Inteligência em todo o lado
Nas fábricas, nas estradas, em casa e nos nossos bolsos – há cada vez mais máquinas capazes de terem comportamentos autónomos e tomarem decisões.
Quando sofreu a primeira derrota contra a máquina, o lendário jogador de xadrez Garry Kasparov fez algo muito humano: teve mau perder e acusou o oponente de batota. “Julgo que algo de verdadeiramente inacreditável aconteceu”, disse na entrevista após o jogo, num momento em que parecia tentar esconder a irritação. Questionado pelo entrevistador sobre se achava que tinha havido intervenção humana nas jogadas do computador, respondeu: “Fez-me lembrar o golo famoso que o Maradona marcou contra a Inglaterra em 86. Ele disse que foi a mão de deus...”
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Quando sofreu a primeira derrota contra a máquina, o lendário jogador de xadrez Garry Kasparov fez algo muito humano: teve mau perder e acusou o oponente de batota. “Julgo que algo de verdadeiramente inacreditável aconteceu”, disse na entrevista após o jogo, num momento em que parecia tentar esconder a irritação. Questionado pelo entrevistador sobre se achava que tinha havido intervenção humana nas jogadas do computador, respondeu: “Fez-me lembrar o golo famoso que o Maradona marcou contra a Inglaterra em 86. Ele disse que foi a mão de deus...”
Estávamos em 1997. Kasparov, considerado um dos melhores jogadores de xadrez de sempre, tinha 34 anos, estava em pico de forma e simplesmente não conseguia acreditar que uma máquina pudesse levar a melhor num jogo que há milénios era visto como um sinónimo de inteligência humana. Mesmo um jogador habituado a derrotar todos os outros achava mais provável ter sido vencido por um rival de carne e osso.
Aquela partida entre Garry Kasparov e o Deep Blue, um supercomputador da IBM, foi apresentada nos media como um duelo entre a inteligência humana e a das máquinas. O Deep Blue acabou por ganhar, com três vitórias, duas derrotas e três empates.
“É um momento marcante. Foi a primeira vez que um software dito inteligente, num jogo muito nobre e com uma conotação de inteligência, conseguiu ganhar”, comenta o académico Paulo Novais, professor na Universidade do Minho e presidente da Associação Portuguesa Para a Inteligência Artificial. “Acima de tudo, o que se conseguiu foi fazer a máquina vencer o Homem.”
Mais do que uma demonstração de inteligência artificial, foi uma demonstração de poder de computação. O Deep Blue era capaz de calcular muitas mais jogadas: cerca de 200 milhões por segundo. Um jogador de topo como Kasparov é capaz de analisar talvez três jogadas por segundo. A abordagem da IBM era o que, na gíria do meio, se chama “força bruta”.
Naquela altura, quando “inteligência artificial” ainda não era uma expressão da moda, a IBM foi clara a dizer que o computador não era inteligente: “O deep blue usa inteligência artificial? A resposta curta é ‘não’”, lê-se numa página sobre o projecto (a resposta longa é a mesma). “O Deep Blue assenta mais em poder computacional e numa simples função de pesquisa e avaliação [das posições no tabuleiro].” Se algo semelhante tivesse acontecido hoje, uma empresa provavelmente não perderia a oportunidade de usar a expressão “inteligência artificial” para descrever um projecto destes. Nos tempos recentes, o jargão tem vindo a ser usado por empresas para tentar promover todo o tipo de produtos e serviços, desde aplicações de encontros amorosos até novos telemóveis.
A ideia de máquinas com inteligência é antiga e existe associada aos computadores desde meados do século passado. Esta ascensão recente da inteligência artificial “tem a ver com uma conjugação de factores e segue uma evolução normal”, observa Paulo Novais. “Desenvolvemos uma grande capacidade de armazenar de dados e, ao mesmo tempo, uma grande capacidade de processamento.”
Na mesma década em que a IBM punha o Deep Blue a jogar xadrez, estavam a ser feitos outros progressos no campo da inteligência artificial. “Nos anos 1990 é quando aparecem os primeiros avanços significativos na aprendizagem automática, no data mining [análise de dados], na compreensão da linguagem natural. Depois da World Wide Web, aparecem nos anos 2000 os primeiros sistemas de recomendação”, recorda Novais, referindo-se a serviços como as recomendações da Amazon e do Google.
