situações de necessidade económica, ou na previsão de uma maior autonomia do autor da sucessão neste domínio, permitindo-se a exclusão do cônjuge da sucessão, sem necessidade da sua concordância.
O projeto de lei apresentado, se outro não tiver, terá o mérito de permitir a discussão, há muito em falta, sobre a adequação do estatuto sucessório do cônjuge no contexto social atual.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico