O Ocidente já não é o centro do mundo

Duas décadas mudaram a balança de poder no mundo. A riqueza e o poder deslocam-se para o Oriente. A expansão da China dá vertigens. Mas a Ásia é frágil e marcada pela luta entre potências rivais. A grande viragem não é um jogo de soma zero, em que aquilo que um ganha é o que o outro perde. A ascensão da Ásia não é o declínio do Ocidente.

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Donald Trump e Xi Jinping segundos antes do aperto de mão em Pequim, China, no dia 9 de Novembro de 2017 Damir Sagolj/REUTERS

O poder viaja para oriente. O Ocidente já não é o centro de gravidade do mundo. Isto, que pareceria disparate em 1990, não é sinónimo de declínio, ocaso ou catástrofe: é uma mudança de era. O tabuleiro global já não é o mesmo. Passou a ser policêntrico. Mudaram a era e a geografia. Declarava em 1898 John Hay, secretário de Estado norte-americano: "O Mediterrâneo é o mar do passado, o Atlântico é o oceano do presente e o Pacífico é o oceano do futuro."

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O poder viaja para oriente. O Ocidente já não é o centro de gravidade do mundo. Isto, que pareceria disparate em 1990, não é sinónimo de declínio, ocaso ou catástrofe: é uma mudança de era. O tabuleiro global já não é o mesmo. Passou a ser policêntrico. Mudaram a era e a geografia. Declarava em 1898 John Hay, secretário de Estado norte-americano: "O Mediterrâneo é o mar do passado, o Atlântico é o oceano do presente e o Pacífico é o oceano do futuro."

Nesse ano de 1990, os olhos do mundo estavam fixados na União Soviética e no Médio Oriente, onde se preparava a segunda guerra do Golfo, depois de Saddam Hussein ter invadido o Kuwait. Assistia-se à primeira manifestação do "momento unipolar" americano, com os EUA à frente de uma imponente coligação internacional.

Este era o grande facto novo nascido do fim da Guerra Fria. Marcava uma ruptura geopolítica. Mas encobria uma mudança subterrânea que (só mais tarde) viria a revelar-se de maior alcance: a reemergência da China. Por coincidência, é em 1991, ano do fim da URSS e da vitória americana no Kuwait, que a China surge pela primeira vez no quadro das dez maiores potências económicas. Na cauda, mas já no pódio.

O irresistível enriquecimento da Ásia era visível, mas raros antecipavam uma mudança na balança de poder. Muitos especialistas falaram, desde a fulminante ascensão económica do Japão nos anos 1960-80, no advento de um "século asiático". Mas o ponto de vista dominante sobre a China era "futurista", como bem o exprime o título de um livro do político francês Alain Peyrefitte publicado em 1973: Quando a China Acordar, o Mundo Tremerá, título inspirado num dito de Napoleão.

Tinham emergido os "quatro dragões" (Coreia do Sul, Hong Kong, Singapura e Taiwan) e a seguir os "tigres" (Tailândia, Malásia, Indonésia, Vietname e Filipinas). A China não se fez esperar. E nela residia o problema. Pela sua dimensão, era o único Estado emergente capaz de mudar as regras do jogo para se tornar a prazo numa potência global.

Na sua antecipação dos efeitos de 1989, Francis Fukuyama (O Fim da História) enganou-se num "pormenor". O que desapareceu não foi o mundo "não liberal", mas o mundo "não capitalista". E capitalismo pode "rimar" com autoritarismo. A transição da China para o capitalismo vai ser o fenómeno marcante da nova era e com as maiores consequências geopolíticas (ver PÚBLICO, 24 Fevereiro).

"A ascensão da China será indubitavelmente um dos grandes dramas do século XXI. O extraordinário crescimento económico da China e a sua activa diplomacia já estão a transformar a Ásia Oriental e as décadas futuras verão o fabuloso incremento da influência e do poderio chinês", anunciava em 2008 o americano G. John Ikenberry. Eis o seu temor: "Alguns observadores acreditam que a era americana está a chegar ao fim, enquanto a ordem mundial de matriz ocidental será substituída por outra crescentemente dominada pelo Oriente."

