No princípio eram zeros. E assim nasceu um jornal
Idealizado no Verão de 1988, aprovado em Março de 1989 e nas bancas em 5 de Março de 1990, o PÚBLICO viveu várias peripécias, fazendo números zero que ninguém viu. Não existia Internet, telemóveis ou redes sociais, e na televisão só havia dois canais, os da RTP.
Foto de grupo para anúncios, 1989: José Alberto Lemos, Rogério Gomes, Leonor Pinhão; José Vítor Malheiros, Áurea Sampaio, Teresa de Sousa, João Cândido da Silva, Nuno Pacheco, Jorge Wemans; Joaquim Fidalgo, José Manuel Fernandes e Vicente Jorge Silva
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Foto de grupo para anúncios, 1989: José Alberto Lemos, Rogério Gomes, Leonor Pinhão; José Vítor Malheiros, Áurea Sampaio, Teresa de Sousa, João Cândido da Silva, Nuno Pacheco, Jorge Wemans; Joaquim Fidalgo, José Manuel Fernandes e Vicente Jorge Silva
Naquele dia só faltava uma coisa: luz verde para avançar. Havia um projecto de jornal, que começou a ser idealizado no Verão de 1988 por um grupo de jornalistas ligados ao semanário Expresso, e havia um projecto escrito, 130 mil caracteres em 75 páginas. A ideia inicial foi de Vicente Jorge Silva, que, não tendo conseguido concretizá-la no próprio Expresso (por desinteresse deste), procurou outra parceria. E encontrou-a no empresário Belmiro de Azevedo, presidente do grupo Sonae. Contactos exploratórios, reuniões, telefonemas, foi o que se seguiu, a alinhavar um projecto de jornal ainda de forma "clandestina". Além de Vicente e de Jorge Wemans, que primeiro se lhe juntou, outros nomes vieram depois a compor o chamado "núcleo duro" editorial do início (que acabou por ser um "grupo dos nove"): Augusto M. Seabra, Henrique Cayatte (que viria a ser o autor do grafismo), Joaquim Fidalgo, José Manuel Fernandes, José Queirós, José Vítor Malheiros e Nuno Pacheco. Com Março de 1989 a chegar ao fim, surge a decisão da Sonae: avançar. Então, no dia 28, Carlos Moreira da Silva, vice-presidente do grupo, anuncia no Porto, em conferência de imprensa, o novo jornal. Que já tinha nome: PÚBLICO. Um nome que jogava com duas referências: ecos do antigo A República e a contradição com o seu financiamento, inteiramente privado.
Começava o contra-relógio. No Expresso de 1 de Abril, Vicente e Wemans assinam uma nota intitulada "Despedida", dizendo: "Entre nós e o Expresso criou-se uma relação profissional e afectiva cuja intensidade nos marcou profundamente — a nós e ao Expresso. Só um desafio apaixonante como aquele que agora nos espera, de abrir um espaço inovador na imprensa diária, justifica a decisão sempre dolorosa de partir."
À imprensa, Vicente Jorge Silva distribuíra também uma nota explicando o que o levava a abraçar o novo projecto: "Parto para a aventura de fazer um jornal todos os dias com a humildade dos iniciados, mas também com o entusiasmo de uma nova paixão." Numa conferência de imprensa, no Grémio Literário, em Lisboa, Belmiro de Azevedo e Vicente Jorge Silva surgem depois, lado a lado, apresentando aquilo a que se chamou "Magna Carta", um pacto assinado entre o accionista e o grupo de jornalistas para a "criação em Portugal de um jornal diário que, através de uma aposta inovadora no plano editorial e tecnológico, reúna as energias necessárias para responder ao desafio de uma informação moderna e de qualidade no espaço europeu".
Era a decisão, faltava o resto. Por exemplo: instalações. Em Lisboa, foi alugado um andar na Av. Fontes Pereira de Melo; no Porto, seria no World Trade Center. Ambas provisórias, para começar. É aí que se fazem os recrutamentos. Do Expresso vêm mais jornalistas (como Teresa de Sousa), mas também Lucília Santos, que como secretária adjunta da direcção terá um papel inestimável no jornal desde os primeiros passos.
