O euronervosismo atual é mau conselheiro
Há momentos em que o nervosismo se justifica, e outros em que não se justifica, porque nos faz perder oportunidades de ver as coisas com mais clareza.
Numa coisa europeístas e eurocéticos estão de acordo: a Europa está em crise. É uma pena, porque é aí precisamente que estão errados. Não tanto sobre a Europa, que tem problemas de sobra, mas sobre a ideia de crise.
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Numa coisa europeístas e eurocéticos estão de acordo: a Europa está em crise. É uma pena, porque é aí precisamente que estão errados. Não tanto sobre a Europa, que tem problemas de sobra, mas sobre a ideia de crise.
Como é evidente, europeístas e eurocéticos estão de acordo por razões diferentes. Num domingo como ontem, por exemplo, os primeiros olham com nervosismo para as eleições italianas e os segundos olham com expectativa. Uns temem que um próximo governo italiano seja anti-europeu, os outros anseiam por isso. Uns não querem que a casa venha abaixo, outros querem ver o circo pegar fogo. Ambos ficarão desiludidos.
A verdade é que a Itália é acima de tudo um problema italiano. Por mais que esteja na moda culpar o euro e a globalização pela instabilidade política e pelo populismo em muitos países, em Itália já havia instabilidade política muito antes de haver euro e o populismo italiano nasceu com o colapso do regime político provocado por escândalos de corrupção que tiveram origem puramente doméstica. Do lado das soluções, poucos italianos acreditam que uma saída do euro ou da UE resolvam alguma coisa para a Itália e ainda menos eleitores acreditam que a Liga de Matteo Salvini ou o Movimento 5 Estrelas conseguissem mesmo sair do euro, ainda que o quisessem. A possibilidade de saída do euro perde agora mais votos do que ganha. Em consequência, os partidos que antes pegavam na saída do euro recuam agora nas suas promessas ou baralham as pistas (falando sobretudo dos imigrantes africanos) para que não se perceba que estão a recuar.
Estas eleições italianas decorrem depois de dois acontecimentos pedagógicos para toda a Europa: o voto do Brexit e a chegada de Marine Le Pen à segunda volta das eleições francesas no ano passado. Ora, o Reino Unido sempre foi o país com condições mais favoráveis para sair da União Europeia — não está no euro, não está em Schengen, goza de uma série de exceções no direito europeu, e está do lado de lá do Canal da Mancha. Mesmo assim, o governo britânico não consegue entender-se com a saída. Não há nenhum problema britânico que esteja a ser resolvido enquanto a classe política britânica anda obcecada com o Brexit. Quanto a Le Pen, a sua chegada à segunda volta das eleições francesas contra Macron representou a melhor ocasião que alguma vez um defensor da saída do euro teve para poder explicar perante o eleitorado os seus argumentos. O falhanço foi total; aquilo que era suposto ser um ponto forte da sua campanha acabou por se tornar numa armadilha para Le Pen. A partir daqui, tanto em Itália como noutros países europeus não falta gente descontente com a União Europeia — mas isso não quer dizer que haja alguém que acredite mesmo poder resolver os problemas do seu país acrescentando-lhe mais problemas ainda com uma saída do euro ou uma desintegração da UE.
Ao nervosismo ora ansioso ora expectante de europeístas e eurocéticos eu gostaria de contrapor outro modo de análise: um europeísmo crítico. Trata-se de um europeísmo, porque assume que o projeto europeu tem um potencial de enorme valor que é melhor salvar do que desperdiçar. Mas é um europeísmo crítico, porque lhe reconhece os inúmeros problemas e se esforça por, a cada um deles, apresentar propostas de solução. Para o caso que nos importa hoje, é um europeísmo crítico também em relação à omnipresença da ideia de crise. Se tudo é sempre crise, é porque a palavra perdeu o significado. Ora, tal como é importante reconhecer quando a União Europeia tem problemas graves que lhe podem ser fatais (tal como se passou com a crise do euro em 2011 ou a crise do estado de direito na Hungria e na Polónia hoje), também é igualmente importante reconhecer quando as crises deixam de ser ameaças existenciais.
Não quero com isto dizer que estejamos bem. Não estamos — nem na UE, nem nos estados-membros. Quero somente explicar que há momentos em que o nervosismo se justifica, e outros em que não se justifica, porque nos faz perder oportunidades de ver as coisas com mais clareza. O nervosismo atual é mau conselheiro. Os velhos hábitos tardam em desaparecer, e os jornais e os analistas políticos continuarão a fazer títulos catastrofistas sobre o fim da Europa, mas os eleitorados europeus seguiram em frente. Continuaremos ainda a ver grandes votações em partidos populistas — o problema do populismo não é um exclusivo da UE, o que basta verificar olhando para os EUA, o Brasil, a Turquia ou a Rússia — mas a notícia mais importante em 2018 não é a do “fim da Europa”. É a da sobrevivência da Europa a uma crise que chegou a ser quase fatal.