Os avanços da tecnologia levaram a que as máquinas voltassem a levar a melhor sobre os humanos. Em 2011, um outro supercomputador da IBM, chamado Watson, venceu dois campeões de Jeopardy!, um concurso televisivo de cultura geral. A máquina tinha de saber analisar o significado das dicas dadas pelo apresentador e encontrar a resposta certa numa enorme quantidade de dados que tinha armazenados (e que incluíam toda a Wikipedia). Já no ano passado, software inteligente da DeepMind, uma empresa do Google, venceu o melhor jogador do mundo de Go, um milenar jogo de estratégia chinês, mais complexo do que o xadrez. Uma versão mais recente deste software foi capaz de aprender sozinha a jogar xadrez, Go e shogi (também conhecido como xadrez japonês), tornando-se em poucas horas melhor do que qualquer humano. Conhecia apenas as regras dos jogos e ia repetindo partidas contra si própria para descobrir as melhores estratégias.
As aplicações práticas dos progressos das últimas décadas são hoje bem conhecidas: os algoritmos de empresas como a Amazon, o Google e o Facebook analisam torrentes de dados dos seus utilizadores, para decidir que produtos sugerir a cada um deles, qual a publicidade mais eficaz para ser mostrada, e que notícias devem ser apresentadas. Os telemóveis trazem incorporados assistentes digitais que (especialmente para quem fale inglês) são capazes de responder a perguntas, fazer sugestões e até antecipar necessidades. As colunas inteligentes do Google e da Amazon, com as quais já é possível ter uma comunicação que se assemelha a um diálogo, estão a cativar o interesse dos consumidores.
As máquinas estão também a aprender línguas. A tradução automática não é perfeita, mas permite situações que há poucos anos seriam ficção científica: há tecnologia do Google e da Microsoft para que duas pessoas possam usar os telemóveis e ter um diálogo em línguas diferentes. O navegador Chrome, que é usado pela maioria dos utilizadores da Internet, é capaz de traduzir um site em segundos, entre dezenas de idiomas. De cada vez que estes sistemas de tradução são corrigidos por humanos, tornam-se melhores a fazer o seu trabalho.
Os carros autónomos – que são essencialmente robôs em forma de automóvel – já conseguem andar em autoestradas. As ruas caóticas das cidades ainda são um desafio complicado, mas as empresas tecnológicas e os fabricantes de carros prometem resolvê-lo. Por ora, já há alguns que são capazes de estacionar sozinhos, de andar no pára-arranca monótono de um engarrafamento e que até conseguem fazer ultrapassagens.
“Penso que será, seguramente, uma adopção progressiva e quase invisível destas tecnologias no nosso quotidiano, de tal forma que daqui a meia dúzia de anos sejam francamente familiares”, observava recentemente ao PÚBLICO o presidente do Instituto Superior Técnico, Arlindo Oliveira, autor de um livro sobre o futuro da inteligência.
Já nas fábricas e armazéns, os robôs trabalham lado a lado com humanos, numa realidade que pôs economistas, deputados europeus e até magnatas da tecnologia a discutir a hipótese de um rendimento universal. Por seu lado, Arlindo Oliveira argumentou que a tecnologia coloca outros desafios: “O foco na ameaça existencial, ou na redução de empregos para humanos, desvia-nos das questões mais essenciais que deveriam ser como educar os nossos jovens (e os não tão jovens) para estas tecnologias, quais os riscos e benefícios inerentes à partilha de dados pessoais, como abordar a questão da redistribuição dos rendimentos que estas tecnologias possam vir a criar.”
Há ainda casos em que a inteligência artificial está a ter aplicações que podem passar despercebidas a grande parte das pessoas. Na banca, há sistemas para detectar fraudes com cartões bancários e para decidir quem pode aceder a crédito. No retalho, algoritmos analisam os hábitos dos consumidores e detectam padrões que um humano dificilmente conseguiria. Na medicina, o supercomputador Watson está a ser usado experimentalmente para fazer diagnósticos: é capaz de analisar milhares de páginas de literatura científica, olhar para resultados de análises e exames, e chegar a conclusões que escapam aos médicos.
“O mundo que vem aí é muito interessante”, antecipa Paulo Novais. “De um momento para o outro, estamos envolvidos em inteligência.”