De Maio a Julho procura-se "casa" definitiva. Em Lisboa, após tentativas infrutíferas (Campo de Ourique, Av. Almirante Reis, São Bento, Av. de Ceuta, Duque de Palmela, Campo Santana), consegue-se um edifício na Quinta do Lambert, ao Lumiar. Podia ser ocupado a 1 de Setembro. Ficam assim os endereços, num curioso jogo de toponímia: em Lisboa, sede na Rua Amílcar Cabral; no Porto, na Rua Nossa Senhora de Fátima.
Os recrutamentos prosseguem, com rapidez, e a procura inflaciona o mercado, com aumentos salariais em várias empresas, que reagem. Em Maio, o Porto já está a 100%, Lisboa a 75% (faltam ainda respostas). Alguns jornalistas transferem-se de imediato. Entre eles está Adelino Gomes, que viria a dirigir (com outros fundadores) o concurso que entretanto se abrira para jovens jornalistas. De um total de 200, são seleccionados 25, numa prova final no Fórum Picoas, em Lisboa. Mas serão cooptados mais alguns.
O que está em marcha? Um jornal que, com a ambição de sair para as bancas logo no início de 1990, quer romper várias regras: formato tablóide e impresso a cores, o que contrariava o cânone dos jornais de referência; com duas edições simultâneas e dois cadernos locais diferentes, em Lisboa e no Porto; e com suplementos integralmente a cores, um por dia: Economia (segunda), Leituras (terça), Videodiscos (quarta), Hoje e Amanhã (quinta), A Semana (sexta), Jogos (sábado) e Magazine (a revista, domingo).
Em Junho e Julho fazem-se visitas a jornais e agências (El País, The Independent, Lyon Figaro, Libération, L’Équipe, Agência Gamma), fixa-se a tipografia a utilizar no jornal e surge um lema: "PÚBLICO, um jornal sem fronteiras." Mas na campanha publicitária será usado outro: "Mais perto do público, mais perto do acontecimento."
Estabiliza-se, a 31 de Agosto, o programa de paginação (XPress, não o Page Maker), e em Setembro, com as redacções a serem instaladas, fazem-se contas ao equipamento. O informático custará 240 mil contos (1,2 milhões de euros) e o de pós-produção, que envolvia maquinaria pesada da marca Scitex, 300 mil contos (1,5 milhões de euros). No total, e isso era já notícia nos jornais, anunciava-se um investimento inicial, por parte da Sonae, de dois milhões de contos (dez milhões de euros). Em Maio, de fora, havia quem pensasse que era brincadeira. Mas em Setembro o caso já era levado a sério.
Pouco antes, em 23 de Agosto, na décima reunião de direcção (com Nuno Vitorino e António Saraiva, do lado da gestão, a par de alguns fundadores e de Moreira da Silva), decide-se que a "redacção começará a funcionar, como tal, entre 8 e 15 de Outubro, e, em pleno, a partir de 1 de Novembro". Mobilização geral. E começam os chamados "números zero", jornais de teste. Uns para imprimir, outros para afixar e discutir.
De Gorbatchov a Mandela
O primeiro número zero, feito na íntegra e para imprimir, trazia na capa George Bush (pai) e Gorbatchov, dando destaque à cimeira que o Presidente dos EUA e o líder da ainda URSS iriam ter na próxima Primavera. Título: "Finalmente sós." No interior, António Costa garantia, em nome do PS, que "não haverá qualquer coligação com o PCP, nem antes das eleições nem depois no governo" (estavam coligados na Câmara de Lisboa). E, no espaço de opinião, Vasco Pulido Valente escrevia, numa primeira crónica sob o título Quem fala: "Se vale a pena aturar-me, quem compra o jornal é que decide. A mim, só me preocupa a opinião de quem lê as minhas opiniões". Este jornal teve difusão pública (com simulacros dos suplementos) nas festas de lançamento, em Dezembro: dia 20 no Porto (Palácio da Bolsa) e 21 em Lisboa (Quinta do Lambert).
Mas houve mais, muitos mais. E esses ninguém leu, fora do PÚBLICO. Num deles, de 10 de Dezembro, a manchete era "SOS Cavaco". Cavaco Silva, primeiro-ministro, foi ao Parque Mayer apelar ao voto em Marcelo Rebelo de Sousa, candidato à Câmara de Lisboa, interrompendo a mini-revista Ai Marcelinho, com artistas apoiantes da sua candidatura e "onde se faziam violentas críticas ao Governo". Escreveu-se, no jornal, que "os cumprimentos entre os dois políticos não foram excessivamente afectuosos".