Não nos antecipemos.

Mahbubani

"Os Estados Unidos e a Europa foram óptimos guardiões da ordem mundial, mas agora estão em retirada", disse em Milão, em 2010, o indo-singapurense Kishore Mahbubani, um dos mais influentes intelectuais asiáticos. Dois anos antes publicara um livro de grande ressonância cujo título diz tudo: O Novo Hemisfério Asiático – A Irresistível Mudança do Poder Global para o Oriente.

Porque ressurge a Ásia?" Porque, à imagem do Japão, adoptou "os sete pilares da sabedoria ocidental": mercado livre, ciência e tecnologia, meritocracia, pragmatismo, primado da lei, educação e cultura de paz. Antes de acusar o Ocidente, completa a homenagem: "Os Estados ocidentais alcançaram o auge não só em ‘zero guerras’ [, mas também] ‘zero perspectiva de guerra’ [entre ocidentais]." Algo que não é um dado adquirido na Ásia, dilacerada por rivalidades e tensões.

Que factura quer cobrar a Ásia? Mahbubani resume: o Ocidente desenhou no fim da II Guerra Mundial uma ordem multilateral. Os asiáticos não a contestam, porque foram os grandes beneficiários. "A Ásia não quer dominar o Ocidente." Quer forçá-lo a abrir mão do seu domínio sobre as instituições globais, do FMI ao Conselho de Segurança da ONU. E se o Ocidente resistir? "Haverá uma verdadeira crise de gestão da ordem mundial. (…) A liderança americana está enfraquecida, mas a China e a Índia não têm os atributos necessários para a substituir. Um vazio na liderança global é perigoso."

Classes médias

O ímpeto da globalização desde meados dos anos 1990 assentou num negócio que supunha vantagens mútuas: as fábricas asiáticas produziam em massa, tirando da pobreza centenas de milhões de pessoas e promovendo uma nova e gigantesca classe média, enquanto os consumidores ocidentais poupavam maciçamente com as novas mercadorias baratas.

No Ocidente, os efeitos não foram apenas virtuosos. A concorrência dos emergentes dilacerou o tecido industrial de muitos países ocidentais e a combinação entre a globalização e a tecnologia feriu também uma parte importante das classes médias europeias e americanas. Isto veio a repercutir-se em coisas como os populismos ocidentais. Mas esta é outra história.

Também nos emergentes o surto das classes médias não é unívoco. A democracia não decorre mecanicamente do crescimento económico. Na China, por exemplo, a classe média é frágil e vê o seu futuro dependente da estabilidade social e política: "A democracia traz liberdade, mas também o risco de caos." Frisa o sinólogo Andrew Nathan que a prosperidade da classe média chinesa assenta numa aliança com o regime autoritário. A combinação entre liberalização económica e autoritarismo político – o "modelo de Singapura" – seduz grande parte da Ásia.

A "Grande Divergência"

A expansão da China dá vertigens. Escreve o analista americano Graham Allison: "O mundo nunca assistiu a nada de comparável com a mudança veloz e extraordinária no equilíbrio de poder devido à ascensão da China. Se os Estados Unidos fossem uma empresa, poder-se-ia dizer que nos anos imediatamente seguintes à II Guerra Mundial facturavam 50% do mercado mundial. Em 1980, facturavam 22%. Três décadas da China a crescer mais de 10% reduziram a quota americana para 16%. A China, que representava 2% da economia mundial em 1980, passou a representar 18% em 2016."

Nesta matéria, a China e a Índia têm uma perspectiva histórica diferente da dos ocidentais: estão a recuperar o estatuto económico que tinham antes da dominação europeia, quando, no mínimo, rivalizavam com a Europa e representavam uma quota muito elevada da riqueza mundial. O historiador americano Kenneth Pomeranz publicou em 2000 um polémico estudo – The Great Divergence. China, Europe, and the Making of the Modern World Economy – em que comparava o desenvolvimento da China e da Inglaterra, com vantagem para largas áreas da China.