Antes de entrarem em modo non-stop, os estagiários tiveram direito a uma viagem de formação, em Bruxelas, com Adelino Gomes e José Manuel Fernandes. Na volta, e a par dos "zeros", também eles fizeram um divertido minijornal, o PÚBLICOzinho.
Cá fora, jornalistas a fazerem perguntas urgentes para um jornal que ainda não saía era visto como bizarria ou trabalhar "para o boneco" (O Independente fez, até, uma charge com o título BONÉCO). Mas a azáfama continuou. No dia 16 de Dezembro, a manchete era a morte de Sakharov ("O físico prodigioso"), destacando-se também a vitória de Aylwin no Chile, com o título "Votos derrubam Pinochet". Dia 17 eram as "Eleições em português" (autárquicas em Portugal, segunda volta das presidenciais no Brasil, regionais na Galiza) e dia 30 a economia, com "A desilusão das privatizações".
Depois, toda a aposta se centrou no primeiro número. Que falhou. Foi feito, impresso, mas não chegou às bancas. Trazia na manchete o título "Liberdade, ano zero", e no interior reportagens, na passagem do ano, nas zonas mais "quentes" do Leste Europeu após a queda do Muro: Praga, Berlim e Budapeste, com entrevista a Vaclav Havel. Foi grande o desalento nessa longa madrugada de 2 de Janeiro, o dia aprazado para o nascimento do novo jornal. Dificuldades técnicas inultrapassáveis, em particular na gráfica do Porto, obrigaram a um adiamento, sem nova data. Fez-se um comunicado. E voltou-se, com afinco, ao afinar da "máquina". E aos números zero, para novos testes.
E o mundo foi girando. Em Janeiro, dia 16, a manchete é "SOS Madeira" (por causa de uma maré negra), dia 19 é "O círculo de pólvora caucasiano" (guerra civil à vista no Azerbaijão e na Arménia). E em Fevereiro há a libertação de Mandela, na África do Sul, em duas capas seguidas, "Mandela livre" (com ilustração de Henrique Cayatte, dia 7) e "A arma da moderação" (com uma fotografia de Mandela libertado, dia 8).
O trunfo da guerra do Golfo
No dia 1 de Março, noticia o Expresso, a administração e a direcção do PÚBLICO decidem que o jornal sairá dia 5 de Março, "após um derradeiro teste, considerado bem sucedido, de impressão simultânea em três rotativas (duas em Lisboa e uma no Porto)". E assim é. A primeira edição do PÚBLICO tem na capa uma fotografia do então líder do PCP, de costas, e o título "Cunhal: resistir até ao fim". É o início de um percurso que já não terá interrupção. Com uma redacção totalmente informatizada mas só com computadores da Apple (MacII com, imagine-se, 40Mb de memória total!), com telefones fixos, faxes, telexes, dois canais de televisão pública (RTP1 e 2) e nenhum privado, acesso a canais estrangeiros apenas por satélite, estava-se ainda longe do tempo da Internet, dos telefones móveis, das redes sociais, da televisão por cabo.
O primeiro número do PÚBLICO tirou 120 mil exemplares, esgotados em banca. A tiragem média desse mês, Março, foi de 71.659 exemplares. Em Dezembro, 57.105. Mas, nesse ano, um acontecimento agitara o planeta: a invasão do Kuwait pelo Iraque. Em Fevereiro de 1991, o mês da guerra, a tiragem já ia nos 74.427 exemplares. O PÚBLICO, com enviados em várias frentes, assegurou a mais completa cobertura.
O balanço do primeiro ano do jornal, que ganhou com a guerra no Golfo o que perdera com o falhado lançamento de Janeiro, pode fazer-se nalguns números: 284 pessoas no quadro (187 na área editorial), 114 colaboradores permanentes, 60 correspondentes, 21 colunistas ou cartoonistas, 37.352.000 unidades impressas (jornais e suplementos) em 4449 toneladas de papel. Esse foi o primeiro ano. Agora vai começar o 29.º. n