No início do século XVI, chegou à Ásia Vasco da Gama, seguido de holandeses, ingleses e franceses – e mais tarde os russos – que começaram a conquistar e construir impérios. Mas, argumentava Pomeranz, até ao início do século XIX e à Revolução Industrial, a região mais avançada da Europa, a Inglaterra, não dispunha de nenhuma vantagem decisiva sobre a China, que nada tinha a invejar à Europa, a começar pela agricultura e a acabar na tecnologia.

O que hoje vai desaparecendo é esta "Grande Divergência", produto de um longo processo histórico. O regresso da China ao centro do mundo é historicamente algo de "natural ".

A "Ásia precária "

A ascensão da Ásia não é, no entanto, a avenida em linha recta que os indicadores económicos poderiam sugerir. Não faltam obstáculos e riscos.

O historiador americano Michael Auslin, especialista em Ásia, publicou no ano passado um livro com um título provocatório : O Fim do Século Asiático (The End of the Asia Century: War, Stagnation, and the Risks to the World’s Most Dynamic Region, Yale, 2017). Auslin não nega os sucessos da Ásia, mas contesta a ideia de que a região (entenda-se, a China) vai continuar a crescer exponencialmente até alcançar "a liderança global".

Uma travagem da Ásia traria novas complicações: "Estamos no ponto crítico de uma mudança no Zeitgeist global, da celebração de uma Ásia em expansão para a preocupação com uma Ásia frágil e perigosa."

À medida que as economias crescem, mais agudos são os problemas. O Japão continua em busca do caminho para "pôr termo a 25 anos de torpor". "Em 1980, os observadores ocidentais assumiam que o Japão continuaria a crescer indefinidamente", o mesmo que hoje muitos pensam da China. Ora, as economias asiáticas continuam enredadas nas tentativas de reforma para manter os equilíbrios e sob a ameaça de estagnação. "Talvez o maior risco seja uma drástica desaceleração da economia chinesa."

Dos vários factores que Auslin evoca ressalta o problema demográfico. O Japão começou a perder população em 2011. A população chinesa envelhece e começará a declinar em 2030. Diminui, desde 2012, a população em idade de trabalhar. "Os problemas demográficos do Japão de hoje podem perfeitamente vir a ser amanhã os da Coreia do Sul, Hong Kong, Taiwan e Singapura." Em vantagem estão países como a Índia e a Indonésia, com uma demografia jovem, mas em risco de terem excesso de população.

Não se trata de previsão de catástrofe: "A região ainda tem uma avançada base industrial, colossais poupanças e uma forte classe média em muitos países. A China, o Japão e a Coreia do Sul, em particular, permanecerão centrais na economia global. "

Auslin insiste, no entanto, no lado mais sombrio: " A região está profundamente fracturada, ameaçada pela estagnação, por agitação política e por pontos críticos [flashpoints] que podem desencadear novas guerras. "

"Clube de Rivais"

O inglês Bill Emmott, antigo director da Economist, abordou o quadro económico e estratégico da Ásia num livro intitulado Rivais (Rivals. How the Power Struggle between China, India and Japan Will Shape Our next Decade, Harcourt, 2008.) Tese: o que caracteriza a Ásia é a rivalidade entre as três grandes economias da região – e, de certa forma, "civilizações" – China, Índia e Japão.

É um mundo de perigos e oportunidades. "A China tem de se adaptar a um crescimento mais lento e lidar com os problemas ambientais; a Índia tem de resolver a sua fraqueza na educação e nas infra-estruturas; e o Japão tem agora a população mais idosa."

Retoma uma velha questão: o que é a Ásia? A Ásia não é uma entidade política. É um "clube de rivais". A este respeito também Auslin sublinhara a fraqueza das instituições pan-asiáticas. Nem a Ásia tem uma entidade concorrente da Aliança Ocidental nem o equivalente a uma União Europeia, nem os países que temem a China têm uma "NATO asiática" para a conter. Confiam nos EUA. Existe a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), sem peso em matéria de segurança.

Explica Auslin: "Isto acontece, em larga medida, porque a Ásia foi dominada durante séculos pelas suas nações mais poderosas – China, Japão, Índia – ou por imperialistas estrangeiros. (…) As suas potências não têm aliados formais entre os vizinhos e têm poucos parceiros próximos – é o legado da longa história de conflitos regionais."

O quadro geopolítico da Ásia faz lembrar a competição das potências europeias antes de 1914. Por um lado, observa Emmott, há "as potências emergentes contra as potências longamente estabelecidas da Europa e da América; depois, as novas potências umas contra as outras e… o Japão". Cresce a tensão não só entre a China e os Estados Unidos, mas também entre a China e a Índia. Nova Deli encara o projecto chinês da "Rota da Seda" (Belt and Road Initiative) como uma tentativa de a cercar e isolar. Conclui Emmott: "Penso que o Japão é o rival menos ambicioso. Enquanto a China e a Índia pensam que o seu destino é liderar o mundo, o Japão é um rival por medo dos outros."

Os orçamentos militares da China e da Índia aumentam. Os indianos fazem exercícios militares com os EUA e o Japão. Na região há três potências nucleares à espera duma quarta, a Coreia do Norte.

Sublinha no Financial Times o analista Gideon Rachman: "Estes argumentos reflectem o facto de que a China e a Índia não representam apenas potências rivais, mas também sistemas políticos, ideologias e civilizações rivais. Mas, tal como as mudanças económicas e políticas na Ásia, a sua competição moldará, em última análise, o século XXI."

Visto da Europa

Ocidente e Oriente não são conceitos simétricos. Não há um Oriente no mesmo sentido em que se fala num Ocidente. Este define-se, não pela geografia, mas por valores comuns e alianças. A Ásia, por irresistível que seja a deslocação da riqueza e do poder para o Indo-Pacífico, é um continente cultural e politicamente fragmentado. Há um paradoxo de que os ocidentais têm pouca consciência: no caso remoto de haver guerra entre a China e os EUA, rivais no controlo do Pacífico Oriental, ela começaria provavelmente com um conflito entre a China e um dos seus vizinhos. Depois, só Deus dirá.

A China de Xi Jinping assume-se explicitamente como potência mundial, inclusive no plano militar. Mas à sua maneira. Os políticos ocidentais, previnem sinólogos, podem ter uma ideia errada. A China pratica o jogo do Go, não o xadrez do xeque-mate, ocupando metodicamente posições no vasto tabuleiro global. É um jogo de cerco. Iniciativas como a "Rota da Seda" são isso mesmo. Instalam-se no Ocidente, a começar pela Europa, adquirindo empresas estratégicas, infra-estruturas, portos ou redes de distribuição de energia montam uma teia. Mas não autorizam que os ocidentais adquiram uma empresa estratégica chinesa. Do mesmo modo, a China é relutante em negociar com a UE, preferindo as relações bilaterais. O apetecível mercado chinês dá-lhes um pesado argumento.

Que ideia fazemos da China? Talvez o sinólogo britânico Martin Jacques tenha alguma razão: a China e a sua política não podem ser entendidas na lógica do Estado-nação a que estamos habituados. A China "é essencialmente um Estado-civilização". Consequência? " A China não aspira a governar o mundo, porque ela própria acredita que ser o centro do mundo é a sua posição e o seu papel natural." É assim, há muitos séculos. A China tem "um sentido de superioridade assente numa combinação de hubris racial e cultural".

Que dizer em 2018? A China despertou e "o mundo treme". É perigoso menosprezar o seu poderio e as suas ambições. Aos europeus caberá resistir à ideia de "declínio", tão patente na América de 2008, na ressaca do fiasco do "unilateralismo" na guerra do Iraque e no momento em que o crescimento chinês explodia. A mudança não é um jogo de soma zero. A ascensão da Ásia ou do "Resto" para usar a expressão de Fareed Zakaria não é a "capitulação" do Ocidente. Os Estados Unidos e a Europa mantêm os seus trunfos.

O Ocidente deixou de ser irreversivelmente o centro do mundo. E depois? Os europeus podem recordar a sua história: foi depois da descolonização, da perda dos seus imensos impérios na Ásia, em África ou no Médio Oriente, que a Europa ressurgiu na União Europeia como o maior bloco económico mundial. Tudo começa por entender as armas e a vulnerabilidade do novo rival. É estúpido diabolizar a China. É mais inteligente tentar percebê-la.